terça-feira, 6 de setembro de 2016

Crianças, animais e nossa sensibilidade burguesa



Aspectos marcantes distinguem a sensibilidade aristocrática da sensibilidade burguesa. O modo como nos transformamos para nos importar mais com nossos filhos e animais é ilustrativo. Se antes nossos hábitos requisitavam que fôssemos altivos e duros, hoje nossos costumes pedem que sejamos reservados e tenros. Ao menos no âmbito doméstico.

Inicio com a proximidade entre pais e filhos, no Antigo Regime. Na família aristocrática, ela é quase inexistente. A educação dos rebentos não se dá no seio familiar. Inicialmente, famílias da mesma estirpe mantêm os filhos de outras sob sua guarda, iniciando-os no mundo das armas e da equitação. Os aprendizes, em troca, prestam serviços diversos, como a escuderia. A educação, assim, não se dá necessariamente na escola formal, mas entre pares. Sem falar que a aprendizagem de ofícios manuais e mecânicos é desonrosa.

Mas chega o tempo, porém, em que o aristocrata se afasta da carreira de armas. Então, um novo modelo de educação emerge: a conversação elegante e a discrição. O rei, com seu poder cada vez mais ameaçado, atrai para a vida da corte a aristocracia. Com isso, cria a dependência financeira entre o cortesão e o erário real. E, assim, paulatinamente, afastam-se nobreza e passado guerreiro.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

O claro-escuro do debate sobre etnocentrismo



Criticar outra cultura, com frequência, traz duas sombras: etnocentrismo e intolerância. Os colonialismos europeus velho e novo, aliados a ideologias racistas como o nazismo são exemplos históricos de desrespeito total às diferenças. Ambos foram etnocêntricos e intolerantes. Com essas imagens em mente, é compreensível que o medo do escuro retorne. Quem não faz o esforço de acender uma vela que seja, porém, resume qualquer discussão do tipo àquelas duas categorias. A conclusão, invariavelmente, é a mesma: relativismo cultural. Esquece o relativista, porém, que sua posição não é tão pacífica quanto imagina. Um contra-exemplo famoso foi fornecido há 45 anos.

Claude Lévi-Strauss, o célebre antropólogo, proferiu uma conferência pública endereçada à UNESCO, em ocasião do Ano Internacional de Combate ao Racismo e à Discriminação Racial, em 1971. Sua tese: livrar-se do etnocentrismo não é a melhor opção. Sua justificativa: é certo que o zelo aos próprios valores pode levar à exclusão de valores alheios, porém trata-se de um preço necessário a ser pago para que se mantenham sistemas de valores particulares. Caso as culturas não permaneçam um tanto impermeáveis umas às outras, haverá uma verdadeira confusão, o que faria com que perdessem seu propósito, isto é, sua razão de ser enquanto sistemas materiais e simbólicos únicos, inconfundíveis.

O ponto aqui é o perigo da extinção da diversidade. Ao contrário do que se pensa, defendeu Lévi-Strauss, o etnocentrismo é um possibilitador, não um supressor da diferença. O combate ao etnocentrismo levaria a uma progressiva suavização do contraste cultural, o que acarretaria uma universalização de valores que, ao invés de propiciar diversidade, incentivaria uniformização. Em uma frase: tolerância desesperada com o objetivo de suavizar o contraste cultural traria contraste cultural algum.

Desde a manifestação do antropólogo, um mal-estar se instalou entre os detratores do etnocentrismo. Há um risco real de que a tolerância excessiva se torne sinônimo de ausência total de parâmetros de avaliação. Se é verdade que não se pode sair da própria cultura para avaliar outra, persiste a necessidade de avaliação. Ou se sustenta que toda avaliação cultural é tão válida quanto qualquer outra (relativismo cultural), ou se sustenta que existem avaliações culturais melhores que outras (etnocentrismo). Caso optemos pela primeira, como escaparemos da escuridão colonialista e nazista. Com mais breu?

O relativista, então, uma vez ciente das fraquezas de seu argumento deve ser chamado a se defender. Não se trata de um imperativo, mas de uma recomendação ética. Uma recomendação ética, porém, é sempre uma obrigação, ainda que posta de nós para nós mesmos, sem coação. Não devemos perder de vista que não é suficiente julgar-se racional por sustentar um valor digno. Se há objeções relevantes àquilo que acreditamos e optamos por ignorá-las, então estamos diante de uma condição irracional. Em vez de cultivarmos os raios do sol, retornamos às trevas da noite.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Sócrates não panfletário





“Só sei que nada sei” é um enunciado facilmente convertido em saída comum para alguém que quer parecer inteligente. Ao menos em alguns círculos. Mostra que você sabe quem é Sócrates. Indica, também, que você é alguém que reflete antes de emitir uma opinião. Ou, antes, sugere que você é daqueles tipos sábios que prefere deixar no ar uma mensagem a entregá-la de mão beijada. Afinal, você quer provocar o pensamento crítico nas pessoas.

O desenho acima poderia trazer à baila essa interpretação. Um professor de filosofia que endossasse o que acabei de descrever poderia tentar convencer a turma de que Sócrates realmente defendeu que nada sabia. Por isso, quero deixar claro desde já que Sócrates não defendeu que de nada sabia. Depois de argumentar a favor dessa tese, ofereço outra possível interpretação à charge.