segunda-feira, 8 de agosto de 2016

O ódio é gratuito



Fedro, escritor nascido na Trácia, vinte anos antes de Cristo, sofreu perseguição por parte de indivíduos da alta classe política romana da época e, ao fim, foi condenado ao exílio, vindo a falecer na miséria anos depois. A perseguição estava intimamente ligada à natureza de sua atividade: escrever fábulas.

Uma fábula é uma narrativa curta com personagens animais que agem como seres humanos e que ilustra um preceito moral. Em outras palavras, fabular é transformar indivíduos em modelos e fazer com que histórias corriqueiras tornem-se mais que triviais. Não é preciso que o fato narrado tenha ocorrido, nem os personagens existido. É comum, entretanto, que isto ou aquilo disparem o gatilho criativo do fabulista. Sua escrita, porém, é sempre universal.

Universal quer dizer um termo abrangente aplicável a todos os indivíduos de uma mesma classe de objetos. Por exemplo ‘cadeira’ é um universal que se refere a todas as cadeiras existentes, inclusive a esta em que me sento para escrever este texto. Compreender essa noção, porém, quando se relaciona a ideias mais complexas que a citada, requer algo além de capturar sua definição, por dois motivos.

O primeiro é que um universal é algo abstrato, e abstrações exigem concentração de quem as interpreta e também algum conhecimento prévio. Já sabemos o quanto a dificuldade de se concentrar não é um mal exclusivo de nossa época e talvez seja um defeito de nossa tribo humana.

O segundo é que, quando um universal é exemplificado, isto é, tornado particular para efeitos pedagógicos, corre-se o risco de se chamar mais atenção a este que àquele. Isso ocorrendo, os mesmos sem concentração e conhecimento prévio a que me referi no parágrafo anterior muito facilmente tomam o exemplo pelo que se pretendia exemplificar.

É assim que muitos acessam a alegoria da caverna de Platão: tomam-na não por uma imagem de uma narrativa mais abstrata, mas por uma imagem de algo concreto, uma caverna efetiva. Sair de seu interior, então, passa a ser algo possível. Daí a compará-la com a TV, como o fez José Saramago, é um pulo.

Da mesma forma age quem não sabe lidar com universais tão corriqueiros como ‘homem’, para ficar num caso apenas. Pensa-se que ‘homem’ é este ou aquele indivíduo e não se é capaz de dissociar um do outro. Diógenes, o filósofo cínico que viveu quatro séculos antes de Fedro, ficou para a história, entre outros feitos, por ir até a praça pública, empunhando uma lanterna em plena luz do dia, à procura de um homem. Sabiamente, utilizando-se da ambiguidade entre universal e indivíduo, contida na palavra utilizada, fez troça com os cidadãos que ali se encontravam e que não entenderam a ridicularização.

Permanecemos ridículos hoje quando, ao tomarmos um pelo outro, consideramos que, quando um escritor descreve um personagem cujas características nos são familiares, o que está em jogo é este ou aquele indivíduo. Vamos além quando nos ofendemos e passamos a odiar o artista. Fedro passou a ser odiado porque suas estórias, universais que eram, abarcavam muitos casos individuais de sua época. Você pode entender isso como a usual carapuça servindo.

O ódio, porém, não se localiza no tempo, nem no espaço. Todo artífice de universais está passível de ser odiado por um indivíduo descontente. A dificuldade de entender universais talvez seja mais uma armadilha intelectual a ser evitada -- como um ídolo baconiano --, para que consigamos chegar a uma apreensão mais próxima à verdade. Saibamos disso e nos esquivemos. Esse conselho, claro, não atingirá os que parecem ter nascido para odiar. A estes, é pertinente reavivar uma fábula de Fedro:

O lobo e o cordeiro



Ao mesmo rio vieram, compelidos pela sede, o lobo e o cordeiro.

O lobo estava mais acima, e o cordeiro bem mais abaixo. Então, o predador, incitado por sua goela maldosa, encontrou motivo de rixa: “Estou a beber e tu poluis a água!”

O lanoso, tímido, responde:

“Como posso fazer isso de que te queixas, ó lobo? De ti para meus goles é que o líquido corre.”

Repelido pela força da verdade, ele replicou:

“Cerca de seis meses atrás, falaste mal de mim.”

O cordeiro retruca: “Eu? Então eu sequer era nascido...”

“Por Hércules, teu pai é que me destratou!”

Em seguida, dilacera a presa, dando-lhe morte injusta.

Escrevi essa fábula por causa daqueles indivíduos que oprimem os inocentes por razões fictícias.



2 comentários:

Augusto Lima disse...

Após atingir certo grau de consciência, entendi que sabedoria não é para muitos e, por isso, não cabe exercitá-la em praça pública. É como se jogássemos pedras preciosas aos brutos, que apenas irão pisá-las.

Vitor Lima disse...

Ainda não atingi esse grau, pai, e por enquanto perambulo pela praça, não portando, mas em busca da sabedoria. Dizem que ela brilha como o sol. Com minha lanterna à mão, ainda não consegui enxergar. Talvez tenha que esperar amanhecer.