quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Carregado de ódio


Há um termo, utilizado no vocabulário marinho, que designa a escultura com feições humanas ou animalescas, geralmente em forma de busto, embora possa aparecer de corpo inteiro também, que ornamenta a dianteira das embarcações. Tal escultura serve geralmente para evocar o nome da nave e também para afastar maus espíritos. Servindo para este último propósito, a cabeça de proa é quase sempre uma criatura feroz, com feições sombrias, fechadas, feitas na medida para impor o medo. Estou falando aqui da carranca.

A origem da palavra carranca é controversa, segundo o Houaiss. Não tem etimologia. Mas ao se fazer um exercício imaginativo pode-se aproximá-la por semelhança do verbo carregar. Essa sugestão ganha ainda mais força quando se verifica que outro atributo, além de sombrio, para expressar a feição da carranca é justamente a adjetivo carregada. Carregar é adicionar algo a algum lugar. Porém, quando algo está carregado, em sentido figurado, significa que há um excesso de carga, como quando nos referimos a um “perfume carregado”. A carranca só é carranca porque apresenta as feições carregadas e, por isso mesmo, medonhas.

Deriva de carranca, o qualificativo carrancudo. O carrancudo é aquele que, além da fisionomia, tem carregado o espírito e, devido a isso, seus fluidos corporais não circulam bem. Na antiguidade, tais fluidos corporais eram chamados de humores e eram tidos como determinantes das condições físicas e mentais do indivíduo. Hoje, essa crença antiga sobrevive quando dizemos que alguém está de mau humor querendo nos referir exatamente ao carrancudo. Este, aparte de ser um doente de corpo, é sobretudo um doente de espírito, já que está carregado.

Mas qual é a causa para que alguém se encontre, nesse sentido, carregado?

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Aristóteles escravocrata



Imaginemos a seguinte situação em sala de aula. Um professor está explicando o sistema filosófico de um autor clássico. Pode ser qualquer um – de Platão a Heidegger. Ele passa pelas etapas de qualquer manual, como era de se esperar, para elucidar o pensamento em questão. O tempo passa e lá pelas tantas resolve ser “crítico” e emitir sua opinião. E eis que passam a surgir palavras que enquadram o filósofo, simplificam-no por assim dizer. “Platão é comunista ao defender sua República”, “Hegel é um idiota por tentar abarcar a totalidade do real”, “Heidegger não passou de um nazista nojento”. Os estudantes mais envolvidos sorriem; os mais eufóricos gargalham. Uns concordam. Outros acham que o professor está apenas contando uma piada e demonstrando certo espírito ao fazê-lo. Porém, aos poucos, estes últimos vão se surpreendendo ao se dar conta de que não é piada coisa alguma. O professor realmente entende os filósofos através de vocabulários avaros, como se fosse uma apostila.

Dentro de uma representação simplificada, entretanto, qualquer filósofo vira qualquer coisa. Platão com efeito se torna comunista; Hegel, realmente maluco e Heidegger, sem dúvidas, um nazista nojento cuja filosofia não apresenta valor algum. Mas, um sistema filosófico ou um filósofo podem ser entendidos a partir de termos tão minguados, mesmo quando estamos diante, por exemplo, de uma tese por eles sustentada aparentemente indefensável?

Analisemos um caso de uma tese que é tomada como indefensável para nós, ocidentais modernos que vivemos em democracias liberais: a defesa da escravidão. A defesa que fornece Aristóteles da escravidão, é possível explicá-la? Seria Aristóteles um mero ideólogo da escravidão?