domingo, 22 de novembro de 2009

Dia de passageiro





Dia de passageiro. Saiu de casa: chaves na mão, mochila nas costas, fones de ouvido... em seu devido lugar. Andando, cinco minutos o separavam do terminal de ônibus. Lá chegando, sobe as passarelas que lhe dão acesso – não há outro jeito de entrar, a não ser atravessando a rua e pulando o muro-grade sem que alguém note, como, aliás, muitos o fazem. Mas ele não faz isso, não entende que seja justo... na verdade mesmo, não acha que seria capaz de pular. Cairia.

Já no patamar mais acima, mostra a carteira magnética que lhe permite a passagem. A luzinha verde da máquina leitora acende. Agora é hora da funcionaria vestida de rosa mostrar seu cartão para liberar a passagem. Essa aí sempre demora a mostrar o cartão. Depois de cinco segundos, passa. Segue, agora tendo que descer novamente a mesma quantidade de rampas que usou para subir. Nota que o ônibus já esta estacionado na parada, e já tem gente que lhe adentra. Corre. Com o ônibus já em movimento e quase fechando as portas, pula e entra. Suado, pingando, ele respira. Olha em volta, não há lugar. Putz! Observa de novo e vê que existe um à frente, ao lado de uma senhora com carnes laterais e braços avantajados, segurando uma criança de colo. Cansado, não vê outra alternativa, queria descansar. Sentou-se com metade de seus glúteos para fora do banco. Estava acomodado, o vento até que fluía para seu rosto, o dia estava aparentemente luminoso.

Alívio imediato: não demorou muito, a senhora levantou – e ele teve que levantar também para lhe dar passagem – puxou a corda, avisando que desceria na próxima parada e saiu. Voltou e sentou-se, agora com o traseiro completo no assento, à janela. Dali, via o cenário costumeiro: O trânsito da Metrópole. Carros iam, vinham. Pedestres avançavam a rua, não tendo alternativa: ambulantes faziam das raras calçadas seus pontos de venda. Esses, que deviam ser passeios públicos na cidade, eram mesmo incomuns, eram minúsculos, às vezes, quando o mato não os escondia ou vendedores os invadiam, encontravam-se aos pedaços. Mas estava no ônibus, e pedestre, a pé, que se vire.

O dia estava bonito, ensolarado. O sol ardente aos poucos esfriava. Ele, pela janela, olhava as pessoas que lhe passavam à vista a uns sessenta quilômetros por hora. À essa velocidade não se notam detalhes. Pensa que ao sair de casa irá se livrar das propagandas exibidas na televisão, mas encontra-se em mesma situação: a janela do ônibus é a moldura e as placas de publicidade servem-lhe de comercial de intervalo de programa. Avista outdoors ilustrando as mais variadas propagandas: “O político mais influente do País”, “A rádio que toca notícia”, “Pague só no mês que vem, sem juros”, “A moda de não sei lá onde”. Não tem como não olhar, até quando para de observar isso e passa os olhos nos veículos, há uns com a lataria totalmente revestida, etiquetas ambulantes. Outros há, como os próprios transportes coletivos, que carregam em sua parte traseira, mulheres gostosas, com vestidos minúsculos, deitadas, com as pernas à mostra, representando sapatos. O engraçado é que esse carro de grande porte estaciona para pegar passageiro e, nesse ponto, há um mendigo, dormindo enrolado em papelões. E descalço.

É quente. A principal característica da Cidade é a temperatura. É nesse momento que olha para o meio fio da Avenida e vê quase-mudas de Palmeiras Imperiais, plantadas pelo governo anos antes. E pensa: o que diabos pretendia a administração pública ao fazer isto? Sim, porque Palmeira Imperial além de não dar fruto, também não tem folhagem o suficiente e, portanto, sombra não irá fazer.

Ouve um baque, bate com a cabeça no vidro e vê as pessoas em pé projetarem seus corpos para frente com a freada brusca que o motorista fora obrigado a fazer. Depois dos passageiros descobrirem que era um buraco a causa, ouviu-se: “Ainda vão votar no Serafim?”.

O tempo fechara – normal na Capital, a Chuva é esposa ciumenta do Sol, ele não pode aparecer sem que ela, apreensiva que todos (ou todas) o vejam, cobre-o com seu manto úmido.

Mais uma parada. Um moleque adentra segurando uma caixa de sapato cheia de bombons. Sai distribuindo aos sentados como se, em primeiro momento, as iguarias fossem de graça. Esse ritual segue da frente ao fundo do veículo. Quando todos já estão com seus produtos à mão, o moleque retorna a frente e profere seu discurso musicado-decorado: “Boa tarde, senhores e senhoras passageiros, estive passando e deixando com alguns de vocês – porque alguns não aceitam – uma deliciosa pastilha de menta, um pacote de saborosas jujubas e a medicinal bala de mangarataia. Elas servem para curar a gripe e tirar da boca aquele mau hálito. Cada uma custa cinqüenta centavos, e são três por um real; cada uma cinqüenta, e três por um real. Muito obrigado a atenção, desculpe se eu incomodei alguns de vocês, mas esse é, atualmente, o meu trabalho. Obrigado àqueles que puderem colaborar com o meu trabalho e obrigado àqueles que também não puderem. Fiquem com deus e até a próxima se deus quiser”. E como sempre, alguns compram, mas a maioria não.

Agora as gotas de chuva estavam como pedras. O tempo estava de mal mesmo. Todas as janelas foram fechadas. O calor começou a se formar, abafado. Respirava-se o resto de ar do outro. Lá fora, gente correndo a procura de abrigo. Cada lugar onde havia teto, amontoavam-se pessoas. Pontos de ônibus, lotados.

A situação estava caótica. O mau humor era geral, quando do meio do automóvel: “Irmãos... Jesus Cristo esta voltando, irmãos! E vocês não podem dizer, quando estiverem cara a cara com ele, que não ouviram a sua palavra. O fim dos tempos esta chegando. Os sinais estão aí. E pai jogando a filha pela janela - isso é coisa de Satanás, queridos -, acidentes da natureza acontecendo pelo mundo todo. Isso nunca aconteceu antes, queridos. O fim está chegando, e Jesus está voltando. Mas ainda é tempo,meus amores. É tempo. Vocês ainda podem se salvar!”. Pacientes, todos escutam – como se fosse inexorável, escutam. Liberdade de culto é um direito primordial garantido pela constituição, mas poluição sonora é crime que consta em lei. Geralmente religiosos que pregam desse modo, quando percebem a aproximação de seu ponto final, encerram o discurso e saem de fininho, que é pra não ficar e ter que encarar o olhar dos curiosos. Foi o que aconteceu com este.

Sentado, o passageiro agradeceu quando o crente saiu. Olhou no relógio e estava atrasado já cerca de meia hora. Desesperou-se. Chovendo, à essa hora, o trânsito estava engarrafado; não via como poderia piorar. Ouviu-se um tiro! Não era: outro buraco, o pneu furara. O ônibus teve que parar. A chuva aumentou mais ainda. Só se ouvia o murmúrio: “É... é assim mesmo a vida de quem pega ônibus, seja o que deus quiser”.

2 comentários:

Augusto Lima disse...

Repito o que disse em 14/06/2009, quando vi esse conto pela primeira vez: genial!
Na ocasião, minhas palavras foram "Agora, além de um amigo, tens um fã."

PEPE

Augusto Lima disse...

Retificando parcialmente:
"Repito o que disse em 14/06/2008..."

PEPE