quarta-feira, 23 de junho de 2010

Apontamentos sobre as dimensões axiológicas do projeto civilizador moderno

A modernidade se apresenta como projeto civilizador na medida em que é dirimidora da barbárie através de suas instituições. Isso quer dizer que o estado de natureza em que o homem é o lobo do homem, como lembrou Hobbes, passa paulatinamente para um espaço institucionalizado em que não é mais permitida a autotutela; ao invés disso, é criada a jurisdição do estado, que monopoliza o uso legítimo da força. Nesse contexto a modernidade apresenta três principais dimensões axiológicas: universalidade, individualização e autonomia.

1.

O cristianismo traz o embrião da ideia de universalidade quando iguala todos perante deus. A notória regra do faça aos outros o que você gostaria que fizessem com você é o padrão mais conhecido disso. Kant elaborou sobre essa ideia. Para que uma ação seja considerada moral, na ética kantiana, a máxima subjacente a ela tem que ser universalizável; tem que ser uma máxima que sirva a qualquer um em circunstâncias similares. Ninguém pode fazer exceção a si próprio; tendo, portanto, de ser imparcial. Por exemplo, alguém roubando um livro agindo de acordo com a máxima sempre que alguém for pobre de mais ou sentir que ninguém sentira falta do livro, é permitido tomá-lo para si, mesmo sem permissão do dono, para que isso seja considerado uma ação moral, teria que ser aplicado a todas as pessoas que se encontram em semelhante situação.

Outro aspecto da doutrina kantiana é o do trate as pessoas como um fim em si mesmas, não como um meio para um fim qualquer. Isso é outro modo para expressar que não se deve usar outras pessoas, deve-se, sim, sempre, reconhecer-lhes a humanidade – a condição de serem indivíduos com vontade e desejo próprios. Assim, se alguém trata outrem de modo digno afim de obter favores, então esse alguém a esta usando como meio pra um fim, não por se tratar de uma pessoa com um fim em si própria.

Esses aspectos elaborados por Kant encorparam princípios que hoje já são consolidados em nossa Constituição Federal (nos seus artigos 1°, III, e 5°, principalmente) o da dignidade da pessoa humana e o da isonomia. A partir da universalidade ética de Kant, todo ser humano, em circunstâncias similares, deve ser tratado igual; dai a base do princípio da isonomia. Se devemos tratar as pessoas como fim em si mesmas, então a dignidade é atributo de qualquer pessoa, independente de sua condição biológica, psíquica e social – o que, em outras palavras, trata-se do princípio da dignidade da pessoa humana.

É nesse raciocínio que outras questões são colocadas em xeque: o racismo e o sexismo. O Código Penal considera crime alguns atos motivados por tais noções. Uma lei específica recente, a famigerada Maria da Penha, foi criada só para tratar a questão do sexismo.

A própria ideia de democracia foi transformada. A democracia grega, de onde veio a noção de governo da maioria, nessa simples formulação cada vez mais entra em desuso. Essa forma de governo, na acepção clássica, dá lugar à forma contemporânea que acrescenta a ela a seguinte formulação: …desde que respeitados os direitos da minoria. É por derivação do princípio da dignidade humana que ocorre essa mudança.

Desse princípio também pode derivar o da homogenização cultural em detrimento das particularidades locais. É o contraste entre as ideias liberais universalizantes e as ideias comunitaristas particularizantes. A questão dos direitos indígenas pode ser levantada aqui. Em prol da economia (dá invasão dos ibéricos, no século XVI, à questão da Raposa Serra do Sol, no século XXI), que é um instrumento universalizante, são ignorados os direitos locais, das minorias, dos vencidos. Tem-se uma tensão entre progresso material e, em muitos aspectos, retrocesso cultural.

2.

No que diz respeito a individualização, sua origem moderna esta ligada à teologia dos primeiros séculos da era pós-medieval e ao surgimento do capitalismo. Max Weber em A ética protestante e o espírito do capitalismo mostrou como o calvinismo desafiou a autoridade tradicional afirmando que a salvação do indivíduo não poderia ser garantida pelas instituições da igreja, como os sacramentos prometiam. Cada indivíduo estaria sozinho diante de deus, no dia do juízo final, e seria responsável por seus pecados. O protestantismo criou uma versão radical do individualismo religioso que balançou profundamente as atitudes ocidentais no dizem respeito às instituições políticas e sociais. Na história moderna, a Reforma Protestante foi um ponto crítico, posto que tornou a salvação acessível a todos.

A individualização preocupa-se com a constante tensão entre o coletivo e o individual. A vida é cada vez mais um projeto individual. As desintegrações parciais da família nuclear e das hierarquias rígidas de classe significam que estamos liberados a partir da estrutura da sociedade industrial para as incertezas, nos termos de Anthony Giddens, de uma sociedade de risco mundial. O indivíduo moderno é aquele que é consciente de seu pensamento e responsável por sua atuação; aquele que conseguiu a capacidade de expressão de opiniões para além da coletividade; aquele que, através da crítica, desmembrou sua matriz de sociabilidade,

Algumas críticas são levantadas no que dizem respeito às consequências de uma sociedade individualizante: os malefícios do narcisismo e da sociedade de consumo. Por um lado, o amor próprio que não precisa da alteridade; por outro, o indivíduo considerado massa consumidora, em detrimento de sua autonomia.

Ocorre também, paradoxalmente, o fenômeno da negação da individualidade em face da sociabilidade. Isso acontece quando o indivíduo, embora possuindo capacidade de julgamento racional própria, age sem ela, deixando-se conduzir exclusivamente pela conduta grupal ou social. Exemplo disso são as “galeras”, tão famosas em nossa cidade. Ali, os confrontos são sempre coletivos; quando um sofre represália, nunca há o revide individual, mas aquele em que o grupo todo se reúne para praticar condutas que individualmente nenhum praticaria. No restante do Brasil, em São Paulo, no Rio de Janeiro e no Ceará, por exemplo, fenômeno semelhante acontece com as torcidas organizadas.

3.

No tocante a autonomia, o ser autônomo é o legislador de si mesmo, o governador de si próprio. A autonomia tem uma ligação íntima com a liberdade, mas antes disso ela tem mais correspondência com a capacidade de julgar.

A capacidade de julgamento autônomo, na modernidade, veio quando, como citado, o indivíduo tornou-se consciente de seu pensamento e, portanto, responsável por sua ação. Entretanto, há obstáculos de natureza sociológica que dificultam a plena realização da autonomia.

A economia quando gera disparidades sociais, aumentando o contraste de classes, abala de modo contundente a capacidade de julgar. Isso se dá porque o nível de escolarização é requisito fundamental para que esse atributo seja alcançado. Sem uma boa educação cada vez mais se faz presente a situação em que uma massa, sem a característica da consciência individual, é comandada por instituições que se perpetuam.



Vitor Lima



P.S. Este texto foi a resposta à questão "Faça uma análise das dimensões axiológicas do projeto civilizador moderno" da prova de Sociologia Geral e Jurídica, disciplina ministrada pelo professor Amir Menezes, na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Amazonas. Então, não se trata de um ensaio, artigo científico ou coisa do gênero. Pessoas mais cultas hão de criticá-lo (se o chegarem a ler, claro), mas o coloquei aqui antes para servir de ponto de apoio a outros universitários que estejam na situação em que estive quando pesquisava para elaborar o texto. Isto aqui está sem citação alguma, porque, ao final de contas, foi uma questão de prova que tive que escrever à mão. Mas como ponto de partida, acho que deve ser útil para quem está pesquisando sobre.

P.S.² Ah! Para quem não colocou muita fé no texto, ele mereceu nota 9.5.