segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Sócrates não panfletário





“Só sei que nada sei” é um enunciado facilmente convertido em saída comum para alguém que quer parecer inteligente. Ao menos em alguns círculos. Mostra que você sabe quem é Sócrates. Indica, também, que você é alguém que reflete antes de emitir uma opinião. Ou, antes, sugere que você é daqueles tipos sábios que prefere deixar no ar uma mensagem a entregá-la de mão beijada. Afinal, você quer provocar o pensamento crítico nas pessoas.

O desenho acima poderia trazer à baila essa interpretação. Um professor de filosofia que endossasse o que acabei de descrever poderia tentar convencer a turma de que Sócrates realmente defendeu que nada sabia. Por isso, quero deixar claro desde já que Sócrates não defendeu que de nada sabia. Depois de argumentar a favor dessa tese, ofereço outra possível interpretação à charge.

Sócrates diz na “Apologia”, escrito de Platão que descreve o discurso de defesa do mestre, que, em comparação a alguns cidadãos, nada sabia. O termo central é ‘comparação’. As pessoas a quem se referia, quando inquiridas sobre assuntos gerais do tipo “O que é a beleza?” ou “O que é o amor?”, diziam tudo saber sem nada explicar. Sócrates, ao contrário, explicava muita coisa e dizia nada saber. Essa afirmação se sustentava, devido ao fato de grande parte dos diálogos socráticos terminarem em aporia, isto é, impossibilidade de se obter uma conclusão segura sobre determinada questão. Nesse sentido, Sócrates afirmou, sim, que era consciente de sua ignorância e que não se gabava de saber o que não sabia. Jamais afirmou que nada sabia. Ao contrário, em ao menos dois diálogos, afirmou que sabia muito sobre um assunto que lhe era caro: o amor (ver, por exemplo, “O Banquete” e “O Fedro”).

Dito isso. Volto-me à interpretação do quadrinho anunciada antes. A estória mostra simplesmente que Sócrates -- ou um socrático -- é o oposto de um panfletário. Aponto dois motivos a favor dessa visão.

Primeiro, Sócrates não deixou escritos (seu pensamento nos vem majoritariamente através dos escritos de Platão, Xenofonte e Aristófanes). E o fez por vontade própria. Sua justificativa: a palavra escrita é "burra", isto é, sempre que você perguntar algo, ela responderá o mesmo. Isso não permite nem desdobramento da conversa, nem possibilidade de refutação. Essa concepção o levou a filosofar exclusivamente por meio do diálogo, de preferência na ágora (praça pública).

Segundo, Sócrates se recusava ser chamado de professor, por não ensinar nada a ninguém -- é possível ler essa declaração na "Apologia". Daí a maiêutica (parturição de ideias): Sócrates se apressava em dizer que, em vez de ensinar, somente ajudava seu interlocutor a expressar aquilo que já estava em sua mente. Seu papel era de, no máximo, ajudá-lo a reconhecer contradições em seu discurso e, assim, clarificar suas convicções.

Esses dois motivos explicam o panfleto estar em branco. De um lado, não poderia haver nada escrito, porque esse não é método socrático. De outro, um panfleto em branco é, na verdade, a negação de um panfleto, cujo objetivo maior é convencer alguém apelativamente. Ao fornecer um papel em branco para alguém, você, enquanto socrático, quer que ele escreva por si próprio. Nesse sentido, confirma-se a maiêutica.

A charge, dessa forma, captura muito bem o espírito não panfletário (nos dias de hoje, em nosso país, diríamos, não militante) que todo filósofo, enquanto filósofo, deve assumir. Interpretar o quadrinho dessa forma, e não como uma simples reiteração da auto-ignorância, ajuda a entender a importância que existe em assumir, antes de tudo, uma posição intelectualmente autônoma. Ajuda, sobretudo, a reconhecer aqueles que, apesar das melhores intenções, querem antes nos fornecer uma doutrina pronta que nos ajudar a atingir o tão propalado “senso crítico”.

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