terça-feira, 6 de setembro de 2016

Crianças, animais e nossa sensibilidade burguesa



Aspectos marcantes distinguem a sensibilidade aristocrática da sensibilidade burguesa. O modo como nos transformamos para nos importar mais com nossos filhos e animais é ilustrativo. Se antes nossos hábitos requisitavam que fôssemos altivos e duros, hoje nossos costumes pedem que sejamos reservados e tenros. Ao menos no âmbito doméstico.

Inicio com a proximidade entre pais e filhos, no Antigo Regime. Na família aristocrática, ela é quase inexistente. A educação dos rebentos não se dá no seio familiar. Inicialmente, famílias da mesma estirpe mantêm os filhos de outras sob sua guarda, iniciando-os no mundo das armas e da equitação. Os aprendizes, em troca, prestam serviços diversos, como a escuderia. A educação, assim, não se dá necessariamente na escola formal, mas entre pares. Sem falar que a aprendizagem de ofícios manuais e mecânicos é desonrosa.

Mas chega o tempo, porém, em que o aristocrata se afasta da carreira de armas. Então, um novo modelo de educação emerge: a conversação elegante e a discrição. O rei, com seu poder cada vez mais ameaçado, atrai para a vida da corte a aristocracia. Com isso, cria a dependência financeira entre o cortesão e o erário real. E, assim, paulatinamente, afastam-se nobreza e passado guerreiro.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

O claro-escuro do debate sobre etnocentrismo



Criticar outra cultura, com frequência, traz duas sombras: etnocentrismo e intolerância. Os colonialismos europeus velho e novo, aliados a ideologias racistas como o nazismo são exemplos históricos de desrespeito total às diferenças. Ambos foram etnocêntricos e intolerantes. Com essas imagens em mente, é compreensível que o medo do escuro retorne. Quem não faz o esforço de acender uma vela que seja, porém, resume qualquer discussão do tipo àquelas duas categorias. A conclusão, invariavelmente, é a mesma: relativismo cultural. Esquece o relativista, porém, que sua posição não é tão pacífica quanto imagina. Um contra-exemplo famoso foi fornecido há 45 anos.

Claude Lévi-Strauss, o célebre antropólogo, proferiu uma conferência pública endereçada à UNESCO, em ocasião do Ano Internacional de Combate ao Racismo e à Discriminação Racial, em 1971. Sua tese: livrar-se do etnocentrismo não é a melhor opção. Sua justificativa: é certo que o zelo aos próprios valores pode levar à exclusão de valores alheios, porém trata-se de um preço necessário a ser pago para que se mantenham sistemas de valores particulares. Caso as culturas não permaneçam um tanto impermeáveis umas às outras, haverá uma verdadeira confusão, o que faria com que perdessem seu propósito, isto é, sua razão de ser enquanto sistemas materiais e simbólicos únicos, inconfundíveis.

O ponto aqui é o perigo da extinção da diversidade. Ao contrário do que se pensa, defendeu Lévi-Strauss, o etnocentrismo é um possibilitador, não um supressor da diferença. O combate ao etnocentrismo levaria a uma progressiva suavização do contraste cultural, o que acarretaria uma universalização de valores que, ao invés de propiciar diversidade, incentivaria uniformização. Em uma frase: tolerância desesperada com o objetivo de suavizar o contraste cultural traria contraste cultural algum.

Desde a manifestação do antropólogo, um mal-estar se instalou entre os detratores do etnocentrismo. Há um risco real de que a tolerância excessiva se torne sinônimo de ausência total de parâmetros de avaliação. Se é verdade que não se pode sair da própria cultura para avaliar outra, persiste a necessidade de avaliação. Ou se sustenta que toda avaliação cultural é tão válida quanto qualquer outra (relativismo cultural), ou se sustenta que existem avaliações culturais melhores que outras (etnocentrismo). Caso optemos pela primeira, como escaparemos da escuridão colonialista e nazista. Com mais breu?

O relativista, então, uma vez ciente das fraquezas de seu argumento deve ser chamado a se defender. Não se trata de um imperativo, mas de uma recomendação ética. Uma recomendação ética, porém, é sempre uma obrigação, ainda que posta de nós para nós mesmos, sem coação. Não devemos perder de vista que não é suficiente julgar-se racional por sustentar um valor digno. Se há objeções relevantes àquilo que acreditamos e optamos por ignorá-las, então estamos diante de uma condição irracional. Em vez de cultivarmos os raios do sol, retornamos às trevas da noite.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Sócrates não panfletário





“Só sei que nada sei” é um enunciado facilmente convertido em saída comum para alguém que quer parecer inteligente. Ao menos em alguns círculos. Mostra que você sabe quem é Sócrates. Indica, também, que você é alguém que reflete antes de emitir uma opinião. Ou, antes, sugere que você é daqueles tipos sábios que prefere deixar no ar uma mensagem a entregá-la de mão beijada. Afinal, você quer provocar o pensamento crítico nas pessoas.

O desenho acima poderia trazer à baila essa interpretação. Um professor de filosofia que endossasse o que acabei de descrever poderia tentar convencer a turma de que Sócrates realmente defendeu que nada sabia. Por isso, quero deixar claro desde já que Sócrates não defendeu que de nada sabia. Depois de argumentar a favor dessa tese, ofereço outra possível interpretação à charge.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Seja feliz. Você é livre



Ruth Manus, em "A geração que encontrou o sucesso no pedido de demissão", faz uma bela descrição das desventuras do que consideramos ser feliz, desde nossos avós. Primeiro, casamento bem arranjado. Depois, sucesso profissional. Agora, nem um, nem outro, mas aquilo que de mais particular houver em cada um. Não há princípios gerais de felicidade. A felicidade é individual. Carpe diem!

O texto é interessante porque tem como tese principal que cada um procure aquilo que lhe é mais particular. Porém, essa tese ela mesma não é particular, mas fruto do espírito de nosso tempo. O texto é gostoso de se ler, porque nos toca no íntimo. E só nos toca no íntimo porque partilhamos alguma coisa em comum. Nossa concepção de felicidade é moderna, demasiado moderna e é fruto de, ao menos, duas ficções difíceis de se livrar -- uma política, outra filosófica: o indivíduo e o sujeito.

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Impossível exprimir em palavras





Muitos de nós endossamos tacitamente a ideia segundo a qual a linguagem é incapaz de abarcar a realidade. Quando dizemos, por exemplo, “Tenho um sentimento aqui no peito que é impossível de se exprimir em palavras”, o que estamos a querer dizer é que “As palavras sempre serão insuficientes para dar conta da realidade”. Quando percebemos isso, nossa defesa deixa de ser tácita e passa a ser expressa: a realidade é intraduzível.

Temos, inclusive, uma figura de linguagem para expressar essa incapacidade intrínseca para alguns casos: catacrese. A catacrese é a figura de linguagem que consiste na utilização de uma palavra ou expressão que não descreve com exatidão o que se quer expressar, exatamente porque não há outra palavra apropriada para tal. Pé da mesa, vinagre de maçã, dente de alho, cabeça de alfinete são exemplos. Nesse sentido, o processo da catacrese consiste em aplicar uma metáfora no uso cotidiano, de modo tão recorrente, que chega uma hora que esquecemos que estamos utilizando uma metáfora.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

O ódio é gratuito



Fedro, escritor nascido na Trácia, vinte anos antes de Cristo, sofreu perseguição por parte de indivíduos da alta classe política romana da época e, ao fim, foi condenado ao exílio, vindo a falecer na miséria anos depois. A perseguição estava intimamente ligada à natureza de sua atividade: escrever fábulas.

Uma fábula é uma narrativa curta com personagens animais que agem como seres humanos e que ilustra um preceito moral. Em outras palavras, fabular é transformar indivíduos em modelos e fazer com que histórias corriqueiras tornem-se mais que triviais. Não é preciso que o fato narrado tenha ocorrido, nem os personagens existido. É comum, entretanto, que isto ou aquilo disparem o gatilho criativo do fabulista. Sua escrita, porém, é sempre universal.

domingo, 17 de julho de 2016

Assassinos de Sócrates



"Ensinar Filosofia" pode servir a propósitos distintos. Decidir que objetivos e meios servirão a esse ensino deve ser algo bastante claro, com suas consequências muito bem estabelecidas. Segundo penso, um desses pares objetivo/meio deve ser evitado sobremaneira: aquele que se expressa no slogan "ensinar o senso crítico". Trata-se de um duplo erro. Antes de tudo porque presume que pensamento crítico é privilégio da filosofia. Além disso, dado que a erige como guardiã da criticidade, torna-a tão despótica quanto o que ela pretende denunciar.

Não custa lembrar: aquele que liberta alguém do senso comum não necessariamente lhe desperta o senso crítico. Eventualmente, acontece apenas uma substituição. Esse era um dos perigos do Esclarecimento, apontados pelos filósofos da Escola de Frankfurt. Tirar as amarras de um escravo que permanece com a mentalidade servil nada mais é que se tornar seu senhor.

Pior que isso. Corremos o risco de nos tornar uma sociedade de escravos assenhorando escravos. Tal qual o prisioneiro da caverna de Platão que foi libertado e não sabe por quem, saímos a ver as coisas iluminadas pelo sol e nos maravilhamos. Constatamos que, quando comparadas à nova visão, as sombras da caverna não passam de cópias malsucedidas. O que usualmente esquecemos, entretanto, é que a alegoria da caverna é exatamente o que o seu nome diz: uma alegoria. Ela ilustra a ascensão da aparência ao conhecimento. Porém, toda ela é aparência -- sejam as sombras no interior da caverna, seja o seu exterior iluminado pelo sol. Nada garante que, ao sair de uma ilusão, não se incorra imediatamente em outra.

Ainda assim, há uma postura que minimiza essa condição. Falo aqui da autocrítica constante. Falo aqui da constante busca por furos no próprio raciocínio. Sócrates e Platão chamaram isso de dialética. Para garantir essa conduta, o primeiro frequentou incessantemente a praça pública; o segundo fundou a Academia.

Por nosso turno, não precisamos entrar para a história da filosofia, inaugurando uma maneira revolucionária de preservar esse ideal. Basta que estejamos abertos à refutação. Isso quer dizer simplesmente estar disposto a dizer, diante de uma falha argumentativa apontada, "É... de fato, eu estava errado". Antes de tudo, é preciso pressupor que pode ser o caso que estejamos errados. E isso, por mais nobre que seja a causa que estejamos defendendo. É preciso entender que não há, em filosofia, causas nobres o suficiente a ponto de serem imunes à refutação -- e esse é um dos pontos mais delicados a ponto de mesmo aquele que se diz amante do saber raramente o praticar.

Quando não assumimos essa postura e passamos a ensinar e defender doutrinas, por mais bem intencionadas que sejam, em vez de agirmos como Sócrates -- parindo ideias, refutando e se deixando refutar --, vestimos a toga do sofista. As preocupações passam a ser a retórica e a busca por efeitos estilísticos e convencimento. Porém, por paradoxal que seja, comportamo-nos como Protágoras, mas nos recusamos a assumir a relatividade. Aquilo que acreditamos passa a ser o melhor modo de expressar a verdade, e quem conosco discorda contra nós está. Não passará tanto tempo assim até que o denunciemos ao tribunal e exijamos junto à corte sua condenação derradeira: beber cicuta.

terça-feira, 14 de junho de 2016

"Mirem-se no exemplo"



No caminho para lecionar filosofia, uma etapa significativa é a Licenciatura. E ingressar em uma instituição que a ofereça significa ter acesso, pelo menos, a um time de professores formalmente bem preparados. Mas nem só de forma vive o aprendizado. Títulos acadêmicos avançados podem ser enganosos.

É muito usual que doutores, cujo currículo ostenta o domínio de três línguas estrangeiras e um estágio em algum país da Europa, não tenham a mínima ideia de como usar instrumentos de trabalho básicos. Você espera bom uso de corpo, voz, quadro, figuras de linguagem, referências culturais fora da área de especialidade? Esqueça. O que traz o "profissional" mega especializado é a incrível habilidade de sentar durante horas e se por a ler um texto previamente produzido. Mas não é qualquer leitura. Enquanto você não sentir cada osso seu se crispar de vontade de se romper, rasgar a camada celular externa de um órgão vizinho, causar hemorragia interna e ocasionar uma morte misericordiosa que forje uma desculpa para sair dali, o objetivo não foi atendido.

Além disso, acontece frequentemente que a aula não tenha sequer início, meio e fim identificáveis. Ocorre com a normalidade de um assalto à mão armada que a explicação de problemas, teorias e argumentos filosóficos, caso inicie, fique pela metade, e que se gaste oitenta por cento do tempo falando sobre a história de vida do filósofo tal e o quanto isso acarretou a criação de sua formulação intelectual. Por extensão, não é raro que a disciplina inteira siga o mesmo padrão por um período letivo completo.

O que mais é de se lamentar, entretanto, não é isso. Os mesmos estudantes que passaram pela experiência de assistir às aulas naquelas péssimas condições repetem-nas uma vez no papel de professores. Na impotência de fazer voltar a revolta contra seus tutores, despejam-na em seus pupilos.

Isso poderia ser evitado se, em vez de uma simples revolta, um esforço individual fosse feito no sentido de encarar o espelho como contra-espelho. É como diz a canção de Chico Buarque: "Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas [...]". Chico não aconselha que o comportamento das atenienses seja mimetizado; é justamente o oposto: saiba como elas se comportaram para que não permitas que isso se repita. Eis, talvez, a maior lição de professores ruins: eles nos ensinam por contraste. Aprendamos.

sábado, 28 de maio de 2016

Como usamos o termo cultura do estupro?



No Brasil, meninas são educadas para "se dar ao respeito", e meninos são educados para "não perdoar vagabunda". Muitos são os tipos sociais decorrentes dessa educação, os mais conhecidos são "a mulher para casar" e "a mulher para ter na rua". No lar, a civilização. Na rua, a barbárie. A violência nunca foi problema para nós humanos. Desde que -- é claro -- cometida fora de casa, fora do âmbito familiar, com aqueles que não partilham dos nossos valores. "Menina que não se valoriza não merece respeito", sentenciamos muitos de nós.

Revoltados com essa situação, criamos, em um movimento internacional -- baseados em histórias semelhantes acontecidas no Oriente Médio e na Índia --, o termo cultura do estupro. Com ele, pretendíamos circunscrever, ao menos em nosso país, o conjunto de práticas que ilustrei no parágrafo precedente. Acreditamos que, ao fazê-lo, teríamos em mãos um retrato falado de quem quer que fosse conivente com a prática nefasta que confirma a todo instante "Ela foi estuprada, mas ela também provocou". Queríamos extirpar de nosso corpo social esse câncer que, à medida que crescia, assassinava metade de nossos órgãos: as mulheres que "provocavam" os homens.

Tudo começou com um mote: a vítima não provoca coisa nenhuma. Não é culpa minha se sou roubado na praia, só porque portava a aliança de ouro de meu casamento. Não é culpa minha se sou roubado no ônibus, só porque atendi o celular para avisar meu namorado que iria me atrasar para o encontro. Não é culpa minha se sou roubado em meu carro, só porque esqueci de suspender o vidro da janela, no semáforo vermelho. Se em todos esses casos, a culpa não é minha, por que a culpa do estupro é da mulher que "provoca" o homem?

Havia alguma coisa de errado aí. Notávamos que as mesmas pessoas que se comiseravam das vítimas nos primeiros casos não se comportavam da mesma forma com a vítima do último caso. "Só pode ser tudo parte de uma grande cultura de naturalização da violência contra a mulher", concluímos.

De porte de um rótulo explicativo, passamos a identificar cúmplices dos criminosos. Passamos também a identificar aqueles que, ainda que não cometessem o ato, eram com ele coniventes por omissão. Progredimos no sentido de alertar a sociedade para a importância de coibir o crime. Mas não paramos ai.

Fizemos o termo virar bandeira política e não só. Fizemos o termo virar bandeira eleitoreira. Passamos a apoiar o partido x e o candidato y, por que tinham em seus programas de governo ou de intervenção parlamentar pontos que cobriam a questão. Além disso, passamos a hostilizar partidos e candidatos que não colocavam em seus programas essa pauta. O inimigo transformou-se da educação social difusa em uma figura institucionalmente bem definida. Daí para oportunistas se aproveitarem da situação foi um pulo. Há outros, mas Seu Jair, o Bolsonaro, é o espantalho que ganhou vida com toda essa situação. Tomou para si a representação do papel que não pensávamos que alguém pudesse defender: o de alguém que publicamente sustenta a prática do estupro "para alguns casos; só para quem merece". Depois dele, vimos pequenas aberrações, e não só do meio popular difuso, ganharem asas através das redes sociais e também desejarem que fosse estuprado o seu desafeto: "que fulano seja estuprado, só ele, porque merece". Nossa reação provocou uma re-reação. Se para a física toda ação tem uma reação, para a sociologia todo sentimento tem um ressentimento.

Um monstro maior foi criado. Um monstro midiático. Um monstro que passou a angariar tantos votos quantas fossem suas declarações criminosas cobertas pela imunidade (ou seria impunidade?) parlamentar. O monstro midiático eleitoreiro alimentou o monstro midiático humorístico. Com um atraso de vinte anos em relação aos Estados Unidos, passamos a discutir o politicamente correto como se fosse a novidade mais novidadeira do Ocidente. Humoristas, sob a defesa da liberdade de expressão, passaram a ressentir-se de não poderem mais fazer piadas com quem não podia se defender. "Pelo direito de zoar seja quem for, mesmo quem é zoado dia e noite, desde que nasceu!" tornou-se um grito legítimo e não só aceito tacitamente.

Para combater essas novas aberrações, insistimos no rótulo que havíamos criado. Era impossível negá-lo. Aumentamos a repressão. "Machistas não passarão", bradávamos a cada pessoa que insinuava o comportamento descrito acima. Passamos a utilizar tanto o termo machista que descobrimos que todos somos machistas. Todos tínhamos que nos policiar. Escrevemos para nós mesmos uma espécie de "O Alienista" em que os doentes eram de tal monta que ou tinham que estar todos internados ou tínhamos nós que considerar doentes justamente aqueles que fugiam ao regular por serem minoria, os sãos. E não nos demos conta que uma explicação que explica todo e qualquer caso, na verdade, não explica nada. Apontar o dedo na cara de alguém e dizer "machista" já não mais significava absolutamente nada. Não servia para diferenciar ninguém de ninguém. Mas continuávamos a utilizar o termo.

Situação análoga aconteceu com a "cultura do estupro". Não nos demos conta que, de tanto usá-la, a imagem que estávamos passando era justamente a oposta: em vez de identificar, estávamos eximindo os indivíduos criminosos da culpa. A sociedade passou a interpretar da seguinte forma o termo: "já que é cultural, então está justificado". "Afinal de contas", diziam, "os mesmos que se posicionam contra a cultura do estupro defendem outras culturas tão nefastas quanto, sob a justificativa do relativismo cultural". E, assim, fomos todos desacreditados. O rótulo que foi fabricado para ser remédio passou a ser vendido no balcão da farmácia social como veneno.

Alguns de nós chegamos mesmo ao cúmulo de desdizer tudo o que defendíamos antes. Se o rótulo iniciou como uma tentativa de desnaturalizar a prática, findou justamente por naturalizá-la. Uma caça às bruxas a prováveis "estupradores" iniciou, porque passou-se a considerar que, naturalmente, todo e qualquer homem é considerado um estuprador em potencial.

E chegamos ao impasse de agora. Concordaríamos, para nos livrar dessas práticas nefastas associadas ao termo, em abandoná-lo? Poderíamos responder que sim. Isso, porém, desde que continuemos a igualmente alimentar um projeto social de mudança de mentalidade quanto à naturalização da violência contra a mulher -- projeto já esquecido por muitos de nós, na faina de naturalizar tantas outras práticas. Um combate contra a mentalidade que, ao menos no Brasil, educa as mulheres para "não se comportar como vagabundas, porque homem não perdoa". E, por outro lado, que educa homens para "não perdoar vagabundas, já que elas estão pedindo para serem comidas". Esse tipo de educação -- não consciente, não concentrada, mas automática e difusa -- contribui, sim, para a naturalização da prática do estupro. E ela continua tendo que ser combatida, findemos ou não o uso do termo "cultura do estupro".

quinta-feira, 19 de maio de 2016

A violência inicia quando a TV é desligada



Recarrega a arma, enquanto se esconde por trás de uma viga. Tiros alvejam a parede que o protege. Sabe que tem que fazer alguma coisa, porque o muro não aguentará o castigo por muito tempo. Lembra-se da granada, a última, que carrega consigo. Lança-a com força que lhe resta, e uma grande explosão se sucede. Silêncio. O objetivo está completo. Alguém declara: o inimigo foi eliminado.

O que parece uma descrição de uma partida de Counter Strike, o jogo de computador que simula a guerra entre policiais e terroristas, é na verdade uma simulação das forças armadas brasileiras. Mas por que um é considerado jogo violento com a capacidade de influenciar jovens incautos, enquanto outro é considerado patriotismo?

Uma primeira resposta é que um prepara adultos, e outro dirige-se a jovens. A premissa de base é que jovens são influenciáveis, porque ainda não têm seu caráter formado. Ora, soldados são recrutados ainda menores de idade, um pouco antes de completarem dezoito anos. O que há de tão mágico na data de aniversário da maioridade que os torna, do dia para a noite, não influenciáveis?

Jogos de entretenimento pregam violência gratuita, enquanto a preparação para a guerra prega violência justificada -- poderia ser uma segunda resposta. Quer dizer, então, que ser violento factualmente é menos grave que ser violento em um jogo, só por entretenimento? Penso que a propalada "inversão de valores" aqui é tão forte que alcançou até quem costuma invocá-la para acusar os outros.

A lista de argumentos continua, seja acusando jogos violentos a fim de proteger os jovens, seja tentando convencer que a violência dos jogos é mais decisiva para a juventude que a violência doméstica presenciada por boa parte de nossos cidadãos. Assim, novamente, desvia-se o foco do real problema e põe-se a discutir quimeras, enquanto que o perigo factual continua impune, dentro de casa, mesmo com todos os aparelhos eletrônicos desligados, no escuro.

sábado, 14 de maio de 2016

"Porque é 2015!"



De todas as posições contrárias às reclamações sobre o ministério todo masculino e todo branco de Temer, a mais não razoável é a de que esses cargos não precisam ser representativos como deve ser o Congresso.

Ministérios federais -- como QUALQUER cargo político -- representam símbolos de como o governo atual quer ser visto, nacional e internacionalmente. Isso é o básico da política de todos os tempos. É assim que o mais humilde de nossos conterrâneos vota: no símbolo que considera que melhor o representaria (excluindo os casos em que vende seu voto, claro; isso, porém, não é privilégio do mais humilde de nossos conterrâneos).

Negar esse fato é também não ter capturado o espírito de nosso tempo. Espírito esse traduzido na justificativa lacônica e brilhante do atual primeiro ministro do Canadá, Trudeau, quando inquirido sobre o porquê de ter escolhido, para seus ministros, representantes de todos os setores de sua nação: "Porque é 2015". Sua justificativa foi óbvia. Ainda assim, pode não parecer tão clara e distinta a alguém que ignora em que tempo vive.

Alguém assim pode ignorar uma série de fatores mundiais. Não pode, entretanto, desconhecer dois eventos recentes nacionais. Primeiro, que tivemos, na presidência do Brasil, um operário, seguido de uma mulher -- fatos inéditos na história brasileira. Segundo, que um dos principais atores jurídicos e políticos dos últimos anos, Joaquim Barbosa, que chegou à presidência do STF, o cume do sistema judiciário pátrio, é negro. Com quem ignora o peso disso, cabe conversa.

Aos de má-fé, em oposição, não basta explicar o caráter simbólico de qualquer cargo político, tampouco a ascendente de representatividade nos governos do Brasil e do mundo. Esses, resta ignorá-los ou ridicularizá-los. Não sei se fui bem sucedido na segunda opção.

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Aforismos sobre crueldade



CRUELDADE E REQUINTE

Uma das evidências mais cotidianas do requinte de crueldade a que chega a civilização é a culinária. Somos capazes de cometer o mais cruel assassinato para satisfazer o mais ínfimo capricho do paladar. E tem quem ainda se espante com práticas como MMA. Este é brincadeira de criança quando comparado ao ato cruento que envolve o consumo de um foie gras.

CRUELDADE E BANALIDADE

Gostamos de citar Hannah Arendt e sua expressão "banalidade do mal" diante de uma crueldade gratuita. Nessa ocasião, evocamos Eichmann, o nazista que permitiu o assassinato de milhares de seres humanos só porque seguia uma rotina, só porque não questionava o socialmente estabelecido. Entretanto, esquecemos de outra evidência cotidiana de nossa crueldade: o hábito de comer nuggets. Uma porção de pintinhos triturados vivos que custa o mesmo preço de um prato saboroso e saudável. O gosto não é bom. O preço não compensa. E, ainda assim, comemos. Comemos por que? "Porque sempre comemos". "Porque todo mundo come".

Um corrupto pode ser educado



O cidadão comum de nosso país dificilmente se envolverá em corrupção. Não porque seja um modelo de conduta, mas porque não é qualquer ato mal educado que é antiético, tampouco corrupto. É preciso fazer algumas distinções conceituais para não se cometer o erro de tomar um pelo outro e, com isso, naturalizar práticas que precisam ser combatidas.

Atribui-se a Luis Fernando Veríssimo a frase “Brasil, estranho país de corruptos sem corruptores”. Adoramos indicar erros alheios sem reconhecer os próprios. Isso, porém, não nos torna iguais a criminosos. Corrupção é crime, o que significa dizer que está tipificada no Código Penal (art. 117 e art. 133). Não deve ser confundida, portanto, com faltas menores como furar a fila do pão ou trair o cônjuge. Estas precisam ser evitadas. Aquelas, além disso, exigem reclusão e multa a quem as comete.

Ainda que não precisemos confundi-las, é preciso corrigir faltas de toda ordem. Não é por que minha conduta não é criminosa que não mereço ser admoestado por ela. Atos contra os valores que julgamos dignos de serem preservados devem ser socialmente coibidos. Não queremos conviver com criminosos e também não queremos conviver com antiéticos.

O que não pode acontecer, entretanto, é que queiramos extirpar toda e qualquer falta da conduta humana. Má educação existiu, existe e sempre existirá. E, aqui, cabe outra distinção: ser mal educado não é ser antiético. O curto alcance de uma “furada de fila” não se confunde com o largo escopo da traição de um relacionamento. Essa confusão é a base para que conectemos a falta de educação nossa de cada dia com a corrupção de nossos representantes. Uma não se segue da outra.

Com essas distinções em mãos, o mínimo que podemos fazer é evitar o moralismo, isto é, condenar alguém até mesmo pela mais ínfima falta comportamental. Nós brasileiros podemos até ser mal educados. Isso, porém, não faz do “brasileiro” um tipo naturalmente corrupto, tampouco explica toda e qualquer corrupção. Quem pensa assim se surpreenderia ao descobrir que os maiores criminosos em relação ao dinheiro público são incapazes de cometer uma falta à mesa ou sentar no lugar reservado para idosos no metrô.

domingo, 17 de abril de 2016

Do ofício de viver



Trabalhamos, laboramos e agimos. Três atividades inerentes à condição humana. É desse modo que Hannah Arendt apresenta, em seu livro homônimo, o inescapável de ser homem neste mundo. Todas elas podem ser entendidas através de um só termo, em toda sua polissemia: arte. E mostram, também, o quanto é impossível apartar a vida que se faz da arte de fazê-la.

Trabalhar é manter a própria existência. É todo esforço que não deixa rastro e só objetiva a manutenção da máquina que trabalha. Sabe o ditado "viver para trabalhar"? É isto: a condição que o proletariado se encontrava na primeira fase da Revolução Industrial. (só lá?)

Laborar é produzir uma obra, um utensílio que sobreviva para além da máquina que o produziu. É laborando que deixamos de meramente existir e passamos a produzir o mundo. Ainda assim, porém, estamos no campo da indistinção. Afinal, produzir instrumentos não é privilégio do homo sapiens.

E aqui entra a ação que tem como resultado a voz, o fazer-se ouvir, em um ambiente de iguais, no uso do próprio discurso. Essa atividade só pode ser compreendida em ambientes muito específicos, semelhantes à ágora antiga, em que é possível o diálogo livre, sem imposição heterônoma.

Todas elas exigem o que os gregos chamariam de téchne, i.e., habilidade, prática de um ofício. Nós, via latinos, usamos o nome "arte" e, claro, expandimos seu significado para compreender outros conceitos. Porém, mesmo práticas diferentes, como a do sapateiro, do bailarino e do político, por exemplo, requerem arte naquele sentido. Se é assim, com maior força a atividade mais geral de viver também o requer. Trabalho, labor e ação são o que estruturam o ofício de viver, são o que compõem a vida enquanto arte.

Da arte dos grandes à vida dos pequenos



Arte nem sempre foi arte. Explico: a cronologia do termo mostra que nem sempre foi uma questão olhar para um quadro e perguntar: "Há algo de especial nisto?". As perguntas do passado, porém, por mais diferentes da atual, já indicavam a dificuldade de se estabelecer uma fronteira entre a obra criada e sua influência para além da criação.

Os gregos não tinham arte, mas téchne (ofício, habilidade e não expressão estética). Por isso, não havia artista, embora houvesse poesia. Homero servia, ao mesmo tempo, de criação literária e guia de condutas. Sua influência era tal que se tornou inevitável perguntar: deve o poeta ser o guia comportamental de todos?

Platão respondeu que não. E sua resposta baseou-se na premissa de que a fronteira entre invenção e realidade é difícil de se estabelecer -- ao menos da perspectiva da maioria dos homens. Só ao filósofo seria dada, após longo treinamento, a distinção. Por prudência, que o poeta se mantenha afastado.

A modernidade, por sua vez, como assevera Weber, traz a separação das esferas de valor: técnica, arte e moral passam a ser campos distintos, cada um com suas regras próprias. Não faz mas sentido perguntar se Homero retratou ou não Aquiles de forma virtuosa. A pergunta, agora sim, passa a ser: que critérios fazem dos versos homéricos algo passível de apreciação artística?

A resposta nunca foi pacífica, e houve quem dissesse ser impossível separar modo de viver de apreciação de obras de arte. Aliás, em nossos tempos, a pergunta passou a ser outra: para que indagar o que é arte, se os próprios artistas, a cada obra, parecem suspender os critérios anteriores?

Idiossincrasia do artista, critérios universais ou habilidades próprias ao ofício, pensar a arte permite intuir o quanto é difícil apreciá-la e, ao mesmo tempo, despir-se de valores. É difícil comparar influências. Homero nos forma até hoje. Porém, ao menos após o Romantismo, sua hegemonia é ameaçada por outro grande criador: você mesmo, isto é, cada um de nós.

Criadores e criaturas



Na criação dos animais, o homem saiu em desvantagem. Prometeu, compadecido, furtou o fogo divino e deu-lhe de presente. Zeus descobriu o delito e condenou-o a ter suas entranhas dilaceradas por um pássaro e, em seguida, regeneradas, para que o processo continuasse no dia seguinte. Eternamente. "Mito", poderíamos pensar. Sim, porém os limites entre vida e arte, realidade e ficção, cotidiano e extraordinário não são tão fáceis assim de ser estabelecidos.

Mito não é mentira pura e simples, mas uma construção simbólica para explicar a realidade. Um modo de ler Prometeu é encará-lo como uma narrativa de aquisição do saber e dos perigos de desmedida por ele acarretados. A sabedoria vem dos deuses, mas não sem custo. Seria o homem verdadeiramente digno de tal dom?

O soberano do Olimpo diria que não: "a condição humana é precária, e tudo o que deve fazer o homem é sobreviver e nos adorar". Um mortal retorquiria: "não somos deuses e é por isso que precisamos da dádiva". Ser humano é ser inacabado; ser inacabado é ter que se auto-criar. Não há outra alternativa.

Mas nem só de mantença própria vive o homem. A centelha divina pode servir para propósitos não utilitários. Uma vida de banalidades pode almejar a uma outra, não ordinária. Um ser incompleto pode querer forjar outro, completo. Não há como não concluir: só um mortal inventaria um deus. O contrário simplesmente não se encaixa.

O não encaixe é típico de toda criação humana, seja literária, utilitária ou existencial. Criadores que somos, inventamos nossa condição de criaturas. Criaturas que somos, nossa função é guardar nossos criadores. Existiríamos um sem o outro?

domingo, 20 de março de 2016

A história se repete como paráfrase



Relativista! Conformista! Cético! Essas palavras viraram sinônimas, no inflamado debate público nacional. Um pouco de conhecimento filosófico, no entanto, ajuda a compreender que não remetem ao mesmo sentido. A última designação, ao contrário de uma condição quase anti-patriótica, como pode pensar alguém mais engajado, pode se referir a uma atitude mais racional que expelir interjeições mal justificadas. Ceticismo, antes de tudo, relaciona-se à investigação (sképsis) e, para refinar seu entendimento, algumas distinções são necessárias.

Primeira distinção: ser cético não quer dizer ficar em cima do muro. Quer dizer investigar, antes de saber que lugar tomar em relação ao muro, deste, daquele ou em cima. Portanto, não é dizer "Tanto este, quanto aquele lado são iguais do ponto de vista deste muro, em que me localizo", nem quer dizer que "Nada farei, em relação aos lados, porque, de cima do muro, nada me afeta". O cético suspende o juízo, logo não toma lado (seja esquerda, direita, acima ou abaixo). O cético age, porque investiga, logo não se conforma. Retomarei essa diferenciação no final.

Uma segunda distinção é ainda necessária. Isso porque, do ponto de vista histórico e conceitual, há, ao menos, dois céticos possíveis. Refiro-me aos acadêmicos e aos pirrônicos.

quarta-feira, 16 de março de 2016

Cacos



Do quarto, ouço um estampido de película rompida. Ando até a cozinha e tento montar mentalmente o que aconteceu. Chapinho o piso molhado e escuro, escorrego e, antes de cair, consigo me agarrar ao armário, que me corta a palma da mão auxiliado por um caco de silício.

domingo, 13 de março de 2016

Frida Kahlo: a diferença entre selfie e autoretrato



Seguro a mão de Evelyn, e nossas retinas refletem a mesma imagem: um dos autorretratos de Frida Kahlo. Estamos na exposição “Conexões entre mulheres surrealistas do México”, na Caixa Cultural, centro do Rio de Janeiro. É domingo e, ao nosso lado, tira foto do quadro (imagem da imagem) uma dona classe mediosa, já adiantada em anos, que deveria estar em casa esperando o programa do Faustão iniciar. Apesar de utilizar uma câmera de qualidade, de nada adianta seu esforço, porque nitidamente não enxerga o que está a sua frente, apenas busca pelo salão aqueles tecidos cobertos de tinta óleo que brilham mais, para capturá-los e levá-los, na memória da máquina, para serem apreciados através da tela de um computador por seja lá quem for.

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Como a arte moderna ficou atada ao seu impulso de chocar



Roger Scruton
escritor e filósofo britânico

Qualquer um pode mentir. É suficiente que diga algo com a intenção de enganar. Fingir (faking), entretanto, é uma façanha. Para fingir é preciso enganar pessoas, incluindo a sua própria. O mentiroso simula estar chocado quando sua mentira é descoberta: sua simulação, porém, é parte da mentira. O fingidor realmente fica chocado quando descoberto, porque criou sobre si mesmo uma comunidade de confiança, da qual ele próprio é um membro.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

A continuidade de tudo o que há


Toques da mão esquerda do piano chamam pela mão direita que responde, em seguida, com dois breves sons semelhantes a um amém entoado em igrejas, após o pastor instigar os fieis. A chamada sonora volta, desta vez de um saxofone tenor e, como antes, o piano com as duas notas vem mais uma vez em auxílio. Após a repetição, a frase em que, juntos, trompete, sax e piano, ritmados pela bateria, bailam no ar. O movimento continua até que inicia o solo de Lee Morgan: bochechas plenas de ar que se esvaziam para se transformar em agudos melódicos de blues e bebop. Eis o início de “Moanin’” de Art Blakey and The Jazz Messengers.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Alva



Todos os dias passava pela frente da casa de Júlia e Alva um homem num carro muito luxuoso. Júlia demorou para notar a frequência com que passavam, Artur e seu carro, em frente a sua casa. É importante frisar que eram dois, Artur e seu carro, porque sem o último o primeiro teria muito de seu atrativo reduzido. E atrativos eram o que buscava Alva, mãe de Júlia – filha é feita para casar com marido rico para poder cuidar da mãe na velhice.

sábado, 6 de fevereiro de 2016

A raposa satisfeita



Fome envolve a raposa e, a sua frente, há uma videira não carregada, mas com um cacho vistoso demais para ser ignorado. Além disso, não há concorrência ao redor, seria fácil apanhá-lo. É preciso fazê-lo já, porque a qualquer momento pode aparecer outro animal que atrapalhe os planos.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Fica na tua, velho!



Desculpa perturbar viagem silenciosa. Humildade.

Trago utilidade, benfeitoria, solução pra dia-a-dia.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

No mesmo lugar de antes



Saio para comprar o caldo do feijão: beterraba, cebola e alho. A bicicleta está murcha; a bomba de ar, com bronquite. Vou-me a pé. Faz um sol de janeiro na Baixada. Um sol de janeiro que se compara ao sol de janeiro da Linha do Equador que me pariu. Vou-me a pé. Já alcanço a ciclovia com os olhos. Estou prestes a atravessar a rua, quando vejo sob a ponte por cima do trilho do trem uma pilha de caixas de madeira, sacolas de plástico e retalhos de roupa. Torço para que seja o lar de algum mendigo, caso contrário lanço maldições ancestrais ao indivíduo responsável e a todos os seus óvulos ou espermatozoides -- melhor, amaldiçoo seu cromossomo 21 e está tudo resolvido. Atravesso e já alcanço a ciclovia com os pés. Vou-me a pé. Passam bicicletas por mim. Aquelas ali sustentam um casal: ele alto e negro, ela alta e negra. Distanciando-se de mim, assim no horizonte desta pista estreita, não distingo quem é um e quem é dois, e não importa. São entidades que passam por mim.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Uma estória lúgubre de saudade e amor



Li a “viúva na praia” de Rubem Braga e me pus a fazer uma experiência de pensamento inevitável -- e se a viúva fosse minha? A viúva de Braga está na praia, esquina de sua casa, com um filho ainda criança a tomar banho de sal e sol. Jovem, com seu maiô preto, olhos claros, boca e dentes imperfeitos e belos, vinte e poucos anos. E se o morto da viúva fosse eu? E se a viúva fosse minha Evelyn? Estando ela em Cabo Frio, estando eu em Seropédica, coisas assim preenchem o buraco no peito que sua ausência física cava neste terreno de carne e sangue.

sábado, 9 de janeiro de 2016

Listas



Pergunte-me sobre uma lista de coisas para alcançar o seu objetivo, e eu te direi quem és. Brinquemos de dividir a humanidade em dois: aqueles que precisam de listas e aqueles que não precisam.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Barra



Você entra no ônibus já ciente de que, pela frente, terá de enfrentar um engarrafamento. Está numa cidade para onde todos os turistas vão no final do ano e tem que voltar, depois do réveillon, para trabalhar na segunda-feira. É começo de janeiro, e calhou do dia dois cair num sábado, ou seja, nem houve ontem, nem amanhã haverá transporte para a capital. Resultado: todos, mas todos mesmo resolvem sair no mesmo dia para voltar para casa. Você é todos.