terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Uma crise de identidade filosófica


Chegando num parque que eu frequentava quando garoto, fui tomado por memórias de infância, cada qual um fértil relato de um passado remoto. À medida que eu ia me lembrando, cada relato escoava no próximo, e eu comecei a testemunhar o desenvolvimento de um intrincado personagem que eu chamo de “eu”. Todos esses relatos que eu tinha escrito na minha experiência fluíam juntos para me fornecer uma única história. Porém, refletindo sobre todas as experiências, objetivos, peculiaridades e valores que tive, ocorreu-me que minha identidade parecia mais esquiva que se poderia acreditar. Ruminando sobre essas vertentes do meu passado, às vezes era como se eu pudesse assistir ao desenvolvimento das minhas peculiaridades, à evolução dos meus valores, meus objetivos sendo atingidos e recriados; mas, em outros momentos, eles reiteradamente apareciam para mim como se fossem elementos estrangeiros a minha paisagem mental. Alguns dos relatos pareciam ser aspectos integrais de quem eu era, enquanto outros pareciam se distanciar, quase como se o personagem principal fosse uma pessoa diferente.


Ponderando melhor, comecei a pensar se haveria mais sobre minha identidade que a intuição ou o senso comum poderiam fornecer. O que me intrigou foi o fato de que eu me considerava uma pessoa única, com uma identidade única, ainda que “me” vendo como algo ainda não decifrado. O garotinho que tem o mesmo nome que eu e que aparece nos meus relatos parece ser tão diferente da pessoa que eu sou hoje, mesmo que eu tenda a incorporá-lo na minha identidade de pessoa única. O que é que me faz uma pessoa única através do tempo com uma única identidade? Poderia ser meu corpo – já que sou e tenho sido um único organismo biológico? Ou é a minha mente – posto que meus estados psicológicos se interconectam de tal maneira que constituem um só continuum? Também comecei a pensar: “Em que ponto da minha vida eu me tornei uma 'pessoa'? Quando eu adquiri 'personalidade'?” Isso me levou a pensar sobre uma série de questões: “Aquele garotinho era realmente a mesma pessoa que eu sou hoje?”, “Se eu enlouquecesse, eu poderia ser considerado a mesma pessoa de antes?” De repente, minhas reflexões tinham me levado a sérias questões metafísicas e filosóficas. Uma escura tempestade de confusão e lampejos de pensamento apareceram, apenas para iniciar um arco-íris espetacular de insights no meu céu psíquico.

Diferentes teorias da identidade

Normalmente, de modo intuitivo acreditamos que nossa identidade permanece constante através do tempo. Reconhecemos mudanças em características específicas etc., mas mantemos a crença da “verdadeira” identidade das pessoas. Se o seu bom amigo Greg afirmar que ele não é a mesma pessoa de cinco anos atrás, não suporíamos que ele fosse agora uma pessoa numericamente diferente; nós consideraríamos essa afirmação como uma figura de linguagem a denotar que Greg passou por importantes situações na sua vida, ou que ele sofreu algumas drásticas mudanças nas suas características mais singulares. Mas quando perguntamos “O que é que faz com que uma pessoa persista como a mesma pessoa através do tempo?”, podemos realmente dizer o que é que dá aos seres humanos as identidades pessoais únicas que nós assumimos que eles possuem?

Muitos filósofos tentaram resolver a questão da identidade pessoal gerando várias teorias a respeito. Farei uma sinopse das duas principais explicações, mencionando alguns dos principais jogadores e seguindo de modo a reconciliar essas visões opostas com uma explicação híbrida do que constitui uma identidade pessoal que persiste através do tempo como uma identidade individual numérica, em outras palavras, o que faz uma pessoa única.

As duas grandes – e rivais – explicações de identidades pessoais em filosofia tem sido teorias físicas ou baseadas no corpo e teorias psicológicas da identidade permanente. Das duas, as dominantes são aquelas que aderem a alguma forma de critério psicológico de continuidade da identidade pessoal. Porém, antes de se aprofundar nessa questão, gostaria de sumarizar a explicação física.

O critério de continuidade corporal para a identidade pessoal afirma: para que uma pessoa em um determinado tempo (t1) e uma pessoa em um tempo posterior (t2) sejam numericamente iguais (ou seja, para que retenham uma identidade única que persiste com o passar do tempo), a pessoa em t1 (P1) e a pessoa em t2 (P2) devem possuir o mesmo corpo. Se é possível dizer que o corpo em questão é de fato o mesmo corpo, apesar das mudanças em relação às suas partes individuais ou composição material particular, então P2 é de fato a mesma pessoa que P1.

Essa visão foca no corpo como um todo: um único corpo humano que pode ser expresso como a mesma matéria física que o corpo anterior apesar de algumas diferenças descritivas. Por isso, se seguimos a existência do corpo físico que recebeu o nome “Greg” ao nascer até o mesmo corpo crescido com a idade de vinte e cinco anos, apesar de várias diferenças físicas, poderá ser dito que ele é de fato o mesmo indivíduo a quem se deu o nome de “Greg” na infância. Nessa teoria, portanto, o que importa para a continuidade da identidade da pessoa é a existência contínua de uma única entidade física. (Versões mais complexas e elaboradas dessa teoria tem sido propostas por David Wiggins e Eric Olsen).

Por outro lado, teorias psicológicas afirmam que o critério para a persistência da identidade pessoal é a relação entrelaçada dos estados psicológicos dos indivíduos. Inicialmente, essa teoria foi postulada por John Locke (1632-1704), frequentemente considerado o pai do problema da identidade pessoal. Ele considerou a memória como o único critério para a identidade. Depois essa teoria foi revisada, por lockeanos e outros, de modo a incluir uma gama de fatores psicológicos, não somente memórias, como forma de explicação da identidade pessoal singular através do tempo. Essas teorias mais sofisticadas focam primariamente na continuidade psicológica ou na conectividade psicológica ou, ainda, na fusão das duas, e frequentemente apoiam-se na ideia de “estágios da pessoa” (uma pessoa em t1 é um estágio da pessoa; em t2, é outro estágio etc.)

Tipicamente, a teoria da continuidade psicológica afirma que para que P1 em t1 seja idêntico a P2 em t2, alguma continuidade de memória e personalidade precisa ser reconhecível entre P1 e P2. A teoria da conectividade psicológica, rigorosamente relacionada à teoria da continuidade psicológica, sustenta que algum tipo de conectividade psicológica é necessária entre os estágios da pessoa para que as duas possuam uma única identidade com o passar do tempo; porém, diferente das teorias da identidade baseadas na memória, a totalidade dos conteúdos dos estados psicológicos podem ser utilizadas e analisadas para designar identidade. Emprestando um sumário conciso do livro de Harold Noonan, “Personal Identity” (1989):

“Tal conexão é aquela que permanece entre uma intenção e o ato posterior no qual essa intenção é executada. Outras conexões psicológicas diretas são aquelas que permanecem quando uma crença, desejo ou qualquer outra característica psicológica persiste... Geralmente, qualquer ligação causal entre fatores passados e peculiaridades psicológicas presentes (e não apenas memórias) podem ser subordinadas à noção de conectividade psicológica.”

Objeções e pessoas

Uma refutação clássica ao simples critério da memória para a identidade pessoal foi elaborada por Thomas Reid (1710-96). O seu “Paradox of the Brave Officer” se dá essencialmente da seguinte maneira. Considere uma criança que se torna um jovem e, em seguida, um velho. Baseando-se apenas no critério da memória, poderia-se dizer que a criança é conectada psicologicamente ao jovem, se o jovem tiver uma boa porção de memórias da criança; e que o jovem e conectado psicologicamente ao velho na medida em que o velho tem suficientes memórias de sua juventude. No entanto, o velho pode mesmo assim ser considerado psicologicamente descontínuo, ou seja, desconectado com a criança, devido ao fato de que ele pode não ter memória alguma de sua infância. Entretanto, como é possível que a criança seja o jovem, e que o jovem seja o velho, ao mesmo tempo em que a criança é uma pessoa diferente do velho? “Obviamente, essas objeções atingem o alvo [o simples critério lockeano de memória], mas elas não vão muito além disso”, escreve Noonan (p. 55). Ou seja, ainda que poderosa na sua época, essa objeção falha em ser uma objeção adequada a teorias contemporâneas de continuidade psicológica, que dizem que desde que haja um conjunto contínuo de ligações de memórias entre a criança e o velho, eles podem ser considerados a mesma pessoa. Então (por exemplo), desde que o velho possa lembrar de que foi o jovem, e o jovem possa lembrar de que foi a criança, o velho é a mesma pessoa que a criança.

Um argumento influente mais a favor das teorias psicológicas que das físicas foi proposto por Derek Parfit, no seu “Reasons and Persons” (1984). É o seguinte. Um indivíduo entra em uma máquina de teletransporte na Terra, perde a consciência e acorda em outra máquina de teletransporte em Marte. A máquina na Terra é um “escaner”, e a máquina em Marte é um “replicador”. Uma vez que o escaner copiou os estados precisos de cada molécula do corpo da pessoa, ele transmite as informações ao replicador em Marte e simultaneamente destrói completamente o corpo na Terra. A partir de matéria completamente nova, o replicador em Marte cria um corpo que é uma réplica exata do corpo anterior. A pessoa, então, sai do replicador sem o pensamento de que ela não é contínua com a pessoa na Terra e, então, pode ser considerada a mesma pessoa. Portanto, essa pessoa possui continuidade psicológica, mas não corporal com a pessoa da Terra.

Apesar do seu predomínio na Filosofia, há objeções às teorias psicológicas da identidade pessoal. Uma delas pode ser chamada de “o problema da duplicação”. É possível que um dia surja uma máquina que seja capaz de gravar tudo sobre os estados psicológicos de alguém e de transferir essa informação a um novo corpo, ou até a mais de um corpo. Esse caso é parente de uma variação do teletransporte de pensamento de Parfit, no qual o replicador funciona mal e produz várias réplicas do corpo teletransportado. Nos dois casos, mais de um indivíduo possuirá precisamente os mesmos estados psicológicos, e todos eles estarão conectados com a pessoa anterior. De acordo com essa crítica, o critério psicológico deve ser falso, já que ficaríamos com duas ou mais pessoas encorporadas que, de acordo com o próprio critério, seriam legitimamente consideradas contínuas à mesma pessoa. Intuitivamente, isso parece absurdo.

Outra estória da identidade

Enquanto os defensores do critério psicológico e os advogados do critério corporal continuam a duelar, inventando divertidos e intrigantes experimentos de pensamento baseados em ficção científica, nenhum dos dois conseguiu de forma satisfatória derrotar o oponente.

Cada campo de teóricos tentou capturar algo do que faz um ser humano ser uma única pessoa. Entretanto, nenhum deles parece capturar outro elemento integral da nossa existência, a saber, que nós tendemos a definir a nós mesmos através da contação de estórias. Conhecemos um ao outro aprendendo sobre a história de vida de cada um e nos relacionamos com outros com base nos seus valores, ideologias, crenças, personalidades etc., todos sendo transmitidos por narrativas orais, escritas ou por qualquer outro meio. Portanto, uma resposta alternativa à crise de identidade filosófica tem sido a proposta de que o eu humano ganha sua identidade através da narração. Essa posição é conhecida como a teoria da identidade narrativa.

Todos os teóricos da identidade narrativa sustentam, em algum grau, que a identidade das pessoas são narrativas auto-criadas – alegando que a narração, ou a contação de estórias, é a maneira pela qual nos apresentamos a nós mesmos, a outros, e representamos os outros ao nosso redor. O teórico da narrativa está tentando capturar aquele elemento da experiência no qual dizemos “Ei, diga-me a sua estória” ou “Eu conheço você porque eu ouvi estórias a seu respeito”.

Nessa perspectiva, quem é (e quem não é) alguém depende das estórias de seu passado e das estórias de quem se deseja se tornar; dos objetivos que se tem e das ações levadas a cabo para chegar a eles; dos valores herdados narrativamente ou vindos por reflexão e por uma auto-contação de estórias; do lugar que se ocupa (emplotment) como personagem em uma estória de vida, interagindo com as estórias de outros. O teórico narrativo, portanto, toma habilidades linguísticas humanas e orientações quanto a objetivos como fatores que desempenham um papel importante na aquisição de uma identidade única enquanto pessoa. Alguns teóricos tem sustentado que o eu pessoal é o resultado de uma narrativa unificada e interativa; outros, o centro virtual de vários fluxos narrativos; outros, ainda, mantem uma posição mais existencial, enxergando o eu como um vir-a-ser constante, evoluindo à medida que se interage com o meio ambiente e que se reflete sobre a própria vida. Entre os proeminentes defensores da identidade narrativa estão Daniel Dennett, Alasdair McIntyre e Paul Ricoeur. Embora com abordagens diferentes, todos eles tentam capturar características da condição humana que os teóricos anteriores deixaram de fora, ou seja, a importância de nossas história de vida, imersão cultural, direção a um objetivo e auto-criação.

De volta à vida

Embora essas teorias sobre o que faz você continuar a ser quem você é possam parecer obscuras e abstratas, elas mantém de fato alguma influência sobre a vida humana e as preocupações que surgem no dia a dia – especialmente no campo médico, em que somos confrontados com questões envolvendo morte cerebral, estados vegetativos permanentes, comas, testamentos e outros dilemas psiquiátricos. De um jeito ou de outro, tudo isso traz questões relacionadas às várias teorias apresentadas.

Saindo da minha estada no parque e tendo refletido sobre os grandes mistérios da condição humana, perguntei a mim mesmo: “Não pode que eu seja, ao mesmo tempo, dependente de minha conectividade psicológica, de minha constância biológica e de minha história de vida?” Ainda que eu não tenha conseguido um milagroso avanço filosófico durante o meu passeio, espero ter fornecido algumas pistas de reflexão com este sumário de posições sobre a “crise de identidade filosófica”.


Texto traduzido por mim do original:

DURANTE, Chris. “A Philosophical Identity Crisis”. Philosophy Now Magazine, julho/agosto, 2013. Disponível no site: http://philosophynow.org/issues/97/A_Philosophical_Identity_Crisis. Acesso em 17/08/2013.


O autor do artigo, Chris Durante, possui PhD em Ética, MA em Estudos Religiosos e Msc em Filosofia de Distúrbios Mentais. Seus interesses em teorias da identidade e da personalidade alcançam uma variedade de campos, incluindo Bioética, Filosofia, Religião Comparada e teorias sociopolíticas. Leciona na McGill University de Montréal e também na Marymount Manhattan College e na St John's University, ambas em Nova York.