quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O bêbado Bastião

Após ser jogado do ônibus lotado, Sebastião enxugou sua blusa. Um bêbado acabara de vomitar no coletivo, e pingos daquele suco gástrico tinham-lhe caido na roupa. Isso, porém, não abalava o ânimo daquele trabalhador. Quando desceu da lotação eram dez horas da noite. Chegou em casa às onze e meia.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Sarinha em X quadros


I.

Há mulheres que nascem velhas. Queixudas, bochechas caídas, nariz adunco e voz de um agudo penetrante. Não há desculpas. A pele ainda pode ser acetinada, polída, mas as asperezas e rugosidades continuam ali. Entenda: não é que seja feia a mulher que nasce velha; é que você, sentindo atração por ela, vira uma espécie de necrófilo adiantado.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Cota racial como ação afirmativa para os olhos da sociedade



As ações afirmativas, como atividades que concretizam direitos das mulheres e das minorias, são um consenso formal em nosso País. Digo formal já que nenhuma autoridade pública, mesmo contestando aplicações de tais ações, opõe-se-lhes de forma solene. O que acontece é que o debate a respeito de como implantar tais políticas não se desenvolve de forma tão consensual assim. Particularizando esse tema, tomo a discussão a respeito da cota racial em Universidades Públicas. Ali, a discussão é tomada sob pontos de partida equivocados.

Tratarei neste texto do erro que se dá em duas linhas de raciocínio predominantes em relação à cota étnica: as que a consideram a) como política educacional e as que o fazem b) como política social. Os primeiros argumentam que o acesso de grupos étnicos às instituições públicas de ensino superior é limitado e, por isso, precisa ser mudado como forma de reparação histórica. Os segundos empenham-se pela conversão da política de cotas em política social, sob o argumento de que a limitação ao acesso ao ensino público superior se dá por uma causa econômica, não étnica.

1.

Estes últimos[1] iniciaram uma pugna judicial, ainda corrente, peticionando ao Supremo Tribunal Federal (STF), de forma a contestar os critérios de seleção dos cotistas na Universidade de Brasília (UnB). Entretanto, Não é no mérito desse pedido que está a sua intenção, mas nos argumentos usados para fundamentar sua causa. Uma das teses é a de que é “menos lesivo aos direitos fundamentais”[2], ao invés de cotas étnicas, o uso de cotas com referência na capacidade econômica. Dessa forma, o acesso à Universidade Pública se daria sem detrimento de grupos, desde que passassem pelo crivo da baixa renda. A base usada é que seria injusto favorecer uma etnia, uma vez que o real motivo do problema seria econômico.

É a partir dai que esse tipo de argumento se desenvolve na direção de que a política de cotas passe a ser política social. Acontece que ou quem argumenta nesse sentido não sabe o que é política social ou está agindo de forma ideológica e, o que é pior, de má-fé.

Não adianta colocar o pobre na universidade via sistema de cotas e dizer que se trata de política social. Esta, pelo nome e pelo histórico, é um conjunto universalizante de medidas que visa a melhoria da sociedade como um todo. Do modo como é colocada, não é mais que um paliativo. Melhoria de infra-estrutura; criação das leis trabalhistas, consumeristas e da própria Constituição Federal; melhor gerência dos recursos destinados à educação, todas essas medidas são exemplos de ações sociais. Quando uma política não se faz nessa linha ela não é social, portanto quando alguém faz apologia de alguma ação que não melhore o todo está agindo de forma ideológica, ou seja, de modo a ocultar a real intenção daquela atividade. Isso pode se dar por ignorância ou por má-fé. Não se sabe onde aqueles que aceitam essa visão se localizam.

2.

No caso dos primeiros, eles argumentam que cota étnica é política educacional. É necessário – dizem – combater a ausência de determinadas etnias nos espaços públicos de nível superior. Um argumento tentador. Principalmente quando sacado do argumento da justiça distributiva de Aristóteles[3]. Porém, o fundamento dessa tomada de decisão, se levado às últimas consequências, só nutriria o problema. O fundamento é o da injustiça histórica, aliada a uma espécie de vingança tardia.

Essa lógica é interessantíssima. Mudar a sociedade, reparar as injustiças históricas cometidas é o gol que muita gente deseja converter. Quando partimos da linha que diz que devemos tratar desigualmente os desiguais (Aristóteles), tudo parece se encaixar perfeitamente. Não desejo apreciar este mérito, ou seja, a incontrovérsia da aplicação do princípio da isonomia e se ele, de modo efetivo, deve ser aplicado nesse caso. O que me chama atenção é o segundo ponto argumentativo: a vendeta histórica.

O que não falta são propagandas no sentido de dizer que cota étnica é reparação histórica. A impressão passada é semelhante a esta metáfora: é necessária uma pena, e esta consiste em que aos brancos cabe arranjar um e outro quarto na casa grande para abrigar parte dos negros da senzala, de modo a diminuir-lhes o ânimo revoltoso. Não argumento no sentido de legitimar práticas abomináveis do passado; é necessário, porém, rever as ferramentas usadas para o combate ao problema que colocamos em questão.

O obstáculo, nesse caso, que todos queremos superar é a discriminação étnica. Então essa perpetuada contenda de discursar a necessidade de uma reparação, aos moldes do que vem sendo feito, não leva ao fim desejado. Desde o Iluminismo (com Cesare Beccaria à frente), nem o Direito Penal funciona mais desse modo. Em uma democracia que se pretende social e liberal, não há mais caminho profícuo nesse sentido.

Além disso, voltando à metáfora da casa grande e da senzala, cota étnica não é política educacional. Uma política educacional que consiste no fato de o branco arranjar determinado número de vagas para o negro não existe como tal. Política é uma série de medidas governamentais para a obtenção de um fim social. Se é política educacional, o fim é a educação da sociedade. Nesse caso, a educação ganha quase nada, posto que é ínfimo o esforço de melhorar o sistema educacional somente com medidas desse tipo. Cota étnica, portanto, não é política educacional.

Política educacional é o incentivo à ascensão da escola pública. Esta sim, desde que de boas qualidade e quantidade, estabeleceria o acesso universal ao ensino superior – que por pressuposto também seria de igual monta. Nesse caso, tratar-se-ia de uma verdadeira política educacional e, nas suas consequências mais frutíferas, de política social.

3.

Cota étnica não é nem política educacional nem política social, mas “política de luta pela integração e pela ampliação da visibilidade de uma cultura miscigenada para ela mesma.” (itálico meu). É desse modo que Paulo Ghiradelli Jr.[4], filósofo e especialista em filosofia da educação, transmite qual é a noção sob a qual devemos conduzir o entendimento das cotas étnicas. As consequências do argumento do filósofo são as mesmas do tópico frasal deste parágrafo. Cota étnica é, como o título deste texto sugere, ação afirmativa para os olhos da sociedade.

Uso essa alegoria para sugerir que a política de cotas serve sim, como afirmam os primeiros argumentadores acima (ver n° 2), para combater a ausência de certas etnias em espaços públicos de ensino superior, porém faço no sentido de fornecer, conforme o filósofo, uma fundamentação diferente da que eles usam. O papel para o qual a cota é estabelecida é o da integração. Ela serve como possibilitadora da visibilidade de quem não é usualmente percebido em determinado lugar. Seu fim é promover a transição de um conceito aquém (pré-conceito) para um conceito otimizado.

A função da cota étnica é análoga à da cota para mulheres nos partidos políticos. Semelhante às etnias historicamente desprivilegiadas no ensino superior brasileiro, as mulheres não tinham visibilidade nas esferas públicas de tomadas de decisão até pouco tempo. Na lei 12.034/2009 [5], criaram-se regras, dessa vez cogentes, para integrá-las. Lá, o pressuposto não foi o de que as mulheres são menos capazes que os homens, nem de que se tratasse de uma reparação histórica, muito menos de que isso fosse política social. O que se visou foi a integração.

A mulher não vinha sendo vista naquele espaço; vem passando a sê-lo. O conceito de político brasileiro é um conceito aquém. Quando se pensa em político brasileiro, à memória vem um político brasileiro homem e, portanto, trata-se de um conceito não otimizado, um pré-conceito.

Entendeu-se que neste País em que ambos os sexos possuem status de cidadão não é plausível que os procuradores dos direitos políticos sejam vistos de forma equivocada. O sistema de cotas foi estabelecido e vem cumprindo com o que se propôs. Atualmente temos três principais candidatos a presidente da república, duas são mulheres.

A cota visa ampliar o convívio e, dessa forma, mudar a mentalidade e o modo da sociedade ver a si própria. Qualquer outra destinação que se dê a esse tipo de medida é errônea e pode levar a consequências ineficazes. Como um objetivo a servir de horizonte, a cota na sistemática que argumento serve para a consolidação de uma identidade nacional mais próxima da Nação miscigenada que somos. O Brasil é multi-étnico – sabemos –, porém é preciso visualizar esta condição. Penso que a cota étnica como ação afirmativa para os olhos da sociedade é um bom caminho para isso.


Notas:

[1]
-->Representados nas pessoas do partido político Democratas (DEM) e dos respectivos amici curiae. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) n° 186, relatoria do Min. Ricardo Lewandowski.
-->
[2] Esta frase encontra-se no relatório da decisão de 31/07/09 (DJE n° 148, divulgado em 06/08/09), da mesma ADPF, do Min. Gilmar Mendes a respeito de uma medida cautelar peticionada pelo autor da ação.

[3]
--> Ética a Nicômaco. V, 3, 1131b, 10.
[4] GHIRALDELLI, Paulo. Cota racial é política, cota social é esmola. Disponível em www.ghiradelli.pro.br. Acesso em 06/07/10.

[5] É importante frisar que essa lei já existia desde 2007, entretanto, com a nova redação de 2009, o procedimento passou a ser obrigatório.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Aspectos do Direito nas sociedades orgânica e mecânica em Durkheim


Durkheim

Ao explicar a divisão social do trabalho, Durkheim afirma que ela, além de sua evidente face econômica, possui uma dimensão ética, que é capaz de criar um sentido de solidariedade entre as pessoas. Para explicar como isso acontece, ele asserta que quanto mais especializada as pessoas, mais necessidade elas tem umas das outras, posto que, uma vez que cada cidadão tende a ser um especialista só naquilo que faz, é necessário que precise da especialidade dos demais. A divisão social do trabalho tem uma característica ética porque ela supre carências essencialmente éticas, que são as faltas de ordem e de harmonia sociais. Dessa forma, Durkheim explica a sociedade, dividindo-a entre aquelas que tem ou não uma divisão social do trabalho desenvolvida ou, em outras palavras, quanto a solidariedade a que está submetida. Quando um tipo de sociedade possui desenvolvida tal divisão, trata-se de uma sociedade de solidariedade orgânica; quando não, está-se diante da solidariedade mecânica.

Para explicar melhor tais variedades, Durkheim as relaciona com o Direito, já que, segundo sua teoria, os tipos de solidariedade são reflexos dos tipos de sistema legal, e vice-e-versa. Dai a distinção entre o aparato legal que reprime e o que restitui. De acordo com o paradigma evolucionista, Durkheim afirma que a sociedade tende para uma crescente divisão social do trabalho, para uma crescente complexificação das relações interpessoais, isto é, a sociedade movimenta-se gradativamente de uma solidariedade mecânica para uma solidariedade orgânica. E esse processo é acompanhado por um movimento que vem de um Direito repressor – que pune aqueles que violam a coesão social – para um Direito restituidor – que se esforça em facilitar a cooperação e em retornar às pessoas o status anterior à ocorrência de uma violação normativa.

A característica essencial da sociedade mecânica é que sua coesão depende da semelhança entre seus membros, resultante das práticas e crenças comuns. Com tal homogeneidade instituída, o indivíduo não existe, o que há é o grupo.

Em tais organizações não há uma divisão do trabalho complexa; Durkheim, portanto, chama-as de organizações simples, “sociedades inferiores”. Nestas sociedades, o Direito é quase inteiramente penal, e, não raro, é o povo, por meio de uma reunião (a assembleia, no caso específico de determinadas sociedades antigas, tais quais a grega, a romana e a mesopotâmica pré-urbana), que administra a justiça.

A lógica durkheineana é esta: quanto mais uma civilização é primitiva, mais semelhanças entre seus membros, e quanto mais semelhanças entre seus membros, mais arraigada é a consciência coletiva. E toda vez que esta é ferida ocorre a punição, dai o tipo de Direito predominante nas sociedades mecânicas ser o repressivo. A consciência coletiva em sociedades primitivas é um fato social tão cogente – por causa da rudimentar divisão do trabalho – que um desvio de sua linha acarreta repressão. É sob essa égide que Durkheim explica o mais rudimentar tipo de direito.

Não é difícil constatar que ali princípios penais hoje consagrados, como o da bagatela e o da intervenção mínima, não existiam. O primeiro, que, em linhas gerais, professa que para uma conduta ser considerada crime há de ter uma relevância (social, política, econômica) significativa não era respeitado. Durkheim cita fatos que, embora não representassem riscos à sociedade, eram considerados crimes. Tocar um objeto tabu, um animal ou homem impuro, não satisfazer a fórmula ritual apresentavam regulamentação no direito repressivo dos povos antigos. Exemplos mais notórios, sob a luz da famigerada lei do talião, podem ser citados. O Código de Hamurábi, fruto da sociedade babilônica, prescrevia que, em determinadas circunstâncias, deveria ser cortada a mão de quem furtasse. Passagens bíblicas, escritas sob a égide das sociedades primitivas, prescrevem coisas análogas. Nesse contexto, ferida a consciência coletiva, a intervenção mínima nunca acontecia; justamente o seu contrário: todo é qualquer fato que se desviasse do normal era punido, não raro, com uma elevada desproporção entre o crime e a sanção.

Em uma sociedade desenvolvida, em que há uma complexa cadeia de relações interpessoais, a situação é diversa. Não que a consciência coletiva não exista nas “sociedades superiores”, a ponto de ali não existir um direito repressor, mas onde a divisão do trabalho é desenvolvida a homogeneidade social se dilui, e a solidariedade mecânica perde seus atributos essenciais. E, com eles, o Direito predominante passa do repressor para o restituidor.

É da gama de relações novas que se estabelecem com a divisão do trabalho que nasce a necessidade de um novo Direito, igualmente complexo. Com o advento da individualização, novas questões, que não as unicamente coletivas, como o crime, passam a ter relevância. Durkheim cita como exemplo a divisão do trabalho doméstica. Ali podemos encontrar vários fatos que passam a ter relevância jurídica: os direitos e deveres do casal, o estado em que ficam em caso de divórcio, a anulação do casamento, a responsabilidade pela guarda de um menor.

O Direito que restitui não visa a punição, mas, de modo geral, a restauração de relações para um status quo ante ao momento da transgressão. Ao contrário do anterior, por exemplo, esse tipo de Direito funciona através de um aparelho mais especializado (tribunais, magistrados, funcionários técnicos, etc) e de uma ramificação maior. Passam a existir capilaridades especializadas do Ordenamento, que regulam a posse das coisas – direito real –, que protegem as relações de trabalho – direito trabalhista –, que tutelam a partilha de bens de um de cujus – direito das sucessões –, e assim por diante.

Em termos modernos, guardadas as devidas exceções, poderíamos dizer que o Direito restituidor equivale ao Direito Civil, aquele ordenamento específico que regula as interações entre indivíduos e entre indivíduos e coisas. Por exemplo, um instrumento, por excelência, de cooperação social em uma sociedade de solidariedade orgânica é o contrato tutelado pelo área civilista. Isso acontece porque ele regula a interação entre os indivíduos tendo a capacidade de reuni-los, cada um com a sua especialidade, em um acordo mútuo, situação essencialmente orgânica.

Quanto mais primitiva uma sociedade, mais semelhança entre seus membros. Por contraste, membros de uma sociedade avançada – civilizada – são mais distinguíveis uns dos outros. Mais desenvolvida a divisão do trabalho, mais complexa a sociedade e mais complexo o ordenamento jurídico. Para o progressista Durkheim, esse é o caminho inexorável das sociedades e do Direito, que anda em linha paralela com a evolução da humanidade.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Apontamentos sobre as dimensões axiológicas do projeto civilizador moderno

A modernidade se apresenta como projeto civilizador na medida em que é dirimidora da barbárie através de suas instituições. Isso quer dizer que o estado de natureza em que o homem é o lobo do homem, como lembrou Hobbes, passa paulatinamente para um espaço institucionalizado em que não é mais permitida a autotutela; ao invés disso, é criada a jurisdição do estado, que monopoliza o uso legítimo da força. Nesse contexto a modernidade apresenta três principais dimensões axiológicas: universalidade, individualização e autonomia.

1.

O cristianismo traz o embrião da ideia de universalidade quando iguala todos perante deus. A notória regra do faça aos outros o que você gostaria que fizessem com você é o padrão mais conhecido disso. Kant elaborou sobre essa ideia. Para que uma ação seja considerada moral, na ética kantiana, a máxima subjacente a ela tem que ser universalizável; tem que ser uma máxima que sirva a qualquer um em circunstâncias similares. Ninguém pode fazer exceção a si próprio; tendo, portanto, de ser imparcial. Por exemplo, alguém roubando um livro agindo de acordo com a máxima sempre que alguém for pobre de mais ou sentir que ninguém sentira falta do livro, é permitido tomá-lo para si, mesmo sem permissão do dono, para que isso seja considerado uma ação moral, teria que ser aplicado a todas as pessoas que se encontram em semelhante situação.

Outro aspecto da doutrina kantiana é o do trate as pessoas como um fim em si mesmas, não como um meio para um fim qualquer. Isso é outro modo para expressar que não se deve usar outras pessoas, deve-se, sim, sempre, reconhecer-lhes a humanidade – a condição de serem indivíduos com vontade e desejo próprios. Assim, se alguém trata outrem de modo digno afim de obter favores, então esse alguém a esta usando como meio pra um fim, não por se tratar de uma pessoa com um fim em si própria.

Esses aspectos elaborados por Kant encorparam princípios que hoje já são consolidados em nossa Constituição Federal (nos seus artigos 1°, III, e 5°, principalmente) o da dignidade da pessoa humana e o da isonomia. A partir da universalidade ética de Kant, todo ser humano, em circunstâncias similares, deve ser tratado igual; dai a base do princípio da isonomia. Se devemos tratar as pessoas como fim em si mesmas, então a dignidade é atributo de qualquer pessoa, independente de sua condição biológica, psíquica e social – o que, em outras palavras, trata-se do princípio da dignidade da pessoa humana.

É nesse raciocínio que outras questões são colocadas em xeque: o racismo e o sexismo. O Código Penal considera crime alguns atos motivados por tais noções. Uma lei específica recente, a famigerada Maria da Penha, foi criada só para tratar a questão do sexismo.

A própria ideia de democracia foi transformada. A democracia grega, de onde veio a noção de governo da maioria, nessa simples formulação cada vez mais entra em desuso. Essa forma de governo, na acepção clássica, dá lugar à forma contemporânea que acrescenta a ela a seguinte formulação: …desde que respeitados os direitos da minoria. É por derivação do princípio da dignidade humana que ocorre essa mudança.

Desse princípio também pode derivar o da homogenização cultural em detrimento das particularidades locais. É o contraste entre as ideias liberais universalizantes e as ideias comunitaristas particularizantes. A questão dos direitos indígenas pode ser levantada aqui. Em prol da economia (dá invasão dos ibéricos, no século XVI, à questão da Raposa Serra do Sol, no século XXI), que é um instrumento universalizante, são ignorados os direitos locais, das minorias, dos vencidos. Tem-se uma tensão entre progresso material e, em muitos aspectos, retrocesso cultural.

2.

No que diz respeito a individualização, sua origem moderna esta ligada à teologia dos primeiros séculos da era pós-medieval e ao surgimento do capitalismo. Max Weber em A ética protestante e o espírito do capitalismo mostrou como o calvinismo desafiou a autoridade tradicional afirmando que a salvação do indivíduo não poderia ser garantida pelas instituições da igreja, como os sacramentos prometiam. Cada indivíduo estaria sozinho diante de deus, no dia do juízo final, e seria responsável por seus pecados. O protestantismo criou uma versão radical do individualismo religioso que balançou profundamente as atitudes ocidentais no dizem respeito às instituições políticas e sociais. Na história moderna, a Reforma Protestante foi um ponto crítico, posto que tornou a salvação acessível a todos.

A individualização preocupa-se com a constante tensão entre o coletivo e o individual. A vida é cada vez mais um projeto individual. As desintegrações parciais da família nuclear e das hierarquias rígidas de classe significam que estamos liberados a partir da estrutura da sociedade industrial para as incertezas, nos termos de Anthony Giddens, de uma sociedade de risco mundial. O indivíduo moderno é aquele que é consciente de seu pensamento e responsável por sua atuação; aquele que conseguiu a capacidade de expressão de opiniões para além da coletividade; aquele que, através da crítica, desmembrou sua matriz de sociabilidade,

Algumas críticas são levantadas no que dizem respeito às consequências de uma sociedade individualizante: os malefícios do narcisismo e da sociedade de consumo. Por um lado, o amor próprio que não precisa da alteridade; por outro, o indivíduo considerado massa consumidora, em detrimento de sua autonomia.

Ocorre também, paradoxalmente, o fenômeno da negação da individualidade em face da sociabilidade. Isso acontece quando o indivíduo, embora possuindo capacidade de julgamento racional própria, age sem ela, deixando-se conduzir exclusivamente pela conduta grupal ou social. Exemplo disso são as “galeras”, tão famosas em nossa cidade. Ali, os confrontos são sempre coletivos; quando um sofre represália, nunca há o revide individual, mas aquele em que o grupo todo se reúne para praticar condutas que individualmente nenhum praticaria. No restante do Brasil, em São Paulo, no Rio de Janeiro e no Ceará, por exemplo, fenômeno semelhante acontece com as torcidas organizadas.

3.

No tocante a autonomia, o ser autônomo é o legislador de si mesmo, o governador de si próprio. A autonomia tem uma ligação íntima com a liberdade, mas antes disso ela tem mais correspondência com a capacidade de julgar.

A capacidade de julgamento autônomo, na modernidade, veio quando, como citado, o indivíduo tornou-se consciente de seu pensamento e, portanto, responsável por sua ação. Entretanto, há obstáculos de natureza sociológica que dificultam a plena realização da autonomia.

A economia quando gera disparidades sociais, aumentando o contraste de classes, abala de modo contundente a capacidade de julgar. Isso se dá porque o nível de escolarização é requisito fundamental para que esse atributo seja alcançado. Sem uma boa educação cada vez mais se faz presente a situação em que uma massa, sem a característica da consciência individual, é comandada por instituições que se perpetuam.



Vitor Lima



P.S. Este texto foi a resposta à questão "Faça uma análise das dimensões axiológicas do projeto civilizador moderno" da prova de Sociologia Geral e Jurídica, disciplina ministrada pelo professor Amir Menezes, na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Amazonas. Então, não se trata de um ensaio, artigo científico ou coisa do gênero. Pessoas mais cultas hão de criticá-lo (se o chegarem a ler, claro), mas o coloquei aqui antes para servir de ponto de apoio a outros universitários que estejam na situação em que estive quando pesquisava para elaborar o texto. Isto aqui está sem citação alguma, porque, ao final de contas, foi uma questão de prova que tive que escrever à mão. Mas como ponto de partida, acho que deve ser útil para quem está pesquisando sobre.

P.S.² Ah! Para quem não colocou muita fé no texto, ele mereceu nota 9.5.