sábado, 27 de junho de 2015

A “amizade platônica” de Mario de Andrade



“Se agora toco neste assunto em que me porto com absoluta e elegante discrição social […]”, diz Mário de Andrade em recente carta publicada, “é porque se poderia tirar dele um argumento para explicar minhas amizades platônicas, só minhas.” Não é fácil interpretar esse trecho; chama a atenção, porém, a expressão utilizada pelo escritor: “amizades platônicas”. Não seria amor platônico o que o artista quis dizer?, perguntaria alguém. Eu penso que não.

Consideramos saber o que significa amor platônico. Significa, diríamos, um amor idealizado em que amamos um projeto de pessoa e não a pessoa em todas as suas idiossincrasias. Significa também um amor em que namoramos alguém, sem que necessariamente alguém nos namore. É assim que quem não leu o Banquete, nem o Fedro entende Platão. Nada de mais, todo grande pensador deixa de precisar ser lido para ter seu nome ou sua doutrina (mal) entendidos. Mas Platão pode querer dizer algo diferente do platonismo do senso comum.

No Banquete, o discurso de Sócrates é no sentido de pôr o amor funcionando como uma dose de sublimação, isto é, algo que modifica sua orientação originalmente sexual de maneira a ser conduzido a outro estágio, de mais valor. O amor funcionaria metodologicamente como uma espécie de escada em que, degrau a degrau, vai-se amando corpos belos até que se esteja preparado para contemplar o Belo, que é totalmente não corpóreo. Então, ainda que com um objetivo, por assim dizer, mais elevado, o amor platônico aqui não exclui o contato corporal e, consequentemente, sexual, nada idealizado com o amante.

No Fedro, ocorre o elogio do amor enquanto loucura, a loucura daquele que, ao ver a beleza sobre a Terra, é capaz de esquecer de tudo o mais e só ter olhos para ela. Essa loucura merece elogio acima de tudo porque é enviada por um deus, Eros. E, secundariamente, porque o desejo dos amantes, caso iniciados nos mistérios do amor, empenha-se em fazer com que um invista na melhoria do outro. Novamente, nada do entendimento comum do amor platônico enquanto algo que é possível mesmo que um amante não saiba da existência do outro.

Mas o que toda essa conversa sobre amor tem a ver com Mario de Andrade?

Toda a celeuma que envolveu a publicação da carta do autor centrou-se em saber se a predileção homossexual ali revelada era ou não relevante para explicar sua obra artística. Dividiu-se em considerá-lo uma espécie de Oscar Wilde, em que se pode mais facilmente vislumbrar uma relação entre opção sexual e obra, e alguém cuja opção de quem amar em nada interferiria na condução do trabalho. Essa discussão é irrelevante para os propósitos aqui levantados. Tudo o que pretendo é chamar atenção para o fato de que a “amizade platônica” pode contribuir de modo significativo, sem que para isso tenhamos que entendê-la do modo como entendemos a homossexualidade moderna.

Até agora evitei propositalmente mencionar os termos que utiliza Platão, porém não há mais como separar o amor platônico do que ele chama de “amor filosófico por rapazes”. O amor filosófico por rapazes é o procedimento filosófico por excelência para Platão. Nesse caso, Eros trabalha de modo a favorecer o melhoramento do amante e do amado, na condução da pederastia, fazendo com que cada um se movimente no sentido de mostrar a sua excelência ao outro. A filosofia intervém como matéria conversacional, iniciando com o belo carnal, até o Belo enquanto Forma, daí à Verdade e ao Bem. No processo, os amantes dedicam homenagens concretas um ao outro, que podem se traduzir em grandes obras culturais – o que evidencia o impulso criador do amor. Esse caminho, em Platão, extrapola a vida, numa amizade de almas indissolúvel – afinal, após a morte, permanecem suas obras imortais.

Prevendo que encararíamos a grega “amizade platônica” de forma banal como o moderno e romântico “amor platônico”, Mario de Andrade deixou criptografado que, para ele, o amor por rapazes era muito mais que homossexualidade ou questão de identidade de gênero. Era, sim, ainda que carnal, algo que envolvia sublimação e impulso criador, não um simples amor não correspondido por este ou aquele amigo hétero. Talvez Mario de Andrade, em seu amor filosófico por rapazes, tenha sido o nosso Sócrates, e nós só tenhamos nos dado conta disso 50 anos após sua morte. Mas se tem uma coisa que Platão nos ensinou é que nunca é tarde para reabilitar Sócrates.

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Para saber mais sobre Sócrates, pederastia e amor, recomendo e recém lançado livro -- que muito contribuiu para este texto -- Sócrates pensador e educador: a filosofia do conhece-te a ti mesmo de Paulo Ghiraldelli Jr. Você pode comprá-lo online pela Livraria da Folha.

2 comentários:

Augusto Lima disse...

Aqui talvez até se possa defender a tese de que a filosofia grega surgiu mediante impulsos criativos de amor carnal...

Vitor Lima disse...

E amor carnal por rapazes. Necessariamente. Não nos esqueçamos.