quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Carregado de ódio


Há um termo, utilizado no vocabulário marinho, que designa a escultura com feições humanas ou animalescas, geralmente em forma de busto, embora possa aparecer de corpo inteiro também, que ornamenta a dianteira das embarcações. Tal escultura serve geralmente para evocar o nome da nave e também para afastar maus espíritos. Servindo para este último propósito, a cabeça de proa é quase sempre uma criatura feroz, com feições sombrias, fechadas, feitas na medida para impor o medo. Estou falando aqui da carranca.

A origem da palavra carranca é controversa, segundo o Houaiss. Não tem etimologia. Mas ao se fazer um exercício imaginativo pode-se aproximá-la por semelhança do verbo carregar. Essa sugestão ganha ainda mais força quando se verifica que outro atributo, além de sombrio, para expressar a feição da carranca é justamente a adjetivo carregada. Carregar é adicionar algo a algum lugar. Porém, quando algo está carregado, em sentido figurado, significa que há um excesso de carga, como quando nos referimos a um “perfume carregado”. A carranca só é carranca porque apresenta as feições carregadas e, por isso mesmo, medonhas.

Deriva de carranca, o qualificativo carrancudo. O carrancudo é aquele que, além da fisionomia, tem carregado o espírito e, devido a isso, seus fluidos corporais não circulam bem. Na antiguidade, tais fluidos corporais eram chamados de humores e eram tidos como determinantes das condições físicas e mentais do indivíduo. Hoje, essa crença antiga sobrevive quando dizemos que alguém está de mau humor querendo nos referir exatamente ao carrancudo. Este, aparte de ser um doente de corpo, é sobretudo um doente de espírito, já que está carregado.

Mas qual é a causa para que alguém se encontre, nesse sentido, carregado?

Simples: alguém permanece carregado enquanto não descarrega. Então, quando se está carrancudo, de mau humor, basta que se encontre uma atividade que permita o descarrego do que está obstruindo a boa circulação dos fluidos do corpo para que se volte a ter um bom humor. Quando a carga são os sentimentos de tristeza e raiva do dia-a-dia, por exemplo, assiste-se a uma comédia, escuta-se heavy metal, da-se um tapa na cara de alguém, na cama de preferência... E por ai vai. Contudo, há casos em que o descarrego não é tão simples. Há pessoas que simplesmente não conseguem descarregar. O caso do bufão Pagliacci, que aparece em uma das edições da HQ Watchmen, é um exemplo clássico. A estória é mais ou menos esta:
Eu escutei uma piada uma vez:
Um homem vai ao médico.
Diz que está deprimido.
Diz que a vida é dura e cruel.
Diz que se sente só em um
mundo hostil.
O doutor diz: “O tratamento é simples.
O grande bufão Pagliacci está na cidade.Vá assistir-lhe.Isso deve animá-lo.”
O homem cai em prantos.
Diz: “Mas, doutor... Eu sou Pagliacci.”

Para além da questão psiquiátrica – e, portanto, médica – que Pagliacci possa suscitar, ele faz aparecer uma questão filosófica. É possível pensá-lo através de uma tipologia. O tipo representado por Pagliacci é o daquele que simplesmente não é capaz de descarregar – afinal, ele é o profissional do riso e ele próprio não consegue rir! Foi Nietzsche quem primeiro pensou em descrever a tipologia daquele que, como Pagliacci, simplesmente não é capaz de descarregar. Na nomenclatura nietzschiana, trata-se do fraco, do doente, do escravo – todos nomes para designar uma mesma noção.

É na Primeira Dissertação de sua Genealogia da Moral (1887), que Nietzsche expõe essa tipologia. Porém, para entender propriamente o que é o fraco, é preciso antes entender aquele a partir do qual ele se constrói, isto é, o forte.

O forte é aquele que apresenta um excesso de força e por isso não tem como não moldar o ambiente em que está inserido, sem que para isso tenha que pedir permissão – afinal, só se pede permissão para algo maior, entretanto o forte já é ele mesmo o algo maior. Decorrente disso, o forte apresenta certa imprudência, apresentando uma exaltada impulsividade na cólera, no amor, na vingança. Isso faz com que, mesmo que apareça nele alguma forma de mágoa, ela se consuma e se exaura numa reação imediata. Em outros casos, nem sequer aparece, porque não é característica sua levar a sério por muito tempo o inimigo. Quando este não é abatido num átimo é porque possui força comparável a sua e, por isso, é digno de veneração, não de desprezo. Resultado é que o forte esquece e não guarda ressentimento, mesmo quando não consegue abater o inimigo de uma vez.

Ao contrário, o fraco não esquece, dado que não pode descarregar sua mágoa. O fraco não possui alternativas – e em todas elas sua memória é atiçada –, a não ser i) ou curvar-se diante do inimigo e, portanto, servir-lhe de escravo ii) ou aguardar a oportunidade sorrateira de abatê-lo. O não esquecimento do fraco ilustrado por Nietzsche através da metáfora do caldeirão do ódio insatisfeito. A metáfora sugere que o ódio é preparado como se fosse um artigo de culinária. Desse caldo repugnante, cozinhado permanentemente, resulta o ressentimento. Do conteúdo do caldeirão, o fraco se nutre. E se, como diz o ditado, você é o que você come, o fraco se torna por excelência o homem do ressentimento.

Não é que o ressentimento, causado pelo ódio contido, não acometa também o forte1; no fraco, porém, ele envenena de tal modo que nada mais o move – e a palavra usada por Nietzsche é exatamente esta: veneno. Por não conseguir colocar para fora o veneno, em outras palavras, por não conseguir descarregar, o que caracteriza o fraco é o mau humor, em oposição à jovialidade característica do forte, que por isso mesmo é espirituoso, engraçado, bom humorado.

Nietzsche costura a sua Filosofia da História a partir do que ele chama de a revolução escrava na moral. Ela começa quando o ressentimento se torna criador e gera valores – o ressentimento dos seres aos quais é negado o ato de descarregar o veneno. Em oposição aos valores do forte que são essencialmente violentos, quando vistos da perspectiva de quem não é forte, o fraco passa a gerar valores contrários. Onde se tem o copioso, o fraco opõe o ralo; onde o conturbado, o plácido; onde o imprudente, o disciplinado. Nietzsche diagnostica, mas se opõe a tal estado de coisas. No fim do parágrafo 12, da Primeira Dissertação, da Genealogia da Moral, lê-se:
Hoje nada vemos que queria tornar-se maior, pressentimos que tudo desce, descende, torna-se mais ralo, mais plácido, prudente, manso, indiferente, chinês, cristão – não há dúvida, o homem se torna cada vez “melhor”... E precisamente nisso está o destino fatal da Europa – junto com o temor do homem, perdemos também o amor a ele, a reverência por ele, a esperança em torno dele, e mesmo a vontade de que exista ele. A visão do homem agora cansa – o que é hoje o niilismo, se não isto?... Estamos cansados do homem...

A revolução escrava na moral se traduz na lenta consolidação do niilismo, ou seja, no “cansaço” que se sente quando se tem por guia o que Nietzsche considera como valores apequenadores do homem, em outras palavras, tudo o que o afasta do que seria o forte e tudo o que o aproxima do que seria o fraco. Utilizo o verbo ser no futuro do pretérito porque, de fato, os tipos nietzschianos não foram feitos para se concretizar, mas tão somente para servir de parâmetro comparativo para diagnosticarmos as hábitos gerais e individuais de nós mesmos.

Dessa maneira, é possível encontrar este ou aquele que age conforme esta ou aquela característica do forte ou do fraco, mas nunca o forte ou o fraco efetivamente. É assim que, ainda que não endossemos completamente o niilismo como fio condutor da História, isto é, que não entendamos a História como a narrativa que conduz ao apequenamento do homem, é possível fazer uso da tipologia nietzschiana e, com ela, não perder de vista o seu aviso de que o homem apequenado “cansa”.

Muito em decorrência dessa sua posição, Nietzsche via com maus olhos muitas medidas introduzidas pela modernidade, como a igualdade clamada e conquistada pelos movimentos sociais e a consequente suavização das relações humanas daí advinda. Afinal, como assegurar que o clamor por igualdade social não se traduziria em uma prática consolida de nivelar as práticas por baixo e, consequentemente, de aceitar a mediocridade como parâmetro? Por isso é pouco provável que Nietzsche reconhecesse os benefícios de práticas de suavização como as iniciadas pelo movimento “politicamente correto”.

Entretanto, nós, adeptos da democracia liberal, devemos manter posição contrária a de Nietzsche. Podemos entender que o “politicamente correto” foi resultado de um movimento que iniciou com o intuito de conduzir a conversação pública para níveis de suavidade necessários, níveis exigidos inclusive desde que a arcaica sociedade de mercado começou a se implantar. Não seria razoável discordar que, de fato, mudanças semânticas se traduzem em mudança de hábitos. E do campo filosófico para o campo político, o “politicamente correto” resultou em um aperfeiçoamento da democracia, fez com que ela se tornasse menos cruel.

Em um primeiro momento, não poderíamos permanecer como em O Mercador de Veneza (1596) de Shakespeare, ou seja, a continuar publicamente cuspindo na cara de judeus, se é deles a quem cristãos fidalgos recorrem, ainda que às escondidas, quando precisam de dinheiro. Em um segundo momento, não poderíamos continuar, como bem mostra a série de televisão Madmen (2007-) criada por Matthew Winer, a utilizar vocabulários inferiorizantes para negros e mulheres se, de um lado, eles são quem em sua maioria consomem e, então, fazem o mecanismo econômico funcionar e se, de outro lado, elas estão no mesmo ambiente de trabalho que nós, até mesmo em cargos de chefia que outrora monopolizávamos. Em outras palavras, dentro do movimento do “politicamente correto”, aprendemos que não devemos ofender gratuitamente grupos emergentes ou potencialmente emergentes que podem vir a fazer crescer a vida do mercado, melhorando ao mesmo tempo esse mesmo mercado.

Democratas liberais como nós não devemos esquecer dessa origem do “politicamente correto”. Porém, também não podemos fugir da auto-crítica, ainda mais quando vimos os frutos, nem sempre tão bons, provindos dele. O exemplo mais recente em nosso País foi noticiado no último domingo. Os professores de cursinhos de preparação para vestibular estão tendo que não mais utilizar as tão famosas piadas que utilizam em sala de aula – chistes, sabemos todos, entendidos por muitos como portando conteúdo racista, machista, xenófobo etc.

Como bem ressalta Hélio Schwartsman, em seu artigo de hoje (13/08) na Folha de São Paulo, intitulado “Juventude carrancuda”, há duas questões nesse caso.

A primeira é lembrar que esses gracejos constituem o cotidiano de qualquer cursinho desde que eles surgiram. Professores de cursinho são conhecidos por serem mais sagazes, exatamente por possuírem aquele time que falta aos professores de colégios regulares. Coisas dessa peculiar prática docente que tem que dar conta de chamar e manter a atenção de uma infinidade de cabeças e fazer com que dali saiam o máximo de aprovações no vestibular, de modo a manter no topo publicitário a instituição para a qual trabalha – seu emprego depende disso. Seu salário é maior também, o que faz toda a diferença. Além disso, lembro outro fato que Schwartsman não menciona: os alunos que geralmente frequentam cursinho estão ali por que querem, afinal não se trata de uma obrigatoriedade do ensino regular. E se estão ali volitivamente, o empenho e o entrosamento que se espera é totalmente outro, o clima em sala se torna muito mais amistoso, propenso mesmo a comentários espirituosos, chistosos, engraçados, típicos de uma roda de amigos.

A segunda é lembrar o que fizemos há quatro parágrafos, ou seja, recordar que, considerado em si, o “politicamente correto” nada traz de prejudicial, ao contrário, como ele diz, pode ser visto como um “efeito colateral de um movimento civilizador, que foi a mobilização da sociedade para conter seus impulsos racistas e sexistas”. A conclusão de Schwartsman é a de que reprimir as piadas dos professores de cursinho pode até conter-lhes o conteúdo ofensivo, porém reprime igualmente o humor que, em suas palavras, “priva a vida de seus sabores”.

Penso que Schwartsman foi suave na conclusão. Tenderia mais a concordar com Nietzsche e dizer que antes de nos privar de seus sabores, medidas como essa nos privam da própria vida e de tudo o que ela tem de afirmador de jovialidade. Acusar professores de cursinho de ofensores de minorias é descontextualizar totalmente o jogo semântico estabelecido em sala de aula de um pré-vestibular. Atacar-lhes por essa via equivale e tirar-lhes a espontaneidade e, consequentemente, todo o diferencial que apresentam em relação aos demais. Não bastam todos os ataques estruturais que a educação formal obrigatória já sofreu, agora desferem golpes até na sala de aula não obrigatória.

Não tenho como não comparar atitudes como essa como participando da tipologia do homem do ressentimento. O título do artigo de Schwartsman é indicativo, “juventude carrancuda”. Trata-se exatamente do jovem mau humorado, aquele que, como eu disse antes, além da fisionomia, traz o espírito carregado. O jovem que acusa, nesse contexto, o professor de racista, sexista, xenófobo ou seja lá o que for, pende muito mais para aquele aluno que não consegue entrar no jogo educacional que, sabemos nós – que somos bem sucedidos nos estudos e não tiramos só notas altas, como também tiramos vivências do que estudamos –, não se faz por uma leitura fria e formal do conteúdo disciplinar, mas sim no jogo de pensar na hora, de argumentar no improviso, de participar do riso espontâneo causado pelo espanto da descoberta intelectual. O aluno que reclama do professor por motivo tão mesquinho é, sem dúvidas, o típico carregado que é incapaz de descarregar. Sua única alternativa, uma vez que não consegue se livrar do ressentimento de nunca aprender nada, é tirar a vitalidade de quem entra no jogo educacional. Quando o “politicamente correto” se torna sinônimo de censura, estupidez e incapacidade de humor, assume as vezes do que fazia a Educação Moral e Cívica, imposta pela Ditadura Militar (1964-1985). Quando uma ferramenta liberal se torna um instrumento despótico, é preciso se erigir contra e lembrar que um martelo é feito para martelar pregos e não cabeças. Ou talvez nem isso lembremos mais. Talvez já estejamos todos cansados é de martelar.

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1“Mesmo o ressentimento do homem nobre, quando nele aparece, se consome e se exaure numa reação imediata, por isso não envenena: por outro lado, nem sequer aparece, em inúmeros casos em que é inevitável nos impotentes e fracos.” (§ 10, Primeira Dissertação, Genealogia da Moral)

3 comentários:

Penso logo escrevo disse...

Quem sabe os professores deveriam fazer piadas inteligentes em vez de preconceituosas, afinal eles estão ensinando matemática, química, biologia... Acho desnecessário uma piada de cunho preconceituoso dentro de uma sala de aula, se o professor achar difícil, que tal ele tentar um emprego como humorista de standup comedy. Aí sim um espaço adequado para esse tipo de humor.

Vitor Lima disse...

Cara, um comentário que nem o seu é de quem não tem a mínima noção do que é a relação pedagógica, de como ela se deu historicamente e de como ela se dá em círculos de liberdade. Que tal pesquisar o que era a Academia platônica por exemplo que, na porta, já era discriminatória, dizendo "Mantenha-se longe aquele que não souber Geometria"? Não há piada discriminatória ou preconceituosa em si mesma, avaliada independente da situação. Pensa nisso mais um pouco - sugestão minha.

Augusto Lima disse...

Como poucos do ramo sabem, numa sala de aula, tudo pode servir como matéria prima para o objeto do conhecimento - até mesmo chistes. Não importa se provêm de docentes ou discentes, isso também vale para qualquer ambiente onde há inter-relação humana. No jogo maduro, os comentários, mesmo maliciosos, podem ser produtivos, desde que não sufoquem um porvir lúdico. Acima de qualquer coisa, está o crescimento com alegria (sem tristeza, sem carrego).
Parabéns pelo desenvolvimento do assunto. Achei showwwwww!!!