terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Barra



Você entra no ônibus já ciente de que, pela frente, terá de enfrentar um engarrafamento. Está numa cidade para onde todos os turistas vão no final do ano e tem que voltar, depois do réveillon, para trabalhar na segunda-feira. É começo de janeiro, e calhou do dia dois cair num sábado, ou seja, nem houve ontem, nem amanhã haverá transporte para a capital. Resultado: todos, mas todos mesmo resolvem sair no mesmo dia para voltar para casa. Você é todos.

Na poltrona ao lado da sua, senta uma velha de oitenta e seis anos, cabelo curto pintado de acaju, óculos escuros, roliça, boca grande de quem não consegue parar de falar. Ainda em pé, você vê a sua pequena da janela acenando para você, com olhos de saudade. Acena de volta, beija a mão e arremessa alguma coisa imaginaria em sua direção. Ela faz o mesmo e o veículo parti.

Já sentado, os devidos comprimentos feitos, bom dia, senhora, ou tarde, não sei, você já sente sua cabeça na iminência de estourar, devido a todos os ingredientes dentro dessa panela de feijão, em que você é apenas um chuchu sem graça.

A velha, porém, que a essa hora já não é mais anônima, porque já se apresentou para você, seu nome é Elisa, tenta de todos os modos arrancar palavras gentis da sua alma que a legitimem continuar a dizer o que ela quiser, porque sabe que em você terá um ouvinte paciente. A princípio, sua empresa é infrutífera, mas ela é experiente nisso e não desiste fácil. De sua bolsa, tira uma barra de chocolate, daquele meio amargo de que você tanto gosta e oferece como quem não quer nada. Velho sabe reconhecer no jovem o ponto fraco, essa é uma das vantagens mágicas que adquire à medida que a pele do rosto fica enrugada.

Rapidamente, o cheiro delicioso daquela barra já derretida de calor invade seu olfato como se a própria velha, ou melhor, Elisa, tivesse passando algodão empapado de colônia de cacau nas suas narinas. Ai você pensa ai meu deus do céu, se eu aceitar um pedaço desse chocolate, a velha me compra, dane-se, eu me vendo por um pedaço de chocolate, quem sabe ela tem mais uma barra ai dentro dessa bolsa, e se eu for bastante paciente e escutar tudo que ela tem pra falar da vida, a probabilidade é grande de ganhar uma recompensa em barras de ouro, digo, de chocolate, o que dá no mesmo, mas, por outro lado, vai ter uma parada logo, logo num desses oásis de beira de pista e ai posso comprar uma barra só para mim, tenho dinheiro sobrando aqui mesmo, não custa esperar, eu não preciso me prostituir por chocolate derretido, com esse cheiro de infância e com essa textura de cobertura de bolo, eu agradeço muito, senhora, só um pedacinho.

Um comentário:

Augusto Lima disse...

Parece que o chocolate fez bem o seu papel.