sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Twins, dois corpos e uma alma?



Em 1996, a Revista LIFE trouxe na sua capa o título “Um Corpo, Duas Almas”, reportagem sobre as gêmeas siamesas Abigail e Brittany Hensel. As garotas são gêmeas coligadas cujas cabeças aparentemente partilham o mesmo tronco, braços, pernas etc, dando a aparência de um mesmo corpo sustentando duas cabeças. As irmãs ganharam certa notoriedade. Há alguns anos, deram entrevista a uma rede de TV norte americana, The Learning Channel [1] e, atualmente exibem seu próprio reality show, Abby and Brittany [2], mostrando que levam uma vida normal a despeito do que se poderia julgar à primeira vista.

De fato, numa análise mais cuidadosa, comprova-se que internamente há órgãos duplicados (esôfago, pulmões, estômago etc.), o que derruba a tese do senso comum de que se trata de um só corpo sustentando duas mentes. Mesmo assim, é interessante fazer uso dessa imagem popular que associa o que é do pescoço para baixo ao “corpo” e o que é do pescoço para cima à “mente”, porque entre outras coisas remete à separação mente/corpo discutida na Filosofia. Utilizando-se dessa mesma imagem, pode-se levantar outras questões através do curta-metragem de animação Twins (2011), dirigido pelo eslovaco Peter Budinsky [3].

Premiado por sua criatividade e expressão artística no Festival Internacional de filmes animados BANJALUKANIMA 2011, o curta chamou atenção por ser visto como tratando da temática do alter ego, expressada pela metáfora de “dois corpos e uma alma tratados de uma maneira humorística, focando no problema da intolerância e do egoísmo utilizando da estética do absurdo” [4]. Apesar do juri ter relacionado a história à temática, o filme pode ser visto como abordando outras questões.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Ideias e impressões nO que não te disse




Oque não te disse (Diego Bauer, 2014) retrata alguém que, um dia, deixou de dizer e, agora, não tem mais como falar. Relata a miséria de uma mulher que, embora desesperada, não cultiva o desespero e que, embora calada, não cultiva a inexpressão.

Explico o não cultivo da inexpressão, a seguir; deixo o não cultivo do desespero para o final.

A expressividade do curta talvez seja um dos pontos mais difíceis sobre o qual discorrer, dada sua fonte subjetiva, provinda de Jéssica Amorim. O roteiro é seu. A atuação é sua. A maquiagem é sua. O figurino é seu. Tirada a questão se a vivência ali retratada é ou não sua – é ou não, na falta de melhor palavra, “real” –, o curta é quase uma etnografia sobre como sofre Jéssica Amorim – até pelo excelente manuseio das imagens, seus ângulos e sequências, conduzidas pela direção de Diego Bauer, pela fotografia de Rafael Ramos e pela montagem de César Nogueira.

O problema é que fazer o registro descritivo de tão íntimo sofrimento não é das tarefas mais fáceis. E aqui faço um aparte para melhor me explicar.

Valho-me do vocabulário que o filósofo David Hume utiliza para explicar nossas percepções, isto é, nossos atos mentais. As percepções podem ser ou impressões ou ideias. Abstratas, as ideias são sempre percepções mais fracas, insuficientes, pouco vivas; as percepções fortes são as impressões, isto é, aquilo que nos vem por sensações e pela experiência e que são sempre instantâneas, sem mediação. Frases do dia a dia que exprimem bem essas noções humeanas são “Tenho uma ideia do que seja isso” e “Estou impressionado com o que você disse!”. A ideia é sempre mais vaga que a impressão, justamente porque é uma cópia e não o original. Hume, o principal expoente moderno do empirismo, advoga que a origem do que se conhece são os sentidos – e grande parte de nosso atual senso comum o segue nisso.

Voltando ao curta, nenhum problema há em como são retratadas as impressões de Amorim, quanto às suas ideias, porém, surgem algumas dificuldades. Utilizo-me, aqui, de dois principais elementos para embasar o que digo: seu corpo e sua voz.

As impressões são genuínas porque penso que qualquer mulher (nem precisa ser mulher, aliás), em sofrimento ou que já tenha passado por semelhante situação exasperante, ali se reconhece. Seu corpo fala e convence.

Suas ideias não.

Sua voz (em off) não acompanha seu corpo. Fortes problemas de dicção atrapalham O que não te disse. A propósito, o recurso da voz em off é um elemento que aparece pela segunda vez em uma produção da Artrupe – a primeira foi em A Segunda Balada (Rafael Ramos, 2012) –, mas que não surte o efeito esperado, penso que devido à mesma falta: a possível confusão entre o intencional falar despreocupado e realista e a simples dificuldade de pronunciar corretamente as palavras. A Artrupe (com os nomes que ainda não citei como os de Danilo Reis, Ediel Castro, Victor Kaleb e Hamyle Nobre), disparada a melhor equipe técnica que produz cinema em Manaus, nesse quesito igualmente técnico tropeça.

Volto agora ao que deixei em aberto no início: o não cultivo do desespero.

Desespero é o estado de consciência que julga uma situação sem saída. É a negação da esperança. A estória, embora na superfície possa parecer o simples retrato do desespero de alguém que está prestes a desistir de viver, na verdade, é o desenho de uma mulher que espera. A porta que a personagem abre e fecha, sempre na expectativa de que, na abertura seguinte, apareça o que ali não estava, é o indício maior de sua confiança no porvir. A cena final é rica ao explorar a semântica da porta que não se abre, mas que requisita ser aberta pelas batidas incessantes do lado de fora. O que não te disse é uma estória de esperança ao final de contas.


quinta-feira, 27 de novembro de 2014

A demiúrgica Menina do Guarda-Chuva



Uma dificuldade não fácil de resolver surge quando um filme se propõe mostrar o conflito interno de um personagem. Uma das críticas ao Hannah Arendt (Margareth von Trotta, 2012) foi exatamente o pecado cometido ao se tentar retratar uma filósofa ou, como o imaginário popular prefere, “alguém que pensa”, em seus momentos de “reflexão”. Trotta não foi feliz – ao menos neste aspecto – porque reproduziu o lugar comum do “pensador”, em cenas em que se olha para o nada, fuma-se, põe-se a mão no queixo e blá blá blá. Felizmente o erro de querer mostrar o tal do “conflito interno” não acomete A menina do guarda-chuva (veja o trailer aqui).

Inversamente à Segunda Balada (2012), também de Rafael Ramos, o conflito interno é o que menos importa – e isso é um dos maiores acertos da direção e do roteiro. Explico o que quero dizer por “conflito interno”, comparando as duas produções. Na Segunda Balada, para demonstrar que sofriam os personagens de Efrain Mourão e Diego Bauer, evidenciavam-se-lhes os contorcionismos dos músculos faciais. Na Menina, para demonstrar o mesmo, não bastou mais que oferecer o personagem de Danilo Reis... vivendo! Não precisou de nenhum close demorado em seu rosto para percebermos sua dor. Sua mudança de humor é retratada exteriormente não em seu corpo mais em outros elementos. E aqui entra um dos aspectos mais belos do filme: o colorido.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Viver ou tornar-se imortal?

Aquiles (pintura em vaso grego)

Fernando Pessoa escreve, retomando um antigo dito romano, que “Navegar é preciso; viver não é preciso”. O poeta clama para si o espírito da frase, que é o seguinte: antes de tudo – até mesmo da vida –, é necessário criar; tornar a vida grande, de toda a humanidade. É como se o poeta quisesse se tornar imortal através de seus próprios feitos, tal qual um herói épico. Este, entretanto, precisa de um aedo que cante em versos sua jornada para que, toda vez que a narrativa melódica seja entoada, sejam revividos seus feitos, e com eles sua memória. Porém, Pessoa faz crer que quer se emancipar da figura do herói para alcançar a imortalidade. Ele mesmo quer ser o herói. Os feitos não são mais de Hércules, de Aquiles ou de Odisseu, mas dele próprio: do aedo da alma que não é pequena.

Mas que condições levam alguém a crer na ideia, a princípio paradoxal, de que é preciso abandonar a vida para alcançar a imortalidade?

domingo, 28 de setembro de 2014

O autodidatismo como falsa libertação intelectual

Quem lê os diálogos em que aparece Sócrates, sabe que ele é irônico e que nem sempre tem “bom trato” em relação aos seus interlocutores. No “Crátilo” de Platão, há um bom exemplo dessa sua postura. Ao final, Sócrates não conseguindo, por todos os argumentos, convencer seu interlocutor, simplesmente se despede, dizendo-lhe: “...já que estas disposto, caminhe para o campo e leve consigo também Hermógenes, que cá está”1.

Nada demais, não é? Bom, não haveria se a) Hermógenes não fosse um nome derivado do nome Hermes (portanto ele mesmo, podendo ser um representante da divindade), se b) o próprio deus Hermes não fosse o responsável por conduzir as almas ao Hades e se c) o verbo em grego equivalente à tradução “caminhe para o campo” também não fosse o mesmo usado para as ocasiões em que as almas descem ao Hades. Em outras palavras, o que sutilmente Sócrates está dizendo é isto: vá para o inferno, Crátilo!2

No meio intelectual, não há problema algum na arrogância, considerada em si. É possível justificá-la em vários casos. Igualmente, não há problema na grosseria, também se pode justificá-la, não sempre, mas em determinadas situações certamente. Também não há problemas em proferir palavrões – o mesmo argumento. O problema que há é o de fazer uso de todos esses expedientes sem propriedade alguma. Mas o que fornece tal propriedade?

domingo, 14 de setembro de 2014

Aforismos sobre amor



AMOR

É u'a mão espremendo todo o sangue do seu coração quando ela não está presente para te abraçar.

AMOR II

É não perceber descontinuidade alguma entre o seu corpo e o dela.

AMOR III

É olhar nos olhos dela e não saber mais quem é você

AMOR IV

É adquirir o olfato de um cão.

AMOR V

É passar a ter o tato de uma aranha.

AMOR VI

É querer voltar para o ventre materno, trocando de mãe.

AMOR VII

É não ter como partir, porque suas pernas não são mais suas.

AMOR VIII

É perceber que a visão é o sentido que menos importa.

AMOR IX

É entender que imaginação, para ser realmente imaginativa, precisa muito mais de ação do que o nome sugere.

AMOR X

É aceitar a voracidade de Khronos, mas ingenuamente passar a crer que todos os momentos com ela serão regidos mesmo é por kairós.

AMOR XI

É estar envolto, em toda a polissemia da palavra.


AMOR XII

É repulsa, ao contrário.

AMOR XIII

É estar possuído por um daimonion.

AMOR XIV

É permanecer agarrados, como duas páginas em um livro, lendo-se mutuamente no escuro.


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Para Evelyn.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Regras para ser um professor: aforismos sobre a docência de ensino inferior




REGRA PARA SER UM PROFESSOR CRÍTICO

Tenha opinião sobre um filósofo clássico. Chame-o de totalitário, maluco, ideológico. Seus alunos, desinformados, irão agradecer-lhe por tornar mais palatável um autor que, caso você não houvesse etiquetado, eles jamais entenderiam.


REGRA PARA SER UM PROFESSOR POLITIZADO

Justifique porque você vota na esquerda (você não votaria na direita, votaria?). Utilize 3/4 do seu tempo de aula para isso. Seus alunos, despolitizados, irão adorar.


REGRA PARA SER UM PROFESSOR SAPIENTE

Nunca siga uma linha de raciocínio. Faça digressões ao infinito. O texto não é preciso. Notas de rodapé são precisas.


REGRA PARA SER UM PROFESSOR CUIDADOSO

Fez uma piada? Peça licença antes. Disse um comentário irônico? Explique. Seus alunos jamais serão capazes de acompanhar o seu humor.


REGRA PARA SER UM PROFESSOR ERUDITO

Não leia o filósofo cuja especialidade você declara no seu Lattes. Literatura secundária é o que há. E mais: revise o conteúdo que você ministrou na aula passada. E na aula retrasada. A nas anteriores também. Seus alunos, desinformados, jamais entenderiam um autor grego clássico mesmo


REGRA PARA SER UM PROFESSOR DIDÁTICO

Use metáforas. Explique-as. Faça piadas de bom gosto. Explique-as. Use esquemas. Explique-os. Se algum aluno perguntar algo a você, repita todo o processo novamente até o aluno, desinformado, ser vencido pelo cansaço.


REGRA PARA SER UM PROFESSOR MODERNO

Diga, ma primeira aula, que a relação de aprendizado professor/aluno, tal como está posta, esta falida. Em seguida, pegue seu giz e escreva o conteúdo no quadro para que seus alunos copiem.


REGRA PARA SER UM PROFESSOR RIGOROSO

Cite Paulo Freire e a ideia da educação como depósito bancário. Jure que você não irá reproduzir essa prática. Após isso, faça uma lista do que irá cair na prova e exija frequência militar em suas aulas. Afinal, não há outro método para que seus alunos, desinformados, aprendam algo.


REGRA PARA SER UM PROFESSOR QUE SE PREOCUPA COM O ALUNO

Nunca converse com seu aluno, que é desinformado. Cite fontes - mas nunca primárias; ele, o desinformado, jamais compreenderia -, as mais mastigadas possíveis, para que ele leia e nunca precise conversar com você sobre o tema proposto em sala de aula. Poupe seu aluno do esforço.


REGRA PARA SER UM PROFESSOR QUE PROBLEMATIZA

Ponha um problema - daqueles que você nunca conseguiu resolver durante toda a sua vida acadêmica. Mas é só para mostrar o quanto você se debruça sobre questões sérias. Passe rapidamente sobre ele. Seus alunos, desinformados, jamais seriam capazes de ajudá-lo a pensar. O pensamento é algo que só vem com o tempo e com alguns cargos no Departamento.


REGRA PARA SER UM PROFESSOR TOLERANTE

Promova um debate em sala de aula. O assunto pode ser iniciado com a exposição das razões do porquê seu candidato à presidência é melhor que o da direita. Ouça seus alunos, que são desinformados. Espere que eles terminem de falar e diga a cada um: "Eu respeito a sua opinião". E assim você terá contribuído para a formação de alunos mais críticos e conscientes.


REGRA PARA SER UM PROFESSOR AUTO-CRÍTICO

Reclame em conversas informais com os seus pares e com aqueles alunos que frequentam a sua sala - porque esses, sim, são informados - o quanto as turmas a que você tem ministrado aulas nos últimos semestres são faltosas e dispersas. Ponha a culpa na falta de atenção causada pela tecnologia do mundo moderno. Se isso não funcionar, ponha a culpa no capitalismo e nas relações de consumo


REGRA PARA SER UM PROFESSOR DEMOCRÁTICO

Diga para seus alunos: "Eu não os encaro como robôs, portanto darei atenção a cada um de vocês, como portadores de subjetividades únicas que vocês são". A partir dai, nivele por baixo a faça exposições através de esquemas. Quanto mais parecidos com aulas de História do Ensino Médio de escola pública melhor. Forneça datas - datas são importantes. Todo aquele que não se enquadrar nesse esquema é porque é desinformado. Você só não irá reprová-lo porque você não acredita em reprovação.


REGRA PARA SER UM PROFESSOR INFORMADO

Escreva no quadro - de giz branco, preferencialmente - cada detalhe biográfico do autor sobre o qual a aula se desenvolverá. Tal qual está no Wikipédia. Perca 3/4 da aula nisso. Seus alunos, desinformados, jamais terão acesso a esse conhecimento, caso você não os informe.


REGRA PARA SER UM PROFESSOR PRECAVIDO

Caso algum aluno faça uma pergunta que foge à bibliografia de autor único que você indicou, corrija o desinformado fazendo-o voltar para a segurança da fonte secundária que você recomendou. Se você descuidar, o aluno, desinformado, causará problemas, e logo todos os outros estarão fazendo perguntas. Tome cuidado!

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Carregado de ódio


Há um termo, utilizado no vocabulário marinho, que designa a escultura com feições humanas ou animalescas, geralmente em forma de busto, embora possa aparecer de corpo inteiro também, que ornamenta a dianteira das embarcações. Tal escultura serve geralmente para evocar o nome da nave e também para afastar maus espíritos. Servindo para este último propósito, a cabeça de proa é quase sempre uma criatura feroz, com feições sombrias, fechadas, feitas na medida para impor o medo. Estou falando aqui da carranca.

A origem da palavra carranca é controversa, segundo o Houaiss. Não tem etimologia. Mas ao se fazer um exercício imaginativo pode-se aproximá-la por semelhança do verbo carregar. Essa sugestão ganha ainda mais força quando se verifica que outro atributo, além de sombrio, para expressar a feição da carranca é justamente a adjetivo carregada. Carregar é adicionar algo a algum lugar. Porém, quando algo está carregado, em sentido figurado, significa que há um excesso de carga, como quando nos referimos a um “perfume carregado”. A carranca só é carranca porque apresenta as feições carregadas e, por isso mesmo, medonhas.

Deriva de carranca, o qualificativo carrancudo. O carrancudo é aquele que, além da fisionomia, tem carregado o espírito e, devido a isso, seus fluidos corporais não circulam bem. Na antiguidade, tais fluidos corporais eram chamados de humores e eram tidos como determinantes das condições físicas e mentais do indivíduo. Hoje, essa crença antiga sobrevive quando dizemos que alguém está de mau humor querendo nos referir exatamente ao carrancudo. Este, aparte de ser um doente de corpo, é sobretudo um doente de espírito, já que está carregado.

Mas qual é a causa para que alguém se encontre, nesse sentido, carregado?

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Aristóteles escravocrata



Imaginemos a seguinte situação em sala de aula. Um professor está explicando o sistema filosófico de um autor clássico. Pode ser qualquer um – de Platão a Heidegger. Ele passa pelas etapas de qualquer manual, como era de se esperar, para elucidar o pensamento em questão. O tempo passa e lá pelas tantas resolve ser “crítico” e emitir sua opinião. E eis que passam a surgir palavras que enquadram o filósofo, simplificam-no por assim dizer. “Platão é comunista ao defender sua República”, “Hegel é um idiota por tentar abarcar a totalidade do real”, “Heidegger não passou de um nazista nojento”. Os estudantes mais envolvidos sorriem; os mais eufóricos gargalham. Uns concordam. Outros acham que o professor está apenas contando uma piada e demonstrando certo espírito ao fazê-lo. Porém, aos poucos, estes últimos vão se surpreendendo ao se dar conta de que não é piada coisa alguma. O professor realmente entende os filósofos através de vocabulários avaros, como se fosse uma apostila.

Dentro de uma representação simplificada, entretanto, qualquer filósofo vira qualquer coisa. Platão com efeito se torna comunista; Hegel, realmente maluco e Heidegger, sem dúvidas, um nazista nojento cuja filosofia não apresenta valor algum. Mas, um sistema filosófico ou um filósofo podem ser entendidos a partir de termos tão minguados, mesmo quando estamos diante, por exemplo, de uma tese por eles sustentada aparentemente indefensável?

Analisemos um caso de uma tese que é tomada como indefensável para nós, ocidentais modernos que vivemos em democracias liberais: a defesa da escravidão. A defesa que fornece Aristóteles da escravidão, é possível explicá-la? Seria Aristóteles um mero ideólogo da escravidão?

terça-feira, 29 de julho de 2014

Seis personagens à procura de um autor

Viviane Mosé

Em comentário, na rádio CBN, intitulado “Diante das manifestações, adote seu filho antes que um professor de história ou filosofia o adote”, Viviane Mosé diz que estamos em uma guerra. A guerra que, de um lado, estão os professores de filosofia, corruptores da juventude (é isso mesmo: após 2.500 anos, voltamos à mesma acusação dirigida à Sócrates), e, de outro, os pais dos alunos desses professores, que não querem ver seus filhos em violentas e não democráticas manifestações de rua. O título do podcast é retirado de um depoimento de um pai de aluno, citado por Mosé.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Agarrados agarrados a noite toda

Elizabeth Bishop


Agarrados agarrados a noite toda
os amantes permanecem.
Eles revolvem-se juntos
durante o sono,

agarrados como duas páginas
em um livro
que se leem mutuamente
no escuro.

Cada qual sabe tudo
o que o outro sabe,
aprendido de cor
da cabeça aos pés.

_______________________
De Elizabeth Bishop
Traduzido por Vitor Lima
Para Evelyn

quarta-feira, 23 de julho de 2014

A epopeia de Elizabeth Bishop no Brasil

Bishop (Miranda Otto) e Lota (Glória Pires)

Há outras maneiras de interpretar um filme de amor que não como simplesmente um filme de amor. Entretanto, entendo que seja difícil, ainda mais quando o amor em jogo é um amor gay com alguma sugestão de triângulo amoroso. O filme Flores Raras (Bruno Barreto, 2013) que gira em torno do romance entre a poeta estadunidense Elizabeth Bishop (Miranda Otto) e a arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares (Glória Pires) é um exemplo. Ambientado no Rio de Janeiro, especialmente na região de Samambaia, em Petrópolis, dos anos 1950-60, a película faz referência às duas grandes mulheres que, tal qual o título sugere, são duas flores raras. Lê-las assim, porém, é o manifesto. Ao sair da sala do Teatro R. Magalhães Jr., na Acadêmia Brasileira de Letras, hoje mais cedo1, pensei que talvez a estória pudesse ser encarada por outro ponto de vista.

domingo, 20 de julho de 2014

Estaria Leonardo Boff sofrendo de uma séria doença?

Leonardo Boff


Há uma doença no meio intelectual que o torna motivo de zombaria. O efeito principal dessa moléstia é fazer com que um autor cite outro a fim de parecer mais erudito, sem se importar se o excerto utilizado se ajusta ao todo argumentativo de seu próprio texto ou se o fragmento referido não contraria o pensamento macro do pensador referenciado. Dentre os citados, Nietzsche consta com certa frequência, talvez devido ao caráter aforismático de sua obra, aberta à polissemia. Afetado pela doença e, por isso mesmo, querendo parecer inteligente, um autor cita Nietzsche. E é desse ato que surge o nome para a enfermidade inflamatória das faculdades mentais: a citanietzsche.

sábado, 10 de maio de 2014

Palmas das mãos



Fortaleza, Ceará, Centro Cultural Dragão do Mar, idos de 2008 – Estávamos eu e meu pai num concerto de música – primeira fila, canto esquerdo – acompanhando o espetáculo de um dos talentos da geração dele, meu pai, que não teve como também não me fisgar.

Francis Hime, com sua banda e com seu piano, preenchia o espaço com a habilidade de um bailarino. Já velho, gordo, cabelos brancos, meio corcunda e com um inconfundível olhar de avô maroto, aquele artista/arteiro nos conduziu a todos como um maestro o faz com sua orquestra. Corrijo-me: a quase todos.

À nossa direita, minha e de meu pai, estavam um senhor adiposo e sua esposa ossuda. Montavam um casal de gordo e magro que nos garantiu a diversão da noite que não queríamos. Sentados, permaneceram ocupados em uma conversa que nunca cessava, exceto para dedilhar vez ou outra seus respectivos celulares e sair para comprar comida e bebida. E riam e proseavam alto e comiam e entornavam seus copos de líquido que pouco importa. Em frente, um dos maiores músicos vivos de nosso tempo; ao lado, dois glutões imbecilizados. A anedota da pérola aos porcos nunca fez tanto sentido para mim e meu pai.

Não é que estivessem mal vestidos, não é que houvesse-lhes uma cárie nos dentes, não é que faltasse perfume naqueles couros úmidos. Mas não tinha como não olhar para aquilo e ver ali algo de mendigo maltrapilho, cariado e enlodado.

Em certo momento, Hime tocou Pau-brasil (Francis Hime/Geraldo Carneiro), narrando a história da menina que achou no mato uma maçã e foi surpreendida pelo deus Tupã, que lhe explicou o segredo daquela fruta: uma maçã é nada mais que uma maçã – sim, às vezes uma maçã é só uma maçã. Na simplicidade rítmica da música e na fluidez da letra, aqueles porcos não conseguiam prestar atenção na simplicidade da pérola. Não entendiam que uma maçã é uma maçã e nem sequer poderiam, não prestavam atenção em nada que se passava no palco. Incrivelmente, porém, depois de cada música eles levantavam entusiasticamente gritando BRAVO! BRAVO! para logo em seguida tirarem uma foto do que se passava. Após esse átimo, voltavam para o filisteísmo de seus sórdidos assentos.

Toda vez que vejo alguém postando uma foto de felicidade hiperativa em redes sociais me vem à mente esse caso. Digo isso porque tenho amigos e, apesar de detestar eventos de massa, sou hipócrita o bastante para frequentá-los vez ou outra e vejo neles o comportamento dos porcos descritos acima. Na minha frente, agem como se o que se lhes estivesse diante dos olhos fosse um filme sul-coreano, tedioso como o programa do Faustão, porém nas fotos e no intervalo das músicas aplaudem como se estivessem prestando atenção no que está se passando: BRAVO! BRAVO!

Não somos mais capazes de viver experiências. O que nos redime são nossas imagens expostas. Só podemos ser vivos durante algumas curtidas e compartilhamentos. Não aplaudimos mais quem merece ser aplaudido. Talvez não queiramos nem mais aplaudir; nem a nós mesmos. As palmas são somente para que sintamos algo. Dormentes, ainda nos restam as palmas de nossas mãos. Elas ainda não estão de todo destituídas de sentido. Espero que demoremos um pouco para descobrir que até elas criam calos e, com o tempo, também ficam resistentes ao toque. PQP. Contei o segredo. Nem as palmas das mãos temos mais agora.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Nelson Rodrigues, o gênio do clichê; por que não?

Nelson Rodrigues com a atriz Lea Garcia, encenando "Perdoa-me por me traíres" (1957)


As estórias de Nelson Rodrigues fizeram sucesso primeiro enquanto literatura veiculada em jornal – seja como folhetim, seja como crônica ficcional. Só depois, elas ganharam um apelo geral na teledramaturgia e na pornochanchada. Os títulos de Engraçadinha (1995) e A vida como ela é... (1996) – minisséries da Globo – são retirados, respectivamente, de seu romance-folhetim Asfalto Selvagem (1965) e de suas crônicas homônimas publicadas na década de 1950, no jornal Última Hora. O argumento da película A Dama da lotação (1978) também foi retirado de uma de suas crônicas de A vida como ela é...

Sabemos que é por essa via indireta que conhecemos Nelson Rodrigues. Temos alguma noção difusa de que ele é um autor importante. Alguns artistas, para parecerem inteligentes, até bradam: “Nelson Rodrigues é o Shakespeare brasileiro!”. Mas não sabem o porquê. Sabem que gente inteligente gosta dele, apesar de terem ouvido falar que ele é pornográfico e que toca em assuntos polêmicos como traição, estupro, incesto e assassinato. Alguns de nós que crescemos na década de 1990 talvez tenhamos visto alguma minissérie baseada em sua obra e nos deliciado com Cláudia Raia interpretando uma de suas heroínas. Talvez. O que está no imaginário de nós brasileiros é mesmo este Nelson: o indireto da TV e do cinema e o popular do jornal.

Alguns se utilizam desse imaginário para atacá-lo pela via moralista. Jugam-no da mesma forma que o julgaram os conservadores das décadas de 1940 e 1950, como um “tarado”. Outros o atacam da mesma forma que o atacaram os progressistas das décadas de 1960 e 1970, como um “reacionário” (Nelson apoiou a Ditadura Militar; até seu filho ser preso por ela...). Mas há quem hoje lhe apresente reservas por nenhuma das duas vias anteriores. Fazem-no, sim, por outras duas: indiretamente, pela interpretação que dele possam ter os conservadores atuais e diretamente, por ele ter sido alguém que não foi original. Meu amigo, o filósofo Paulo Ghiraldelli, é um exemplo. Em pelo menos três de seus textos aparecem objeções a Nelson. Tratarei deles aqui: Que fique claro que mulher não gosta de apanhar, Por que mulher precisa ser encoxada? e Nietzsche adorava sexo!

Agora, independentemente de Nelson, sei bem que em tempos conservadores um engraçadinho qualquer pode muito bem colocar essa frase “mulher gosta de apanhar” em um seu ensaio, para vender para velhotes reacionários, analfabetos funcionais e senhoras que acham culto tomar chá falando mal do governo porque fez leis trabalhistas para suas domésticas. Esses conservadores são de um tipo especial. São aqueles que as feministas, às vezes de maneira tão tola quanto eles, vão chamar de “machistas”. Pronto, está armado o circo.

Sabemos bem o quanto o que está descrito por Ghiraldelli pode acontecer e de fato acontece. O seu diagnóstico mais à frente é certeiro:
Mulher não gosta de apanhar. É o que é preciso falar para essa direita e essa esquerda que ficam disputando entre os “politicamente corretos” e os “politicamente incorretos”.  Pois antes dizer isso de uma vez que tentar explicar Nelson Rodrigues para cabeças de bagre. 

Existe algo pior que uma estória mal contada, que é exatamente explicar uma estória que não precisa de elucidação alguma. Quem leu a crônica A esbofeteada de Nelson Rodrigues sabe do que se trata. Aliás, nem é preciso se dar ao trabalho de ler – porque, ao final de contas, ler é um trabalho! –, basta que se assista à pequena esquete baseada no texto feita para a TV, parte de um dos capítulos de A vida como ela é... da Globo. Está disponível no Youtube. Nesse ponto, concordo com Paulo. É melhor dizer logo que mulher não gosta de apanhar que explicar o que Nelson queria dizer quando escreveu o seu texto e blá, blá, blá...

Porém, em outro texto, intitulado Por que mulher precisa ser encoxada?, Paulo escreve:
“Encoxar e ser encoxada ou encoxado na multidão ou nos confins de um quarto sujo de uma construção é cena de Nelson Rodrigues, e por isso eu não o vejo como escritor genial. Antes dele isso já era cliché (1).”

Na nota de rodapé anunciada acima, está escrito:
“Nelson é genial no sentido de provocador psicológico de quem o lê, aí sim. Ele mostra que qualquer um de nós pode querer violentar uma garota ou fazer coisa pior. O êxito das suas peças mostram exatamente isso: quem vê ou lê se trai ao ver duas vezes e se excitar.”

Paulo diz que Nelson é e não é um escritor genial – em diferentes acepções, claro. Ele não é um escritor genial quando é clichê e é um escritor genial quando é um provocador psicológico. Nesse ponto, concordaria inteiramente com Paulo, se eu não pensasse exatamente o contrário. Nelson é genial exatamente no clichê e não é genial exatamente na provocação psicológica.

Sua provocação psicológica é da mesma profundidade de uma notícia de jornal sensacionalista. Aparentemente, pratico aqui uma heresia, tenho plena convicção. Porém, não me acuse o leitor de não ter lido dramaturgias como Doroteia (1950), Anjo Negro (1946) ou Senhora dos Afogados (1947), por exemplo, que apresentam estruturas internas e símbolos que remetem às mais bem elaboradas tragédias de todos os tempos – de Ésquilo a O'Neill. O que quero dizer de sua provocação psicológica é que ela é tão corriqueira no que traz de conteúdo quanto o jornal de grande circulação ou as tragédias gregas que, ainda que clássicas, já estão mais que entranhadas no imaginário popular. Os jornais mais baratos sempre trouxeram o que Nelson traz – ele próprio sendo fruto desses jornais. Não preciso ler uma obra sua para me sentir provocado psicologicamente quanto ao conteúdo que leio. É só ligar a TV ou ler o jornal e, claro, não estar adormecido pela crueldade do dia a dia. É isto que quero dizer: não é ai que está a sua genialidade.

Porém, Nelson Rodrigues nunca teve outra pretensão que não a de ser um clichê. Isso não é segredo para ninguém. Corrigindo: para ninguém que o lê e sabe razoavelmente como se deu sua malfadada vida. Sua genialidade não consiste em apresentar conteúdo novo. Sua formação é de jornalista sensacionalista, seja na área policial, seja na área de esportes, enveredando, por vezes, até na área de conselhos amorosos – sob pseudônimo feminino até: Suzana Flag (hoje, Nelson não teria o menor pudor de fazer uso de um perfil fake no Facebook). Sua obra inteira reflete essa formação. Esperar dele algo diferente do popular no que ele tem de mais repetitivo é não entendê-lo. O que é genial é a forma como é apresentado, e não o conteúdo de todo esse fluxo de banalidade.

Duas, no mínimo, foram as inovações estilísticas introduzidas por ele na dramaturgia da época: o diálogo entrecortado, truncado, ligeiro e de vocabulário popular e a quebra do fluxo temporal e do espacial tradicionais das narrativa até então. Nelson ensinou a todo brasileiro que queria escrever dramaturgia como se escreve um bom diálogo. É notável sua influência nos textos que lhe sucederam até os dias de hoje. Sua primeira peça de sucesso, Vestido de Noiva (1941), é um exemplo típico do que estou falando.

O leitor já imaginou escrever uma história com o seguinte argumento: uma irmã rouba o marido da outra, que morre atropelada? Sim, é só isso. Quer coisa mais banal que isso, da profundidade de uma manchete de jornal sensacionalista, como eu já houvera dito? Pois, é. Mas foi essa peça que inventou o teatro brasileiro. E não foi o que ela trouxe de provocação psicológica ou de novidade de conteúdo, mas o que ela trouxe de banal sendo contado de um modo em que só um autor genial o faria. A história se passa em três planos: realidade, memória e alucinação. São 32 personagens, muitas vezes um ator tendo que encenar mais de um papel que, em questão de segundos, tem que se transformar em outro. Os três planos se sobrepõem, se cruzam e se confundem. Mesmo hoje esse estilo de narrativa não apresentando mais novidade nenhuma, Nelson, na estreia, teve que ler um texto, momentos antes do início do espetáculo, indicando o que iria acontecer. Após essa noite, nós brasileiros já tínhamos como dizer: “Tal qual outras nações tem os seus dramaturgos, nós também temos o nosso.”

Nelson imortalizou-se ali – ali conquistou seu lugar no panteão dos gênios brasileiros. Poderia não fazer mais nada, mas sabemos todos que ele não parou em Vestido de Noiva e produziu outras tantas obras primas – particularmente, a minha preferida é Boca de Ouro (1959), que não só contém as duas características por mim mencionadas, como tem compromisso somente com aquilo que só um escritor genuíno deve se preocupar: com a estória bem contada.

Nenhum bom escritor é bom escritor porque traz conteúdo novo. Pode ser, mas isso não é determinante. Nem o triunvirato dos tragediógrafos gregos, nem o próprio Homero, nossos arquétipos de escritores, inventaram o conteúdo de suas estórias. Elas já se constituíam em enredos conhecidos pela plateia no momento de sua representação, teatral ou rapsódica. Sempre foi a forma que uma estória é contada que fez a diferença. A genialidade de Nelson não poderia estar em outro lugar, portanto.

Mas será que Nelson nem contar uma estória sabe? Ghiraldelli, em Nietzsche adorava sexo!, faz uma comparação, dizendo que
Nelson Rodrigues nunca revelou algo interessante sobre o comportamento humano. Nadinha. Não se é um escritor da “natureza humana” por ser escroto, ainda que se possa ser genial sendo um escritor escroto.

Enquanto que
Rubem Fonseca é diferente. Aí sim há alguém capaz de falar do drama humano. Aliás, Rubem Fonseca é tão bom que ao falar dele como quem é um escritor da “natureza humana”, tenho vontade de utilizar essa expressão sem o uso das aspas, como se faria ou se fez no século XVIII ou mesmo XIX. Ele é genial para além do que um escritor é aceito como genial. É um escritor nota dez porque diz que vai terminar um conto de uma tal maneira e, cumprindo o prometido, ainda assim consegue surpreender.

Ghiraldelli acredita que a “capacidade de Rubem Fonseca de escrever de modo a não poder ser aproveitado por nós, filósofos, é o que o põe uma esquina a mais em relação a Nelson Rodrigues.” Em outras palavras, Fonseca não dá aquele ar forçadamente “filosófico” aos seus escritos, como sabemos que vários escritores dão, só para figurarem como escritores cult. Mas, espera... Nelson faz isso? Não estaria Ghiraldelli antes atacando um pastiche de Nelson Rodrigues que de fato a obra que lhe faz jus? Ao meu ver, parece ser exatamente esse o caso.

Em seus três textos que agora comento, o tema central que faz Nelson ser invocado é a mulher. A frase: “mulher gosta de apanhar”. Mas acontece que Nelson nunca disse isso em sua obra literária querendo atestar a “natureza” da mulher. Mesmo quando ele completou com a pérola “Só as normais” (o que aconteceu, inclusive, em um programa de TV, não em um de seus livros), mesmo ai o que ele estava fazendo era nada mais que uma anedota, no máximo um comentário provocador, não filosofia moral. Nelson nunca se erigiu como um escritor da alma humana. Nelson retratava obsessões, não o sexo ou o amor. Dentre as obsessões, estavam o sexo e o amor, mas ele nunca foi um escritor erótico ou romântico. Diziam-lhe freudiano. O que Nelson conhecia de Freud é o mesmo que Valesca Popozuda conhece quando diz a palavra recalque. Pediam-lhe para explicar suas peças, para clarificar se de fato tal e qual referência que lhe haviam imputado fazia sentido. Nelson retorquia que isso era trabalho de críticos, não dele. Nelson nunca leu Marx, mas isso não lhe impedia de dizer, de birra, que “Marx é uma besta”. Nelson era um ficcionista, não um escritor de metanarrativas. Se um filósofo ou outro dizem que ele fazia isso, pior para esse filósofo e para esse outro. Penso que não o entendeu.

Talvez, e isso é uma hipótese, meu amigo Paulo Ghiraldelli esteja atacando Nelson Rodrigues antes pela ótica que dele apresenta o filósofo Luiz Felipe Pondé que pela sua literatura própria. Pondé lançou seu último livro, A filosofia da adúltera (LeYa, 2013), inspirado em Nelson, mas antes disso já houvera confeccionado artigos sobre o dramaturgo. Só um filósofo leria Nelson dizendo que este fala da condição humana. Só um filósofo enxerga, em um autêntico ficcionista, um escritor da “natureza humana” – Não teria caído neste mesmo erro o próprio Ghiraldelli ao falar sobre Rubem Fonseca acima? Talvez, caso Nelson estivesse vivo, vaidoso que era, seria-lhe do agrado toda essa disputa de filósofos com livre trânsito pela imprensa falando sobre sua obra. Mas duvido que sobre isso ele tivesse algo mais a declarar do que repetir Fernando Pessoa, através de seu heterônimo Alberto Caeiro:
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas. 
Há só cada um de nós, como uma cave. 
 só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora; 
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse, 
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.  

quinta-feira, 20 de março de 2014

Discurso truncado e antijurídico

A.S. O texto a seguir não aborda o caso sob um ponto de vista filosófico. Antes da filosofia poder se constituir, há outras questões que merecem ser resolvidas. Lembrando de meus tempos de Jaqueira (apelido carinhoso da Faculdade de Direito da UFAM), faço antes um comentário estilístico e jurídico que filosófico, por entender que o erro no raciocínio por mim analisado, antes de ser ético, é de argumentação.


Fotograma do vídeo divulgado

O que dizer de um discurso jurídico que peca tanto no encadeamento de um simples raciocínio, quanto na aplicação de um instituto jurídico? Se o que está na reportagem do Jornal da Cultura Online é fidedigno à sentença judicial, o argumento usado na decisão da juíza é tanto truncado, quanto antijurídico.

A magistrada desconsidera o evidente dolo eventual, que se caracteriza quando, mesmo sem intenção declarada, assume-se o risco de produção de determinado resultado. No computo final, dolo eventual equivale a dolo comum, ou seja, ambos querem dizer que houve intenção efetiva de cometer o ato. Diferente do caso em que há culpa, quando não há intenção alguma (havendo ou imperícia, ou negligência ou imprudência).

Segundo a reportagem, são palavras da juíza:

"Assim sendo, por mais fortes, chocantes e, até mesmo revoltantes que sejam as imagens da senhora Cláudia Ferreira da Silva, já baleada, sendo arrastada no asfalto presa ao reboque da viatura, dos termos dos autos do APF [auto de prisão em flagrante] não é possível inferir que os policiais militares presentes na viatura conheciam tal circunstância e a ignoraram. Ao contrário, o que mostram as imagens é que a viatura parou e dois policiais desceram para a colocarem de volta no interior da viatura" 

Como não é possível inferir que eles conheciam a circunstância e a ignoraram? 

Se alguém - seja uma autoridade pública, seja um cidadão comum - transporta uma pessoa baleada até o hospital, é mais que razoável inferir que isso seja feito com o máximo de diligência possível. E enfatizo o possível, porque não quero dizer ideal, abstrato, mas à luz das circunstâncias. Agora, prestar atenção, no sentido mais simples de manter os olhos na pessoa transportada durante o caminho até o hospital é o mínimo - repito em caixa alta, MÍNIMO - de diligência que se espera. Por isso que os policiais, se não tinham intenção declarada, assumiram todos os riscos de acontecer o que aconteceu. A magistrada, quando nos quer fazer acreditar o contrário, parece agir por motivos não muito claros.

A reportagem também menciona que "os PMs decidiram transportar a mulher no porta-malas por terem sido hostilizados por moradores da comunidade". Não importa. Como já mencionado, espera-se somente o mínimo de diligência: por os olhos na pessoa transportada durante o caminho até o hospital. Esse mínimo, mesmo em vista a hostilização, não poderia ter sido descartado.

Além disso, há um raciocínio truncado difícil de aceitar. Repito o trecho do discurso da magistrada:

"não é possível inferir que os policiais militares presentes na viatura conheciam tal circunstância e a ignoraram. Ao contrário, o que mostram as imagens é que a viatura parou e dois policiais desceram para a colocarem de volta no interior da viatura"

Segundo a juíza, não é possível inferir que os policiais sabiam da circunstância; "ao contrário" (?), eles desceram da viatura e colocaram a mulher de volta. Ora, o que a juíza, no seu próprio discurso, mostra é que eles sabiam, tanto é que saíram da viatura e puseram a mulher de volta. Como assim "ao contrário"?

O discurso da magistrada é tão deficiente que erra tanto juridicamente quanto argumentativamente. Isso é estranho. Para não dizer outra palavra mais dura ao discurso de uma magistrada legitimamente constituída.

sábado, 8 de março de 2014

O corpo é todo da mulher! Não, pera...


A.S. Hoje é dia da mulher. E, de cara, peço uma coisa à leitora: sem essa de dizer que só hoje que é dia da mulher, e que os demais dias pertencem aos homens. Reclamar que a mulher só tem um dia, assim de forma banal, é coisa de gente que não sabe a função de um dia comemorativo. Deixemos isso de lado, hoje é dia da mulher. E o que pode fazer um texto dedicado ao dia da mulher? Poderíamos falar da essência da mulher, talvez, e dizer o quanto ela é especial em nossas vidas, dizer que sem ela não viveríamos, dizer que ela é o que de mais perfeito há. Yes, we can. Isso, porém, todo aquele que consegue olhar nos olhos de uma mulher e que consegue emitir alguma coisa além de grunhidos tem por dever falar frequentemente, não só no dia da mulher. Defender a essência da mulher nesses moldes é coisa que todo micróbio sabe fazer. O que quase todo mundo não sabe fazer e se atrapalha todo quando tenta é defender não a essência, mas o corpo da mulher.
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Sabemos que uma das pautas mais pertinentes do movimento feminista é a reivindicação de que o corpo da mulher a ela pertence e a mais ninguém. Ela faz o que quiser com ele. Concordo com essa tese geral. Mas encontro um problema com alguns daqueles que, iguais a mim, também concordam. É que eles, no caminho da defesa dessa tese, acabam por desdizê-la e por cair em algo que eles próprios, assim como eu, combatem: o moralismo barato. Tentarei explorar isso aqui. Seguirei o seguinte procedimento: montarei um personagem fictício que explicará, através de cartazes levantados em protestos feministas, como esse movimento luta em prol do esclarecimento e da conscientização da mulher sobre o seu próprio corpo. Vamos a ele.

We Can Do It! de J. Howard Miller, 1943

Eis uma imagem emblemática do movimento feminista. De propaganda de guerra criada na década de 40, ela virou símbolo de luta do feminismo nos anos 80 e serviu até de campanha política. Certamente é uma imagem encorajadora e que indica que, em termos de força física, a mulher pode ser tão capaz quanto o homem. É uma primeira indicação que ela tem condições de proteger o próprio corpo porque ela própria é forte. Nada de sexo frágil.

Manifestante de rua em protestos no Brasil (imagem da internet)

O cartaz acima já é bem mais recente e mostra uma mulher reclamando o direito de poder usar roupa provocante (a saia, no caso) e ainda assim não querer diretamente atingir ninguém, seja via sedução, seja via protesto contra os "bons costumes". É a reivindicação de usar uma saia curta, assim como um homem usa um calção curto - naturalmente, sem conotação sexual ou política necessárias. O que está em jogo é a exposição do próprio corpo da maneira que ela própria bem entenda. Convenhamos, é preciso ser muito ressentido ou muito conservador para não endossar esse tipo de reivindicação.

Cartaz de rua em protestos no Brasil (imagem da internet)

Se a mulher pode usar a peça de roupa que ela bem quiser, onde ela bem quiser, ela igualmente pode deixar de usar a peça de roupa que ela bem quiser, na ocasião que ela preferir. O corpo da mulher é completamente dela, e só interfere nele quem ela deixar - eis uma tese mais do que justa! Estamos, agora, preparados para algo além de cartazes que defendam o corpo da mulher; agora, o próprio corpo é o cartaz:


Manifestante de rua em protestos no Brasil - 2 (imagem da internet)

Sim, o próprio corpo é o cartaz. Como não poderia sê-lo? O corpo passa a ser valorizado: "EU NÃO SOU COISA!", "MEU CORPO ME PERTENCE", "RESPEITE". A imagem é emblemática porque não é uma boca que fala, não é um rosto que aparece, não é um objeto que contém palavras, mas sim as costas, uma parte do corpo que não se dá muita importância. E ainda assim, tal qual uma tatuagem, as letras estão lá para mostrar que cada parte do corpo merece destaque e pode ser exibida como bem convier a mulher que o mostra. Depois desse estágio, a mulher está pronta para dizer: "MEU CORPO MINHAS REGRAS" e se orgulhar disso, não é mesmo?!


Encarte do CD do grupo Gaiola das Popozudas


Valesca Popozuda (imagem da internet)









Desde que essa mulher não seja uma... uma... uma funkeira (cuspe no chão). Sim, porque uma funkeira não esta legitimada a fazer parte da luta conscientizadora das mulheres esclarecidas contra o machismo e o patriarcalismo opressores. Tudo o que uma funkeira faz é denegrir a imagem da mulher. A funkeira mostra a mulher como mais um pedaço de carne, como sendo nada além de um objeto. Não importa que Valesca Popozuda (cuspe no chão) tenha posado para foto com dizeres típicos de uma feminista esclarecida em protesto. Ela é uma funkeira, e uma funkeira jamais pode ser esclarecida. Uma funkeira é alienada e tudo o que ela representa é o resultado da decadência em que pode se encontrar alguém vítima do capitalismo selvagem, da sociedade de consumo e de espetáculo. Como alguém que canta músicas (músicas?), cujos nomes são Agora virei puta, A foda tá liberada, Quero te dar, Fiel é o caralho e Tô com o c* pegando fogo, como pode alguém assim ser não alienada? Pouca importa que ela tenha uma música (música?) chamada "Minha buceta é poder" - outra mensagem feminista típica -; no máximo ela copiou de algum cartaz e fez uma música (música?) sobre porque achou bonitinho.

Aqui, encontramos uma primeira ressalva à regra: o corpo é todo da mulher, desde que ela não seja funkeira, que funkeira é alienada.

Espera, há outra ressalva que eu acabei de pensar aqui. Vê se eu não tenho razão. O que você me diria das misses, aquelas mulheres que se vendem às aparências e vivem de mostrar o corpo? Tá certo que o corpo é da mulher, mas elas não sabem o que estão fazendo. Não é possível que saibam. OK, a Miss Brasil eu posso até deixar passar, porque ela tem conteúdo, é inteligente, lê livros (nem que seja só O Pequeno Príncipe, mas lê). Mas o que eu não suporto são aquelas mulheres que vendem o corpo (parecendo mais umas... putas), como é o exemplo da Miss Bumbum. Ano passado, quatro delas fizeram um protesto contra o grupo Fêmen, querendo fazer com que a gente acredite que elas são algo além do corpo. É claro que elas são só corpo. Olha a foto delas:


Aqui, aproveito para colocar outra ressalva na regra geral: o corpo é todo da mulher, desde que ela não seja funkeira, que funkeira é alienada, e nem Miss Bumbum, que também é tão alienada ou até pior. Aliás, quem foi que começou com esse papo mais sem pé, nem cabeça que o corpo tem que ser só de responsabilidade da mulher, mesmo? Isso não faz o menor sentido!
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P.S. Esperemos que este texto não precise de explicações. De resto, neste dia, desejo às mulheres que eu amo, que eu as continue amando, porque elas continuarão sendo muito sortudas por me terem em suas vidas.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Salamanca




Já imaginou que você pode estar agora em um álbum de família de alguém que não conhece, em um país que você não sabe sequer pronunciar o nome em sua língua nativa? Pois é o que acontece quando você está caminhando pela rua e, de repente, flash! – sua imagem é capturada sem querer pela câmera de um turista como parte do pano de fundo de uma foto.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Sheherazade tal qual



Há uma aparência de que a jornalista Rachel Sheherazade aprendeu com maestria a prática de incitação ao crime (art. 285, Código Penal Brasileiro). O seu último discurso polêmico na TV pode levar a crer que, de alegada vítima, ela passou a agente do tipo penal que tanto condenou tempos atrás. Mas não é isso que quero discutir. É outra coisa.

Sheherazade defendeu os justiceiros que amarraram o suposto bandido ao poste pelo pescoço, ao mesmo tempo que o desnudaram e o deixaram exposto nessa situação por tempo considerável – sem falar no pedaço cortado de sua orelha. Ataque compreensível e até misericordioso a um marginalzinho que já vinha aterrorizando a vizinhança há algum tempo, sem que a polícia tomasse providências – alguns diriam sem pestanejar. Muitos de nós, brasileiros, já presenciamos algo assim em nossas vizinhanças. Eu, quando morava em Manaus, já. A vizinhança onde fica a casa de minha mãe vira e meche sofre desse mau. Já pegaram um desses assaltantes, lá no Norte. Já o quase lincharam. Eu vibrei, óbvio. Alguém exatamente como ele já apontara uma arma para a cabeça de minha irmã, xingado-a de vagabunda e roubando-lhe o notebook, enquanto ela ia trabalhar de manhã cedo. Se fosse eu que tivesse encontrado o sujeito, não faria diferente do que fez minha vizinhança.

Sim, estou confessando um pecado, mesmo não sendo você, leitor, um padre. Para mim é uma questão de honestidade intelectual. E diria mais: eu desconfio enormemente de quem, passando pela situação que passei, com um ente querido, não houvesse pensado como eu. Alguém que não tivesse pensado como eu, provavelmente, seria uma pessoa que pouco ou nada tem de leal com os que lhe são queridos. Defender, do ponto de vista pessoal, o direito do “bandido”, em detrimento do da vítima, ainda mais quando esta é sua irmã, é uma aberração moral. Isso faz de mim alguém que é contra os direitos humanos?

Não.

Os únicos lugares em que eu irei escrever “direitos humanos” são aqui e no parágrafo anterior. Esse termo, de tão dito por gente que não faz ideia do que seja, já se desgastou ao extremo. Usarei, então, simplesmente a palavra Direito – no sentido mesmo de ordenamento jurídico, somado ao conjunto de instituições que o executam, criam e julgam. Por que esse termo é importante? Porque é ele que vai dizer o que eu devo fazer com o meu pensamento pessoal: levá-lo a cabo ou refreá-lo.

Vivo em algo que se chama sociedade e sob o jugo de algo que se chama Estado. Uma das explicações filosóficas do porquê eu me encontrar nesta situação é explicada pelo contratualismo. Há várias versões de contratualismo, mas é comum se dizer que, para quem defende essa narrativa, a sociedade surge da seguinte maneira. Em uma situação onde não há Estado, cada homem tem para si sua liberdade inteira. Acontece, porém, que é comum que haja toda sorte de conflito e de desentendimento entre eles, de modo que, na prática, nunca é possível usufruir sequer a ínfima parte dessa liberdade. Então, cansados de só viver no meio de temores e de encontrar inimigos por toda a parte; fatigados de uma liberdade cuja incerteza de conservação a torna inútil; os homens sacrificam parte de sua liberdade para gozar-lhe do restante que lhes sobra com mais segurança. Assim forma-se a soberania de uma nação, que consiste na soma das porções de liberdade sacrificadas ao bem geral. Surge, então, a figura do Estado, aquele que é encarregado pelas leis do depósito das liberdades e dos cuidados da administração. Uma vez criado, só ele pode tirar liberdades; os homens, uma vez sem parte de suas liberdades, esperam que os demais respeitem-lhes as posses do que eles ainda guardam de liberdade.

Nessa linha, o Estado é limitador em sua origem, portanto. Ele limita para poder garantir a liberdade, ainda que não inteira. Mas o que Sheherazade sugere é que tal Estado não existe e que o que reina é um estado de violência sem limite, tal qual o estado de natureza, condição pré-estatal do homem. Tendo isso como premissa é considerado legítimo o contra-ataque aos que ela chama de "bandidos”, não sendo o que os justiceiros fizeram nada mais que uma “legítima defesa coletiva”. Sheherazade acerta? Quase. Se não fosse por uma coisa...

O Brasil possui um Estado!

É o Estado Brasileiro, a quem também denominamos de um Estado Democrático de Direito, que me diz o que devo fazer com a posição pessoal que confessei acima. É de acordo com ele que, não mais pessoalmente, mas publicamente, não defendo qualquer linchamento a quem quer que seja, inocente ou culpado. É porque vivo em um Estado, ainda que em grande parte omisso, que sei que minha lógica pessoal, uma vez aplicada de forma geral, só irá se voltar contra mim. É esse mesmo Estado que me faz distinguir entre justiça e vingança. Será que Sheherazade, então, estaria defendendo uma espécie de volta da Lei de Talião?

De novo: não.

Na letra da Bíblia, a lex talionis seria o seguinte:
Mas, se houver dano grave, então darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe (Êx. 21.23-25)
É o famoso olho por olho, dente por dente. Porém, o que não atentamos quando falamos desse preceito normativo é que ele já carrega em si um tanto de civilização. O conceito jurídico primitivo expresso é o da justa reciprocidade do crime e da pena. Etimologicamente falando, lex é lei, e talis é tal, de tal tipo; de onde se tira a seguinte ideia: tal crime, tal qual pena. Não nos esqueçamos também que a primeira notícia escrita que temos desse preceito é o Código de Hamurabi, lei escrita mais antiga (ou uma das mais antigas) de que se tem notícia. Nela, já havia um poder centralizado, portanto é possível pensar que não houve uma simples transposição do que era oral, consuetudinário para algo escrito. Talião guarda uma certa ideia de equilíbrio baseado na ideia de retribuição equitativa do dano sofrido, coisa completamente diferente do que conhecemos por vingança pessoal. Quando há vingança pessoal, não há retribuição equitativa, o que há é justamente o exagero na retribuição. Se alguém nos tira um bem, tiramos-lhe dois bens; se nos insultam, quebramos-lhe a perna; se matam alguém querido nosso, assassinamos-lhe toda a família – eis a lógica da vingança pessoal. Ela nunca é contida, sabemos.

É pelo que expus no parágrafo acima que não posso dizer que Sheherazade esteja defendendo a Lei de Talião. O que ela parece defender é algo mais primitivo, algo mais afeito à vingança pessoal mesmo. Não podemos dizer que o que os justiceiros fizeram com o suposto bandido foi uma “legítima defesa social”, nas palavras da jornalista. Legítima defesa pressupõe moderação. O que fizeram foi tortura e humilhação pública – noções que não casam com moderação. O bandido suposto já estava detido, não havia porque – exceto pelo desejo de vingança pessoal – mantê-lo do modo como ele foi mantido. Defender isso é defender um estado de coisas em que não existe Estado; é não defender a volta da segurança pública. Sheherazade fica, então, como já sabemos: tal qual sempre foi. E não faltarão aqueles que a queiram seguir. Tal qual.