quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Aristóteles escravocrata



Imaginemos a seguinte situação em sala de aula. Um professor está explicando o sistema filosófico de um autor clássico. Pode ser qualquer um – de Platão a Heidegger. Ele passa pelas etapas de qualquer manual, como era de se esperar, para elucidar o pensamento em questão. O tempo passa e lá pelas tantas resolve ser “crítico” e emitir sua opinião. E eis que passam a surgir palavras que enquadram o filósofo, simplificam-no por assim dizer. “Platão é comunista ao defender sua República”, “Hegel é um idiota por tentar abarcar a totalidade do real”, “Heidegger não passou de um nazista nojento”. Os estudantes mais envolvidos sorriem; os mais eufóricos gargalham. Uns concordam. Outros acham que o professor está apenas contando uma piada e demonstrando certo espírito ao fazê-lo. Porém, aos poucos, estes últimos vão se surpreendendo ao se dar conta de que não é piada coisa alguma. O professor realmente entende os filósofos através de vocabulários avaros, como se fosse uma apostila.

Dentro de uma representação simplificada, entretanto, qualquer filósofo vira qualquer coisa. Platão com efeito se torna comunista; Hegel, realmente maluco e Heidegger, sem dúvidas, um nazista nojento cuja filosofia não apresenta valor algum. Mas, um sistema filosófico ou um filósofo podem ser entendidos a partir de termos tão minguados, mesmo quando estamos diante, por exemplo, de uma tese por eles sustentada aparentemente indefensável?

Analisemos um caso de uma tese que é tomada como indefensável para nós, ocidentais modernos que vivemos em democracias liberais: a defesa da escravidão. A defesa que fornece Aristóteles da escravidão, é possível explicá-la? Seria Aristóteles um mero ideólogo da escravidão?

Modernos que somos, tendemos a ler o famoso dito aristotélico de que o homem é um zoon politikon como um simples o homem é um animal social. O surgimento da esfera social, entretanto, é um fenômeno historicamente recente, moderno, que nasce politicamente junto com o estado nacional. Antes de nos identificarmos como seres sociais, identificávamos a nós mesmos como pertencentes ou à esfera política ou à esfera privada, pelo menos desde o surgimento da antiga cidade-estado. O equívoco que nos leva a interpretar Aristóteles de forma errônea é decorrente de equacionar, sem mais, a esfera política com a social. O social se não é privado, tampouco é político no sentido restrito do termo.

Antes de lidar com a categoria do social, é preciso saber diferenciar o que é político do que é privado para entender como Aristóteles encarava a escravidão. E isso pode ser resumido em compreender que há uma diferença significativa entre a esfera da polis e a esfera da família, em outras palavras, entre as atividades comuns da cidade-estado e aquelas pertinentes à manutenção mais básica da vida. É Hannah Arendt, em A condição humana, quem lembra que nessa divisão, vista como axiomática e evidente por si mesma, baseava-se todo o antigo pensamento político.

A esfera familiar é regida pela necessidade. Os homens são impelidos a ela para satisfazer carências básicas, inspirados pela natureza e não por intermédio de uma ideia preconcebida. Aristóteles, no Livro I, da Política, toma como dadas ao menos duas relações basilares, a de reprodução e a de ordem/obediência. A justificativa para a primeira: “Deve-se, antes de tudo, unir dois a dois os seres que, como o homem e a mulher, não podem existir sem o outro [...].” A justificativa para a segunda: “Porque aquele que possui inteligência capaz de previsão tem naturalmente autoridade e poder de chefe; o que possui força física para executar, deve, forçosamente, obedecer e servir – e, pois, o interesse do senhor é o mesmo que o do escravo.” Em Aristóteles, essa dupla união (homem/mulher, senhor/escravo) constitui a família. O fato de que houvesse papeis definidos para a mulher, para o escravo e para o chefe de família era tomado como óbvio, porque todos eles estavam sujeitos à uma só coisa: a permanência da vida. Assim, o lar se constituía em uma comunidade natural (não deliberada) que decorria da necessidade. É a necessidade que reinava sobre o que se passava no lar.

Em contrapartida, a esfera da polis é a esfera da liberdade. A relação entre as duas esferas era a de que, para usufruir da liberdade na polis, era preciso vencer as necessidades da vida em família. Hannah Arendt lembra que
“O que todos os filósofos gregos tinham como certo, por mais que se opusessem à vida na polis, é que a liberdade situa-se exclusivamente na esfera política; que a necessidade é primordialmente um fenômeno pré-político, característico da organização do lar privado; e que a força e a violência são justificadas nesta última esfera por serem os únicos meios de vencer a necessidade – por exemplo, subjugando escravos – e alcançar a liberdade.” (grifo meu)

A polis é diferente da família na medida em que só acolhe iguais, ao passo que a família forçosamente só agrega desiguais. Estar sujeito à necessidade significa estar sujeito ou ao comando de outrem ou a ser obrigado a comandá-lo – nem uma das duas opções sendo passível de deliberação. Ser livre significa não estar sujeito a necessidades, portanto não estar sujeito ao comando, tampouco a comandar. Onde há domínio e submissão não há liberdade. Nessa perspectiva, na esfera familiar, mesmo para o chefe da família, a liberdade só existia na medida em que ele tinha a faculdade de deixar o lar e ingressar na esfera política, onde encontraria seus pares.

É verdadeiro afirmar que a igualdade política antiga em quase nada se assemelha ao conceito atual de igualdade, porque ela não só significava viver entre iguais – e somente com eles – como também pressupunha a existência de desiguais. Além disso, os desiguais se constituíam sempre na maioria da população da cidade-estado. A igualdade, então, ao contrário de hoje, não era uma questão de justiça social, mas sim uma questão essencial para que houvesse liberdade.

Essa liberdade, entretanto, não vinha sem um preço: a violência. Uma vez que todos os seres humanos são sujeitos à necessidade, eles tem o direito de empregá-la contra os outros. É como põe Hannah Arendt: “a violência é o ato pré-político de libertar-se da necessidade da vida para conquistar a liberdade no mundo.” Todo o conceito de domínio e de submissão, de governo e de poder no sentido em que o concebemos, bem como a ordem regulamentada que os acompanha, eram tidos como pré-políticos, pertencentes à esfera privada, e não à esfera política.

Entender a condição do escravo a partir da diferença basilar entre as esferas do privado e do político parece ser mais proveitoso que simplesmente considerar Aristóteles um mero defensor do status quo escravocrata da Grécia Antiga. Até mesmo sua opinião – partilhada por todos os gregos e aparentemente infundada – de que os bárbaros eram afeminados e que não conheciam a auto-regulação deve ser lida levando-se em consideração aquela distinção. Uma vez que a polis é um fenômeno grego, o campo estritamente político só a eles pertencia, portanto tudo o que não fosse grego, isto é, tudo o que fosse bárbaro não conhecia a liberdade e, logo, estaria sujeito à necessidade – e daqui para a escravidão natural, não é difícil chegar.

Aristóteles, então, não se constitui como mero corroborador de uma ideologia escravocrata. Não há uma busca de universalidade a qualquer preço em seu argumento. Tampouco há nele a tentativa de estabelecer a verdadeira natureza grega que estaria destinada a comandar a natureza bárbara – o comando tem pouco a ver com a liberdade grega. Aristóteles não está meramente querendo justificar o status quo, ele apenas parte do que está estabelecido para, então, fornecer uma narrativa que explique tal estado de coisas. E é nisso que a filosofia se distingue da ideologia. Esta vem à frente, não tem pudor algum de se mostrar enquanto doutrina estanque que fornece explicações redentoras para a totalidade das coisas; aquela vem posteriormente e fornece uma explicação racional para compreender e dar sentido ao que já está posto – tal qual a coruja de Minerva que só levanta voo ao entardecer, na metáfora de Hegel.

Por fim, tentar abarcar um filósofo – ainda mais um filósofo clássico como é o caso de Aristóteles –, como o faz o professor caricatura do primeiro parágrafo, em termos parcos como escravocrata, socialista, capitalista, machista, pessimista, louco, idiota parece mais um comportamento pueril de quem é mais afeito a tolas simplificações que quem realmente está comprometido em entender uma doutrina ou uma prática filosófica. Saber fugir das explicações de tal caricatura é uma questão de sobrevivência para o aluno inteligente. A sorte é que para cada deformação pedagógica desse tipo há um daimon filosófico como Hannah Arendt. É só procurar.



Um comentário:

Augusto Lima disse...

É o simplismo das considerações apressadas. É a falta de tradição e, sobretudo, a ausência de uma consciência histórica. Talvez a ânsia do interpretar, desvendar, redescrever etc. seja o pecado maior. Usar a inteligência com mais parcimônia, prudência e calma parece uma boa prática. Os discentes agradecem.