domingo, 17 de abril de 2016

Do ofício de viver



Trabalhamos, laboramos e agimos. Três atividades inerentes à condição humana. É desse modo que Hannah Arendt apresenta, em seu livro homônimo, o inescapável de ser homem neste mundo. Todas elas podem ser entendidas através de um só termo, em toda sua polissemia: arte. E mostram, também, o quanto é impossível apartar a vida que se faz da arte de fazê-la.

Trabalhar é manter a própria existência. É todo esforço que não deixa rastro e só objetiva a manutenção da máquina que trabalha. Sabe o ditado "viver para trabalhar"? É isto: a condição que o proletariado se encontrava na primeira fase da Revolução Industrial. (só lá?)

Laborar é produzir uma obra, um utensílio que sobreviva para além da máquina que o produziu. É laborando que deixamos de meramente existir e passamos a produzir o mundo. Ainda assim, porém, estamos no campo da indistinção. Afinal, produzir instrumentos não é privilégio do homo sapiens.

E aqui entra a ação que tem como resultado a voz, o fazer-se ouvir, em um ambiente de iguais, no uso do próprio discurso. Essa atividade só pode ser compreendida em ambientes muito específicos, semelhantes à ágora antiga, em que é possível o diálogo livre, sem imposição heterônoma.

Todas elas exigem o que os gregos chamariam de téchne, i.e., habilidade, prática de um ofício. Nós, via latinos, usamos o nome "arte" e, claro, expandimos seu significado para compreender outros conceitos. Porém, mesmo práticas diferentes, como a do sapateiro, do bailarino e do político, por exemplo, requerem arte naquele sentido. Se é assim, com maior força a atividade mais geral de viver também o requer. Trabalho, labor e ação são o que estruturam o ofício de viver, são o que compõem a vida enquanto arte.

Da arte dos grandes à vida dos pequenos



Arte nem sempre foi arte. Explico: a cronologia do termo mostra que nem sempre foi uma questão olhar para um quadro e perguntar: "Há algo de especial nisto?". As perguntas do passado, porém, por mais diferentes da atual, já indicavam a dificuldade de se estabelecer uma fronteira entre a obra criada e sua influência para além da criação.

Os gregos não tinham arte, mas téchne (ofício, habilidade e não expressão estética). Por isso, não havia artista, embora houvesse poesia. Homero servia, ao mesmo tempo, de criação literária e guia de condutas. Sua influência era tal que se tornou inevitável perguntar: deve o poeta ser o guia comportamental de todos?

Platão respondeu que não. E sua resposta baseou-se na premissa de que a fronteira entre invenção e realidade é difícil de se estabelecer -- ao menos da perspectiva da maioria dos homens. Só ao filósofo seria dada, após longo treinamento, a distinção. Por prudência, que o poeta se mantenha afastado.

A modernidade, por sua vez, como assevera Weber, traz a separação das esferas de valor: técnica, arte e moral passam a ser campos distintos, cada um com suas regras próprias. Não faz mas sentido perguntar se Homero retratou ou não Aquiles de forma virtuosa. A pergunta, agora sim, passa a ser: que critérios fazem dos versos homéricos algo passível de apreciação artística?

A resposta nunca foi pacífica, e houve quem dissesse ser impossível separar modo de viver de apreciação de obras de arte. Aliás, em nossos tempos, a pergunta passou a ser outra: para que indagar o que é arte, se os próprios artistas, a cada obra, parecem suspender os critérios anteriores?

Idiossincrasia do artista, critérios universais ou habilidades próprias ao ofício, pensar a arte permite intuir o quanto é difícil apreciá-la e, ao mesmo tempo, despir-se de valores. É difícil comparar influências. Homero nos forma até hoje. Porém, ao menos após o Romantismo, sua hegemonia é ameaçada por outro grande criador: você mesmo, isto é, cada um de nós.

Criadores e criaturas



Na criação dos animais, o homem saiu em desvantagem. Prometeu, compadecido, furtou o fogo divino e deu-lhe de presente. Zeus descobriu o delito e condenou-o a ter suas entranhas dilaceradas por um pássaro e, em seguida, regeneradas, para que o processo continuasse no dia seguinte. Eternamente. "Mito", poderíamos pensar. Sim, porém os limites entre vida e arte, realidade e ficção, cotidiano e extraordinário não são tão fáceis assim de ser estabelecidos.

Mito não é mentira pura e simples, mas uma construção simbólica para explicar a realidade. Um modo de ler Prometeu é encará-lo como uma narrativa de aquisição do saber e dos perigos de desmedida por ele acarretados. A sabedoria vem dos deuses, mas não sem custo. Seria o homem verdadeiramente digno de tal dom?

O soberano do Olimpo diria que não: "a condição humana é precária, e tudo o que deve fazer o homem é sobreviver e nos adorar". Um mortal retorquiria: "não somos deuses e é por isso que precisamos da dádiva". Ser humano é ser inacabado; ser inacabado é ter que se auto-criar. Não há outra alternativa.

Mas nem só de mantença própria vive o homem. A centelha divina pode servir para propósitos não utilitários. Uma vida de banalidades pode almejar a uma outra, não ordinária. Um ser incompleto pode querer forjar outro, completo. Não há como não concluir: só um mortal inventaria um deus. O contrário simplesmente não se encaixa.

O não encaixe é típico de toda criação humana, seja literária, utilitária ou existencial. Criadores que somos, inventamos nossa condição de criaturas. Criaturas que somos, nossa função é guardar nossos criadores. Existiríamos um sem o outro?