sábado, 27 de junho de 2015

A “amizade platônica” de Mario de Andrade



“Se agora toco neste assunto em que me porto com absoluta e elegante discrição social […]”, diz Mário de Andrade em recente carta publicada, “é porque se poderia tirar dele um argumento para explicar minhas amizades platônicas, só minhas.” Não é fácil interpretar esse trecho; chama a atenção, porém, a expressão utilizada pelo escritor: “amizades platônicas”. Não seria amor platônico o que o artista quis dizer?, perguntaria alguém. Eu penso que não.

Consideramos saber o que significa amor platônico. Significa, diríamos, um amor idealizado em que amamos um projeto de pessoa e não a pessoa em todas as suas idiossincrasias. Significa também um amor em que namoramos alguém, sem que necessariamente alguém nos namore. É assim que quem não leu o Banquete, nem o Fedro entende Platão. Nada de mais, todo grande pensador deixa de precisar ser lido para ter seu nome ou sua doutrina (mal) entendidos. Mas Platão pode querer dizer algo diferente do platonismo do senso comum.

terça-feira, 23 de junho de 2015

Viviany Beleboni não representa


Viviany Beleboni, a atriz que realizou uma performance em que aparecia crucificada, na última parada gay, participou ontem do Hora da Coruja, programa de filosofia na FlixTV, conduzido pelos amigos Francielle Chies e Paulo Ghiraldelli Jr., ocasião em que lhe fiz uma pergunta. Perguntei-lhe sobre o que ela achava do caráter político da parada gay, do modo como se manifestavam politicamente a comunidade LGBT.

O que motivou minha pergunta foi o fato de, mais cedo, ali mesmo, e em outras entrevistas, Viviany ter alegado que não concordava com o modo com que estão, principalmente alguns políticos difamadores, vinculando sua imagem à de outros manifestantes mais exaltados.

Sabe-se que o pastor deputado Marcos Feliciano divulgou uma montagem em que aparecem as imagens de Viviany crucificada em um quadro, junto a outros quadros em que aparecem outros manifestantes executando performances mais agressivas, uma delas é a de enfiar um objeto no cu, outra é a de fumar maconha. Sabe-se também que já foi desmentido que os quadrantes retratando os heterogêneos manifestantes não são todos da parada gay. (O leitor pode ver a reportagem em que ocorre o desmonte da farsa aqui). Porém, por que incomoda Viviany o fato de vincular sua imagem a outras manifestações?

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Filosofia: razão e fé


Greg Ganssle
Universidade de Yale

É uma ideia muito popular a de que fé e razão são opostas. Assim, se sustento algo baseado na fé, não é o caso que eu tenha também boas razões para sustentar isso. Ou, se argumento sobre algo, não é o caso que eu tenha fé. Algumas das razões porque é difícil hoje relacionar fé e razão tem a ver com o modo como falamos sobre o que acreditamos.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Acertar no alvo*

Ernest Sosa

Ernest Sosa**

O que é saber verdadeiramente algo? No dia a dia, podemos não pensar muito nisso – a maioria de nós repousa naquilo que considera ser julgamento justo e senso comum ao estabelecer o que é conhecimento. Mas a tarefa de definir claramente o que é conhecimento verdadeiro é mais complicada que possa parecer à primeira vista e é um problema que os filósofos têm lutado contra desde Sócrates.

Nos complacentes anos 1950, era sabedoria consolidada que sabíamos ser uma dada proposição verdadeira se, e somente se, ela é verdadeira, nós a acreditamos verdadeira e estamos justificados em acreditar nisso. Esse consenso foi explodido em uma breve nota de Edmund Gettier, na revista Analysis.

Aqui vai um exemplo do tipo usado por Gettier para refutar a teoria. Suponha que você tenha todas as razões para acreditar que você tem um Gol, já que o tem em sua posse há vários anos e o estacionou essa manhã na vaga usual. Entretanto, ele acabou de ser destruído por uma bomba, de modo que você não possui Gol algum, a despeito de sua crença justificada de que possui. Enquanto está tomando seu café da manhã num quiosque, você medita que alguém ali possui um Gol (já que, afinal, você o possui). E finda que você está correto, mas só porque outra pessoa no quiosque, o garçom, possui um Gol, fato que você nem suspeita. Aqui, então, você tem uma crença verdadeira bem justificada que não é conhecimento.

Após muitas tentativas de ajustar a explicação do tipo crença verdadeira justificada com poucas modificações, os filósofos empreenderam algo mais radical. Uma abordagem promissora sugere que conhecimento é uma forma de ação, comparável a de um arqueiro bem-sucedido, quando ele conscientemente objetiva acertar um alvo.

Um tiro de arco pode ser avaliado de muitas maneiras. Ele pode ser acurado (bem-sucedido em acertar o alvo). Ele também pode ser ágil (habilidoso e competente). Um tiro de um arqueiro é ágil somente se, à medida que a flecha sai do arco, ela é bem orientada e suficientemente vigorosa. Mas um tiro que é ao mesmo acurado e ágil pode, ainda assim, não alcançar a meta. Considere um ágil tiro de flecha, deixando o arco com velocidade e orientação que normalmente acertaria o alvo na mosca. Então, uma rajada de ar o desvia, mas uma segunda rajada o coloca de volta no caminho. Esse tiro é acurado e ágil, mas falha em ser apto. A aptidão de um tiro requer que seu sucesso seja alcançado não apenas por sorte (tal qual a sorte da segunda rajada). O sucesso precisa ser antes o resultado de uma competência.

Isso sugere a explicação AAA de um bom tiro de arco. Mas podemos generalizar a partir desse exemplo, para dar uma explicação de uma tentativa completamente bem-sucedida de qualquer tipo. Qualquer tentativa terá um alvo distintivo e será, assim, altamente bem-sucedida somente se obter sucesso não apenas agilmente, mas aptamente.

Claro, uma tentativa completamente bem-sucedida é boa, acima de tudo, somente se o objetivo do agente é bom o suficiente. Uma tentativa de assassinar uma pessoa inocente não é boa, mesmo que seja completamente bem-sucedida. Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, desenvolveu uma explicação AAA de tentativas de levar a uma vida próspera, em acordo com virtudes humanas fundamentais (por exemplo, justiça e coragem). Tal abordagem é chamada de ética das virtudes. Já que há uma quantidade de verdade que precisa ser captada, caso alguém queira prosperar, alguns filósofos começaram a tratar a aptidão de alcançar a verdade como virtuosa, no sentido aristotélico, e desenvolveram uma epistemologia da virtude, que também finda por resolver problemas do tipo posto por Gettier. (O próprio Aristóteles, em VI.2, da Ética a Nicômaco, suporta o alcance da verdade como o bom funcionamento do intelecto.)

A epistemologia da virtude inicia por reconhecer asserções ou afirmações. Estas podem ser tanto públicas, em alto e bom som, ou a si mesmo, na privacidade da própria mente. Uma afirmação pode ter um ou vários objetivos, e até mesmo mais de um de uma vez só. Pode ter como objetivo enganar, como quando é uma mentira. Ou pode ter como objetivo exibir-se, revigorar alguém ou estimular confiança em si próprio quando se entra em uma competição atlética.

Um tipo particularmente importante de afirmação é aquele que objetiva alcançar a verdade, em acertar o alvo. Tal afirmação é chamada de alética (do termo grego para verdade: aletheia). Tudo que uma afirmação precisa para ser alética é que um de seus objetivos seja este: acertar o alvo.

Os humanos realizam atos de afirmação pública no esforço de falar a verdade, atos de crucial importância para uma espécie linguística. Precisamos de tais afirmações para atividades da maior importância para a vida em sociedade: para deliberação coletiva e coordenação e para o compartilhamento de informação. Precisamos de pessoas dispostas a afirmar as coisas publicamente. E precisamos que elas sejam sinceras (em geral), alinhando afirmação pública com julgamento privado. Finalmente, precisamos de pessoas cujas asserções expressem o que elas sabem realmente.

A epistemologia da virtude fornece uma explicação do conhecimento do tipo AAA: saber afirmativamente é fazer uma afirmação que é acurada (verdadeira) e ágil (que requer levar apropriadamente em conta as evidências). Em adição, porém, a afirmação precisa ser apta, ou seja, sua acuidade deve ser atribuível à competência, em vez de sorte.

Requerer do conhecimento que seja apto (em adição a acurado e ágil) reconfigura a epistemologia enquanto uma ética da crença. E, como bônus, permite à contemporânea epistemologia da virtude resolver nosso problema de Gettier. Agora temos uma explicação do porquê você falha em saber que alguém no quiosque possui um Gol, quando o seu próprio Gol foi destruído por uma bomba, enquanto que acontece do garçom possuir um. Sua crença nesse caso falha em atingir conhecimento pela razão de que falha em ser apta. Você está certo que alguém no quiosque possui um Gol, mas a correção de sua crença não manifesta sua competência cognitiva ou epistêmica. Você está certo somente porque, por sorte epistêmica, acontece do garçom possuir um. Quando nas suas cogitações você afirma a si mesmo que alguém no quiosque possui um Gol, sua afirmação não é uma afirmação alética apta e, assim, falha em atingir conhecimento.

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*SOSA, Ernest. Getting it right. The New York Times, Opinion Pages, Opinionator, The Stone. Nova York, 25 mai. 2015. Traduzido por Vitor Ferreira Lima. Disponível em <http://opinionator.blogs.nytimes.com/2015/05/25/getting-it-right/>. Acesso em: 12 jun. 2015.

**Ernest Sosa é professor de filosofia na Rutgers University. É autor de vários livros, entre eles “Knowing Full Well” e, mais recentemente, “Judgment and Agency”.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Não me deixe jamais, lembre-se de mim





A poucos centímetros, muitos quilômetros.
Por que essa impressão
de que precisaria de quilômetros
para medir
a distância,
o afastamento
em que a vejo nesse momento? 
(João Cabral de Melo Neto)



O mínimo que deves saber sobre o máximo a que chega tua cabeça, na iminência de explodir, é que os pedaços de carne e os respingos de sangue sujarão todas as paredes a tua volta. Terás que limpá-las depois, e isso já é motivo suficiente para que penses mais, respires mais. Sempre que respiras, teu espírito é outro. Acredite. O segredo é encher-se de ar.