sexta-feira, 21 de março de 2014

Nelson Rodrigues, o gênio do clichê; por que não?

Nelson Rodrigues com a atriz Lea Garcia, encenando "Perdoa-me por me traíres" (1957)


As estórias de Nelson Rodrigues fizeram sucesso primeiro enquanto literatura veiculada em jornal – seja como folhetim, seja como crônica ficcional. Só depois, elas ganharam um apelo geral na teledramaturgia e na pornochanchada. Os títulos de Engraçadinha (1995) e A vida como ela é... (1996) – minisséries da Globo – são retirados, respectivamente, de seu romance-folhetim Asfalto Selvagem (1965) e de suas crônicas homônimas publicadas na década de 1950, no jornal Última Hora. O argumento da película A Dama da lotação (1978) também foi retirado de uma de suas crônicas de A vida como ela é...

Sabemos que é por essa via indireta que conhecemos Nelson Rodrigues. Temos alguma noção difusa de que ele é um autor importante. Alguns artistas, para parecerem inteligentes, até bradam: “Nelson Rodrigues é o Shakespeare brasileiro!”. Mas não sabem o porquê. Sabem que gente inteligente gosta dele, apesar de terem ouvido falar que ele é pornográfico e que toca em assuntos polêmicos como traição, estupro, incesto e assassinato. Alguns de nós que crescemos na década de 1990 talvez tenhamos visto alguma minissérie baseada em sua obra e nos deliciado com Cláudia Raia interpretando uma de suas heroínas. Talvez. O que está no imaginário de nós brasileiros é mesmo este Nelson: o indireto da TV e do cinema e o popular do jornal.

Alguns se utilizam desse imaginário para atacá-lo pela via moralista. Jugam-no da mesma forma que o julgaram os conservadores das décadas de 1940 e 1950, como um “tarado”. Outros o atacam da mesma forma que o atacaram os progressistas das décadas de 1960 e 1970, como um “reacionário” (Nelson apoiou a Ditadura Militar; até seu filho ser preso por ela...). Mas há quem hoje lhe apresente reservas por nenhuma das duas vias anteriores. Fazem-no, sim, por outras duas: indiretamente, pela interpretação que dele possam ter os conservadores atuais e diretamente, por ele ter sido alguém que não foi original. Meu amigo, o filósofo Paulo Ghiraldelli, é um exemplo. Em pelo menos três de seus textos aparecem objeções a Nelson. Tratarei deles aqui: Que fique claro que mulher não gosta de apanhar, Por que mulher precisa ser encoxada? e Nietzsche adorava sexo!

Agora, independentemente de Nelson, sei bem que em tempos conservadores um engraçadinho qualquer pode muito bem colocar essa frase “mulher gosta de apanhar” em um seu ensaio, para vender para velhotes reacionários, analfabetos funcionais e senhoras que acham culto tomar chá falando mal do governo porque fez leis trabalhistas para suas domésticas. Esses conservadores são de um tipo especial. São aqueles que as feministas, às vezes de maneira tão tola quanto eles, vão chamar de “machistas”. Pronto, está armado o circo.

Sabemos bem o quanto o que está descrito por Ghiraldelli pode acontecer e de fato acontece. O seu diagnóstico mais à frente é certeiro:
Mulher não gosta de apanhar. É o que é preciso falar para essa direita e essa esquerda que ficam disputando entre os “politicamente corretos” e os “politicamente incorretos”.  Pois antes dizer isso de uma vez que tentar explicar Nelson Rodrigues para cabeças de bagre. 

Existe algo pior que uma estória mal contada, que é exatamente explicar uma estória que não precisa de elucidação alguma. Quem leu a crônica A esbofeteada de Nelson Rodrigues sabe do que se trata. Aliás, nem é preciso se dar ao trabalho de ler – porque, ao final de contas, ler é um trabalho! –, basta que se assista à pequena esquete baseada no texto feita para a TV, parte de um dos capítulos de A vida como ela é... da Globo. Está disponível no Youtube. Nesse ponto, concordo com Paulo. É melhor dizer logo que mulher não gosta de apanhar que explicar o que Nelson queria dizer quando escreveu o seu texto e blá, blá, blá...

Porém, em outro texto, intitulado Por que mulher precisa ser encoxada?, Paulo escreve:
“Encoxar e ser encoxada ou encoxado na multidão ou nos confins de um quarto sujo de uma construção é cena de Nelson Rodrigues, e por isso eu não o vejo como escritor genial. Antes dele isso já era cliché (1).”

Na nota de rodapé anunciada acima, está escrito:
“Nelson é genial no sentido de provocador psicológico de quem o lê, aí sim. Ele mostra que qualquer um de nós pode querer violentar uma garota ou fazer coisa pior. O êxito das suas peças mostram exatamente isso: quem vê ou lê se trai ao ver duas vezes e se excitar.”

Paulo diz que Nelson é e não é um escritor genial – em diferentes acepções, claro. Ele não é um escritor genial quando é clichê e é um escritor genial quando é um provocador psicológico. Nesse ponto, concordaria inteiramente com Paulo, se eu não pensasse exatamente o contrário. Nelson é genial exatamente no clichê e não é genial exatamente na provocação psicológica.

Sua provocação psicológica é da mesma profundidade de uma notícia de jornal sensacionalista. Aparentemente, pratico aqui uma heresia, tenho plena convicção. Porém, não me acuse o leitor de não ter lido dramaturgias como Doroteia (1950), Anjo Negro (1946) ou Senhora dos Afogados (1947), por exemplo, que apresentam estruturas internas e símbolos que remetem às mais bem elaboradas tragédias de todos os tempos – de Ésquilo a O'Neill. O que quero dizer de sua provocação psicológica é que ela é tão corriqueira no que traz de conteúdo quanto o jornal de grande circulação ou as tragédias gregas que, ainda que clássicas, já estão mais que entranhadas no imaginário popular. Os jornais mais baratos sempre trouxeram o que Nelson traz – ele próprio sendo fruto desses jornais. Não preciso ler uma obra sua para me sentir provocado psicologicamente quanto ao conteúdo que leio. É só ligar a TV ou ler o jornal e, claro, não estar adormecido pela crueldade do dia a dia. É isto que quero dizer: não é ai que está a sua genialidade.

Porém, Nelson Rodrigues nunca teve outra pretensão que não a de ser um clichê. Isso não é segredo para ninguém. Corrigindo: para ninguém que o lê e sabe razoavelmente como se deu sua malfadada vida. Sua genialidade não consiste em apresentar conteúdo novo. Sua formação é de jornalista sensacionalista, seja na área policial, seja na área de esportes, enveredando, por vezes, até na área de conselhos amorosos – sob pseudônimo feminino até: Suzana Flag (hoje, Nelson não teria o menor pudor de fazer uso de um perfil fake no Facebook). Sua obra inteira reflete essa formação. Esperar dele algo diferente do popular no que ele tem de mais repetitivo é não entendê-lo. O que é genial é a forma como é apresentado, e não o conteúdo de todo esse fluxo de banalidade.

Duas, no mínimo, foram as inovações estilísticas introduzidas por ele na dramaturgia da época: o diálogo entrecortado, truncado, ligeiro e de vocabulário popular e a quebra do fluxo temporal e do espacial tradicionais das narrativa até então. Nelson ensinou a todo brasileiro que queria escrever dramaturgia como se escreve um bom diálogo. É notável sua influência nos textos que lhe sucederam até os dias de hoje. Sua primeira peça de sucesso, Vestido de Noiva (1941), é um exemplo típico do que estou falando.

O leitor já imaginou escrever uma história com o seguinte argumento: uma irmã rouba o marido da outra, que morre atropelada? Sim, é só isso. Quer coisa mais banal que isso, da profundidade de uma manchete de jornal sensacionalista, como eu já houvera dito? Pois, é. Mas foi essa peça que inventou o teatro brasileiro. E não foi o que ela trouxe de provocação psicológica ou de novidade de conteúdo, mas o que ela trouxe de banal sendo contado de um modo em que só um autor genial o faria. A história se passa em três planos: realidade, memória e alucinação. São 32 personagens, muitas vezes um ator tendo que encenar mais de um papel que, em questão de segundos, tem que se transformar em outro. Os três planos se sobrepõem, se cruzam e se confundem. Mesmo hoje esse estilo de narrativa não apresentando mais novidade nenhuma, Nelson, na estreia, teve que ler um texto, momentos antes do início do espetáculo, indicando o que iria acontecer. Após essa noite, nós brasileiros já tínhamos como dizer: “Tal qual outras nações tem os seus dramaturgos, nós também temos o nosso.”

Nelson imortalizou-se ali – ali conquistou seu lugar no panteão dos gênios brasileiros. Poderia não fazer mais nada, mas sabemos todos que ele não parou em Vestido de Noiva e produziu outras tantas obras primas – particularmente, a minha preferida é Boca de Ouro (1959), que não só contém as duas características por mim mencionadas, como tem compromisso somente com aquilo que só um escritor genuíno deve se preocupar: com a estória bem contada.

Nenhum bom escritor é bom escritor porque traz conteúdo novo. Pode ser, mas isso não é determinante. Nem o triunvirato dos tragediógrafos gregos, nem o próprio Homero, nossos arquétipos de escritores, inventaram o conteúdo de suas estórias. Elas já se constituíam em enredos conhecidos pela plateia no momento de sua representação, teatral ou rapsódica. Sempre foi a forma que uma estória é contada que fez a diferença. A genialidade de Nelson não poderia estar em outro lugar, portanto.

Mas será que Nelson nem contar uma estória sabe? Ghiraldelli, em Nietzsche adorava sexo!, faz uma comparação, dizendo que
Nelson Rodrigues nunca revelou algo interessante sobre o comportamento humano. Nadinha. Não se é um escritor da “natureza humana” por ser escroto, ainda que se possa ser genial sendo um escritor escroto.

Enquanto que
Rubem Fonseca é diferente. Aí sim há alguém capaz de falar do drama humano. Aliás, Rubem Fonseca é tão bom que ao falar dele como quem é um escritor da “natureza humana”, tenho vontade de utilizar essa expressão sem o uso das aspas, como se faria ou se fez no século XVIII ou mesmo XIX. Ele é genial para além do que um escritor é aceito como genial. É um escritor nota dez porque diz que vai terminar um conto de uma tal maneira e, cumprindo o prometido, ainda assim consegue surpreender.

Ghiraldelli acredita que a “capacidade de Rubem Fonseca de escrever de modo a não poder ser aproveitado por nós, filósofos, é o que o põe uma esquina a mais em relação a Nelson Rodrigues.” Em outras palavras, Fonseca não dá aquele ar forçadamente “filosófico” aos seus escritos, como sabemos que vários escritores dão, só para figurarem como escritores cult. Mas, espera... Nelson faz isso? Não estaria Ghiraldelli antes atacando um pastiche de Nelson Rodrigues que de fato a obra que lhe faz jus? Ao meu ver, parece ser exatamente esse o caso.

Em seus três textos que agora comento, o tema central que faz Nelson ser invocado é a mulher. A frase: “mulher gosta de apanhar”. Mas acontece que Nelson nunca disse isso em sua obra literária querendo atestar a “natureza” da mulher. Mesmo quando ele completou com a pérola “Só as normais” (o que aconteceu, inclusive, em um programa de TV, não em um de seus livros), mesmo ai o que ele estava fazendo era nada mais que uma anedota, no máximo um comentário provocador, não filosofia moral. Nelson nunca se erigiu como um escritor da alma humana. Nelson retratava obsessões, não o sexo ou o amor. Dentre as obsessões, estavam o sexo e o amor, mas ele nunca foi um escritor erótico ou romântico. Diziam-lhe freudiano. O que Nelson conhecia de Freud é o mesmo que Valesca Popozuda conhece quando diz a palavra recalque. Pediam-lhe para explicar suas peças, para clarificar se de fato tal e qual referência que lhe haviam imputado fazia sentido. Nelson retorquia que isso era trabalho de críticos, não dele. Nelson nunca leu Marx, mas isso não lhe impedia de dizer, de birra, que “Marx é uma besta”. Nelson era um ficcionista, não um escritor de metanarrativas. Se um filósofo ou outro dizem que ele fazia isso, pior para esse filósofo e para esse outro. Penso que não o entendeu.

Talvez, e isso é uma hipótese, meu amigo Paulo Ghiraldelli esteja atacando Nelson Rodrigues antes pela ótica que dele apresenta o filósofo Luiz Felipe Pondé que pela sua literatura própria. Pondé lançou seu último livro, A filosofia da adúltera (LeYa, 2013), inspirado em Nelson, mas antes disso já houvera confeccionado artigos sobre o dramaturgo. Só um filósofo leria Nelson dizendo que este fala da condição humana. Só um filósofo enxerga, em um autêntico ficcionista, um escritor da “natureza humana” – Não teria caído neste mesmo erro o próprio Ghiraldelli ao falar sobre Rubem Fonseca acima? Talvez, caso Nelson estivesse vivo, vaidoso que era, seria-lhe do agrado toda essa disputa de filósofos com livre trânsito pela imprensa falando sobre sua obra. Mas duvido que sobre isso ele tivesse algo mais a declarar do que repetir Fernando Pessoa, através de seu heterônimo Alberto Caeiro:
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas. 
Há só cada um de nós, como uma cave. 
 só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora; 
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse, 
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.  

quinta-feira, 20 de março de 2014

Discurso truncado e antijurídico

A.S. O texto a seguir não aborda o caso sob um ponto de vista filosófico. Antes da filosofia poder se constituir, há outras questões que merecem ser resolvidas. Lembrando de meus tempos de Jaqueira (apelido carinhoso da Faculdade de Direito da UFAM), faço antes um comentário estilístico e jurídico que filosófico, por entender que o erro no raciocínio por mim analisado, antes de ser ético, é de argumentação.


Fotograma do vídeo divulgado

O que dizer de um discurso jurídico que peca tanto no encadeamento de um simples raciocínio, quanto na aplicação de um instituto jurídico? Se o que está na reportagem do Jornal da Cultura Online é fidedigno à sentença judicial, o argumento usado na decisão da juíza é tanto truncado, quanto antijurídico.

A magistrada desconsidera o evidente dolo eventual, que se caracteriza quando, mesmo sem intenção declarada, assume-se o risco de produção de determinado resultado. No computo final, dolo eventual equivale a dolo comum, ou seja, ambos querem dizer que houve intenção efetiva de cometer o ato. Diferente do caso em que há culpa, quando não há intenção alguma (havendo ou imperícia, ou negligência ou imprudência).

Segundo a reportagem, são palavras da juíza:

"Assim sendo, por mais fortes, chocantes e, até mesmo revoltantes que sejam as imagens da senhora Cláudia Ferreira da Silva, já baleada, sendo arrastada no asfalto presa ao reboque da viatura, dos termos dos autos do APF [auto de prisão em flagrante] não é possível inferir que os policiais militares presentes na viatura conheciam tal circunstância e a ignoraram. Ao contrário, o que mostram as imagens é que a viatura parou e dois policiais desceram para a colocarem de volta no interior da viatura" 

Como não é possível inferir que eles conheciam a circunstância e a ignoraram? 

Se alguém - seja uma autoridade pública, seja um cidadão comum - transporta uma pessoa baleada até o hospital, é mais que razoável inferir que isso seja feito com o máximo de diligência possível. E enfatizo o possível, porque não quero dizer ideal, abstrato, mas à luz das circunstâncias. Agora, prestar atenção, no sentido mais simples de manter os olhos na pessoa transportada durante o caminho até o hospital é o mínimo - repito em caixa alta, MÍNIMO - de diligência que se espera. Por isso que os policiais, se não tinham intenção declarada, assumiram todos os riscos de acontecer o que aconteceu. A magistrada, quando nos quer fazer acreditar o contrário, parece agir por motivos não muito claros.

A reportagem também menciona que "os PMs decidiram transportar a mulher no porta-malas por terem sido hostilizados por moradores da comunidade". Não importa. Como já mencionado, espera-se somente o mínimo de diligência: por os olhos na pessoa transportada durante o caminho até o hospital. Esse mínimo, mesmo em vista a hostilização, não poderia ter sido descartado.

Além disso, há um raciocínio truncado difícil de aceitar. Repito o trecho do discurso da magistrada:

"não é possível inferir que os policiais militares presentes na viatura conheciam tal circunstância e a ignoraram. Ao contrário, o que mostram as imagens é que a viatura parou e dois policiais desceram para a colocarem de volta no interior da viatura"

Segundo a juíza, não é possível inferir que os policiais sabiam da circunstância; "ao contrário" (?), eles desceram da viatura e colocaram a mulher de volta. Ora, o que a juíza, no seu próprio discurso, mostra é que eles sabiam, tanto é que saíram da viatura e puseram a mulher de volta. Como assim "ao contrário"?

O discurso da magistrada é tão deficiente que erra tanto juridicamente quanto argumentativamente. Isso é estranho. Para não dizer outra palavra mais dura ao discurso de uma magistrada legitimamente constituída.

sábado, 8 de março de 2014

O corpo é todo da mulher! Não, pera...


A.S. Hoje é dia da mulher. E, de cara, peço uma coisa à leitora: sem essa de dizer que só hoje que é dia da mulher, e que os demais dias pertencem aos homens. Reclamar que a mulher só tem um dia, assim de forma banal, é coisa de gente que não sabe a função de um dia comemorativo. Deixemos isso de lado, hoje é dia da mulher. E o que pode fazer um texto dedicado ao dia da mulher? Poderíamos falar da essência da mulher, talvez, e dizer o quanto ela é especial em nossas vidas, dizer que sem ela não viveríamos, dizer que ela é o que de mais perfeito há. Yes, we can. Isso, porém, todo aquele que consegue olhar nos olhos de uma mulher e que consegue emitir alguma coisa além de grunhidos tem por dever falar frequentemente, não só no dia da mulher. Defender a essência da mulher nesses moldes é coisa que todo micróbio sabe fazer. O que quase todo mundo não sabe fazer e se atrapalha todo quando tenta é defender não a essência, mas o corpo da mulher.
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Sabemos que uma das pautas mais pertinentes do movimento feminista é a reivindicação de que o corpo da mulher a ela pertence e a mais ninguém. Ela faz o que quiser com ele. Concordo com essa tese geral. Mas encontro um problema com alguns daqueles que, iguais a mim, também concordam. É que eles, no caminho da defesa dessa tese, acabam por desdizê-la e por cair em algo que eles próprios, assim como eu, combatem: o moralismo barato. Tentarei explorar isso aqui. Seguirei o seguinte procedimento: montarei um personagem fictício que explicará, através de cartazes levantados em protestos feministas, como esse movimento luta em prol do esclarecimento e da conscientização da mulher sobre o seu próprio corpo. Vamos a ele.

We Can Do It! de J. Howard Miller, 1943

Eis uma imagem emblemática do movimento feminista. De propaganda de guerra criada na década de 40, ela virou símbolo de luta do feminismo nos anos 80 e serviu até de campanha política. Certamente é uma imagem encorajadora e que indica que, em termos de força física, a mulher pode ser tão capaz quanto o homem. É uma primeira indicação que ela tem condições de proteger o próprio corpo porque ela própria é forte. Nada de sexo frágil.

Manifestante de rua em protestos no Brasil (imagem da internet)

O cartaz acima já é bem mais recente e mostra uma mulher reclamando o direito de poder usar roupa provocante (a saia, no caso) e ainda assim não querer diretamente atingir ninguém, seja via sedução, seja via protesto contra os "bons costumes". É a reivindicação de usar uma saia curta, assim como um homem usa um calção curto - naturalmente, sem conotação sexual ou política necessárias. O que está em jogo é a exposição do próprio corpo da maneira que ela própria bem entenda. Convenhamos, é preciso ser muito ressentido ou muito conservador para não endossar esse tipo de reivindicação.

Cartaz de rua em protestos no Brasil (imagem da internet)

Se a mulher pode usar a peça de roupa que ela bem quiser, onde ela bem quiser, ela igualmente pode deixar de usar a peça de roupa que ela bem quiser, na ocasião que ela preferir. O corpo da mulher é completamente dela, e só interfere nele quem ela deixar - eis uma tese mais do que justa! Estamos, agora, preparados para algo além de cartazes que defendam o corpo da mulher; agora, o próprio corpo é o cartaz:


Manifestante de rua em protestos no Brasil - 2 (imagem da internet)

Sim, o próprio corpo é o cartaz. Como não poderia sê-lo? O corpo passa a ser valorizado: "EU NÃO SOU COISA!", "MEU CORPO ME PERTENCE", "RESPEITE". A imagem é emblemática porque não é uma boca que fala, não é um rosto que aparece, não é um objeto que contém palavras, mas sim as costas, uma parte do corpo que não se dá muita importância. E ainda assim, tal qual uma tatuagem, as letras estão lá para mostrar que cada parte do corpo merece destaque e pode ser exibida como bem convier a mulher que o mostra. Depois desse estágio, a mulher está pronta para dizer: "MEU CORPO MINHAS REGRAS" e se orgulhar disso, não é mesmo?!


Encarte do CD do grupo Gaiola das Popozudas


Valesca Popozuda (imagem da internet)









Desde que essa mulher não seja uma... uma... uma funkeira (cuspe no chão). Sim, porque uma funkeira não esta legitimada a fazer parte da luta conscientizadora das mulheres esclarecidas contra o machismo e o patriarcalismo opressores. Tudo o que uma funkeira faz é denegrir a imagem da mulher. A funkeira mostra a mulher como mais um pedaço de carne, como sendo nada além de um objeto. Não importa que Valesca Popozuda (cuspe no chão) tenha posado para foto com dizeres típicos de uma feminista esclarecida em protesto. Ela é uma funkeira, e uma funkeira jamais pode ser esclarecida. Uma funkeira é alienada e tudo o que ela representa é o resultado da decadência em que pode se encontrar alguém vítima do capitalismo selvagem, da sociedade de consumo e de espetáculo. Como alguém que canta músicas (músicas?), cujos nomes são Agora virei puta, A foda tá liberada, Quero te dar, Fiel é o caralho e Tô com o c* pegando fogo, como pode alguém assim ser não alienada? Pouca importa que ela tenha uma música (música?) chamada "Minha buceta é poder" - outra mensagem feminista típica -; no máximo ela copiou de algum cartaz e fez uma música (música?) sobre porque achou bonitinho.

Aqui, encontramos uma primeira ressalva à regra: o corpo é todo da mulher, desde que ela não seja funkeira, que funkeira é alienada.

Espera, há outra ressalva que eu acabei de pensar aqui. Vê se eu não tenho razão. O que você me diria das misses, aquelas mulheres que se vendem às aparências e vivem de mostrar o corpo? Tá certo que o corpo é da mulher, mas elas não sabem o que estão fazendo. Não é possível que saibam. OK, a Miss Brasil eu posso até deixar passar, porque ela tem conteúdo, é inteligente, lê livros (nem que seja só O Pequeno Príncipe, mas lê). Mas o que eu não suporto são aquelas mulheres que vendem o corpo (parecendo mais umas... putas), como é o exemplo da Miss Bumbum. Ano passado, quatro delas fizeram um protesto contra o grupo Fêmen, querendo fazer com que a gente acredite que elas são algo além do corpo. É claro que elas são só corpo. Olha a foto delas:


Aqui, aproveito para colocar outra ressalva na regra geral: o corpo é todo da mulher, desde que ela não seja funkeira, que funkeira é alienada, e nem Miss Bumbum, que também é tão alienada ou até pior. Aliás, quem foi que começou com esse papo mais sem pé, nem cabeça que o corpo tem que ser só de responsabilidade da mulher, mesmo? Isso não faz o menor sentido!
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P.S. Esperemos que este texto não precise de explicações. De resto, neste dia, desejo às mulheres que eu amo, que eu as continue amando, porque elas continuarão sendo muito sortudas por me terem em suas vidas.