sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Três versões de Judas

Jorge Luis Borges

There seemed a certainty in degradation
(T. E. Lawrence. Seven Pillars of Wisdom. CIII.)

Na Ásia Menor ou em Alexandria, no século II de nossa fé, quando Basílides publicava que o cosmos era uma temerária ou malvada improvisação de anjos deficientes, Nils Runeberg haveria dirigido, com singular paixão intelectual, um dos conventículos gnósticos. Dante lhe haveria destinado, talvez, um sepulcro de fogo; seu nome teria aumentado os catálogos de heresiarcas menores, entre Satornilo e Carpócrates; algum fragmento de suas prédicas, exornado de injúrias, perduraria no apócrifo Liber adversus omnes haereses ou haveria aparecido quando o incêndio de uma biblioteca monástica devorou o último exemplar do Syntagma. Ao invés disso, Deus o deparou com o século XX e com a cidade universitária de Lund. Ai, em 1904, publicou a primeira edição de Kristus och Judas; ai, em 1909, seu livro capital Den hemlige Frälsaren. (Do último, há versão alemã, executada em 1912 por Emil Schering; chama-se Der heimliche Heiland).

Antes de ensaiar um exame dos precipitados trabalhos, urge repetir que Nils Runeberg, membro da União Evangélica Nacional, era profundamente religioso. Em um cenáculo de Paris, ou ainda de Buenos Aires, um literato poderia muito bem redescobrir as teses de Runeberg; essas teses, propostas em um cenáculo, seriam ligeiros exercícios inúteis da negligência ou da blasfêmia. Para Runeberg, foram a chave que decifra um mistério central da teologia; foram matéria de meditação e de análise, de controvérsia histórica e filológica, de soberba, de júbilo e de terror. Justificaram e desbarataram sua vida. Aqueles que passeiam por este artigo devem, mesmo assim, considerar que aqui não há senão registros das conclusões de Runeberg, não sua dialética e suas “provas”. Quem se resigna a buscar provas de algo crido por ele ou cuja pregação não lhe importa?

A primeira edição de Kristus och Judas leva esta categórica epígrafe, cujo sentido, anos depois, dilataria o próprio Nils Runeberg: Não uma coisa, todas as coisas que a tradição atribui a Judas Iscariotes são falsas (De Quincey, 1857). Precedido por algum alemão, De Quincey especulou que Judas entregou Jesus Cristo para forçar-lo a declarar sua divindade e a acender uma vasta rebelião contra o jugo de Roma; Runeberg sugere uma vindicação de índole metafísica. Habilmente, começa por destacar a superabundância do ato de Judas. Observa (como Robertson) que para identificar um professor que diariamente pregava na sinagoga e que obrava milagres diante do concurso de milhares de homens não se requer a traição de um apóstolo. Isso, no entanto, aconteceu. Supor um erro na escritura é intolerável; não menos intolerável é admitir um fato casual no mais precioso acontecimento da história do mundo. Ergo, a traição de Judas não foi casual; foi um fato prefixado que tem seu lugar misterioso na economia da redenção. Runeberg prossegue: O Verbo, quando foi feito carne, passou da ubiquidade ao espaço, da eternidade à história, da bem-aventurança sem limites à mutação e à morte; para corresponder a tal sacrifício, era necessário um homem, em representação de todos os homens, que fizesse um sacrifício condigno. Judas Iscariotes foi esse homem. Judas, único entre os apóstolos, intuiu a divindade secreta e o terrível propósito de Jesus. O Verbo se havia rebaixado a mortal; Judas, discípulo do Verbo, podia rebaixar-se a delator (o pior delito que a infâmia suporta) e a ser hóspede do fogo que não se apaga. A ordem inferior é um espelho da ordem superior; as formas da terra correspondem às formas do céu; as manchas da pele são um mapa da incorruptíveis constelações; Judas espelha de algum modo Jesus. Dai as trinta moedas e o beijo; dai a morte voluntária para merecer ainda mais a Reprovação. Assim dilucidou Nils Runeberg o enigma de Judas.

Os teólogos de todas as confissões o refutaram. Lars Peter Engström o acusou de ignorar, ou de preterir, a união hipostática; Axel Borelius, de renovar a heresia dos docetas, que negaram a humanidade de Jesus; o férreo bispo de Lund, de contradizer o terceiro versículo, do capítulo 22, do Evangelho de São Lucas.

Estes variados anátemas influíram em Runeberg, que parcialmente reescreveu o reprovado livro e modificou sua doutrina. Abandonou a seus adversários o terreno teológico e propôs oblíquas razões de ordem moral. Admitiu que Jesus, “que dispunha de consideráveis recursos que a Onipotência pode oferecer”, não necessitava de um homem para redimir todos os homens. Rebateu, logo, àqueles que afirmam que nada sabemos do inexplicável traidor; sabemos, disse, que foi um dos apóstolos, um dos eleitos para anunciar o reino dos céus, para curar enfermos, para limpar leprosos, para ressuscitar mortos e para exorcizar demônios (Mateus, 10:7-8; Lucas 9:1). Um varão a quem o Redentor distinguiu dessa maneira merece de nós a melhor interpretação de seus atos. Imputar seu crime à ganância (como tem fito alguns, alegando João, 12:6) é se resignar ao motivo mais torpe. Nils Runeberg propõe o motivo contrário: um hiperbólico e até ilimitado ascetismo. O asceta, para maior gloria de Deus, degrada e mortifica a carne; Judas fez o mesmo com o espírito. Renunciou à honra, ao bem, à paz do reino dos céus, como outros, menos heroicamente, ao prazer2. Premeditou com lucidez terrível suas culpas. No adultério geralmente participa a ternura e a abnegação; no homicídio, a coragem; nas profanações e na blasfêmia, certo fulgor satânico. Judas escolheu aquelas culpas não visitadas por nenhuma virtude: o abuso de confiança (João, 12:6) e a delação. Obrou com gigantesca humildade, acreditou-se indigno de ser bom. Paulo escreveu: “Aquele que se glorifica que se glorifique no Senhor” (I, Coríntios 1:31); Judas busco o Inferno, porque a bem-aventurança do Senhor lhe bastava. Pensou que a felicidade, como o bem, é um atributo divino e que não devem usurpar-la os homens3.

Muitos descobriram, post factum, que nos justificáveis começos de Runeberg está seu extravagante fim, e que Den hemlige Frälsaren é uma mera perversão ou exasperação de Kristus och Judas. No final de 1907, Runeberg terminou e revisou o texto manuscrito; quase dois anos transcorreram sem que o houvesse entregue à imprensa. Em outubro de 1909, o livro apareceu com um prólogo (enigmaticamente morno) do hebraísta dinamarquês Erik Erfjord e com esta pérfida epígrafe: “No mundo estava, e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu” (João, 1:10). O argumento geral não é complexo, ainda que a conclusão seja monstruosa. Deus, argumenta Nils Runeberg, rebaixou-se a ser homem para a redenção do gênero humano; cabe conjecturar que foi perfeito o sacrifício obrado por ele, não invalidado ou atenuado por omissões. Limitar o que padeceu à agonia de uma tarde na cruz é blasfematório4. Afirmar que foi homem e que foi incapaz de pecado encerra contradição; os atributos de impecabilitas de humanitas não são compatíveis. Kemnitz admite que o Redentor pode sentir fatiga, frio, turbação, fome e sede; também cabe admitir que pode pecar e se perder. O famoso texto “Brotará como raiz da terra sedenta; não há bom parecer nele, nem beleza; depreciado e o último dos homens; varão de dores, experiente em perdas” (Isaías, 53:2-3), é para muitos uma previsão do crucificado, na hora de sua morte; para alguns (verbigracia, Hans Lassen Martensen), uma refutação da beleza que o consenso vulgar atribui a Cristo; para Runeberg, a pontual profecia não de um momento, mas de todo o atroz porvir, no tempo e na eternidade, do Verbo feito carne. Deus totalmente se fez homem, mas homem até à infâmia, homem até à reprovação e ao abismo. Para nos salvar, pode eleger qualquer dos destinos que tramam a perplexa rede da história, pode ser Alexandre ou Pitágoras ou Rurik ou Jesus; elegeu um ínfimo destino: foi Judas.

Em vão propuseram essa revelação las livrarias de Estocolmo e de Lund. Os incrédulos a consideraram, a priori, um insípido e laborioso jogo teológico; os teólogos a desdenharam. Runeberg intuiu nessa indiferença ecumênica uma quase milagrosa confirmação. Deus ordenava essa indiferença; Deus não queria que se propalasse na terra Seu terrível segredo. Runeberg compreendeu que não era chegada a hora. Sentiu que estavam convergindo para ele as antigas maldições divinas; recordou de Elias e de Moisés que, na montanha, tamparam os olhos para não ver a Deus; de Isaías, que se aterrorizou quando seus olhos viram a Aquele cuja glória preenche a terra; de Saul, cujos olhos se cegaram no caminho de Damasco; do rabino Simeón bem Azaí, que viu o paraíso e morreu; do famoso feiticeiro Juan de Viterbo, que enlouqueceu quando pode ver à Trindade; dos Midrashim, que abominam os ímpios que pronunciam o Shem Hamephorash, o Nome Secreto de Deus. Não era acaso ele culpável desse crime obscuro? Não seria essa a blasfêmia contra o Espírito, a que não será perdoada? (Mateus, 12:31). Valerio Sorano morreu por haver divulgado o oculto nome de Roma; que infinito castigo seria o seu por haver descoberto e divulgado o horrível nome de Deus?

Bêbado de insônia e de uma dialética vertiginosa, Nils Runeberg errou pelas ruas de Malmö, rogando alto que lhe houvera sido concedida a graça de compartilhar com o Redentor o Inferno.

Morreu do rompimento de um aneurisma, em 1º de março de 1912. Os heresiólogos talvez o recordarão; ele agregou ao conceito do Filho, que parecia esgotado, as complexidades do mal e do infortúnio.

1944


Tradução de Vitor Lima

Autoria de Jorge Luis Borges 

Texto retirado de BORGES, J. L. Ficciones. España: Emecé Editores, 2006.

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2Borelius interroga com escárnio: “Por que não renunciou a renunciar? Por que não renunciar a renunciar?”

3Euclides da Cunha, em um livro ignorado por Runeberg, anota que para o heresiarca de Canudos, Antônio Conselheiro, a virtude “era uma quase impiedade”. O leitor argentino recordará passagens análogas na obra de Almafuerte. Runeberg publicou, na folha simbólica Sju insegel, um assíduo poema descritivo, A água secreta; as primeiras estrofes narram os feitos de um tumultuoso dia; as últimas, a descoberta de uma lagoa glacial; o poeta sugere que a persistência dessa água silenciosa corrige nossa inútil violência e de algum modo a permite e a absolve. O poema conclui assim: “A água da selva é feliz; podemos ser malvados e dolorosos.”


4Maurice Abramowics observa: “Jesus, d'apres ce scandinave, a toujours le beau rôle; ses déboires, grâce à la science des typographes, joussent d'une réputation polyglotte; sa residence de trente-trois ans parmi les humains ne fut, em somme, qu'une villégiature”. Erfjord, no terceiro apêndice da Christelige Dogmatik, refuta essa passagem. Anota que a crucificação de Deus não terminou, porque o acontecido uma só vez no tempo se repete sem trégua na eternidade. Judas, agora, continua cobrando as moedas de prata no templo; continua beijando Jesus Cristo; continua arremessando as moedas de prata no templo; continua atando o laço na corda no campo de sangue. (Erfjord, para justificar essa afirmação, invoca o último capítulo do primeiro tomo da Vindicação da eternidade de Jaromir Hladik.)

“Empunhar o gládio e punir os impostores”



Não dá pra tolerar gente que dá no saco. O fanático é o típico cara que dá no saco. Como tolerá-lo?

Consigo identificar uns três graus de fanático. O primeiro – no qual nos incluímos – é o chato e é bem caracterizado naquela canção de Clarice Falcão, Monomania. O segundo é o que só conhece um discurso moralmente certo e tenta implantá-lo, nos limites democráticos, ao máximo de pessoas possível. O terceiro é o mais mortal e, dentro do jogo que ele quer instituir, a democracia não é concebida.

Todos, em alguma medida, somos fanáticos. No sentido mesmo de ser muito fan de alguma coisa. Times de futebol, bandas musicais, autores de livros, correntes de pensamento, doutrinas religiosas. E por ai vai. Condenar que o cara pregue o velho testamento no pé do ouvido é fácil. Quero ver parar de postar memes no Facebook proclamando o ateísmo. O ateu é o novo crente. O crente, sabemos, já não acredita em deus há tempos.

Mas o chato a gente tolera. Há toda uma etiqueta que nos impele a isso. Estamos numa roda de amigos conversando, rindo, ai vem o chato. A roda está fechada, mas ele vem de mansinho e se posiciona atrás de alguém. Ninguém dá bola. Ele espera mais alguns segundos, acotovela um e força a entrada – pronto ele já está na roda, mas todos fazem aquele último esforço para não notá-lo. Outros segundos mais e ele se mete na conversa para complementar o que está sendo dito. Quando ele começa a complementar, você já viu. Eis o chato: ele não vai ouvir você; conversa para ele se resume a esperar você terminar de falar para ele continuar falando.

Somos amigos de chatos. Afinal, as pessoas são nossas amigas, não são? Mas há outro tipo de fanático que é preocupante um degrau a mais. É um tipo mais perigoso porque ele dá a entender que quer conversar, mas tudo o que ele quer é arrebanhar mais alguém para sua doutrina. Ele, por definição, é intolerante, o que o leva a só ter amizades que se encaixem na sua visão de mundo. Não é o objetivo dele aceitar a diferença. Tudo o que ele quer é igualar. Só há um modo como as coisas são. Quem se desvia disso está errado. Para ele, até mais: moralmente errado.

Nesse caso, há não uma etiqueta, mas uma ética que nos diz para tolerar também esse ai. A democracia até os institui. Quem são eles? O tipo partidário político é um exemplo. Se ele se assume de direita, a esquerda é moralmente errada a priori. Se ele se assume de esquerda, o contrário se dá. Mas quem duvidaria que eles são necessários à democracia? E eis que somos obrigados a conviver.

Porém há o fanático – e este não é só perigoso, mas mortífero – que é anti-democrático e que, por isso, põe o próprio chão do que conhecemos como tolerância em risco. Dá pra tolerar um Hitler, um Franco, um Mussolini, um Geisel? Há quem diga que a Segunda Grande Guerra só aconteceu porque Hitler foi tolerado tempo demais. Tendo a concordar – exemplos como esses ai nos fazem ter uma leitura não banal do afamado dito de Voltaire (que é mais ou menos assim):
Posso não concordar com uma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o direito de dizê-las.
O problema é que a frase só prevê o tempo de vida (“até a morte”), e o fanático quer justamente é nos ver mortos. E mortos não temos como defender o direito dele. Sendo democrata, então, fica difícil tolerar alguém não democrata. A intolerância nestes casos é necessária para resguardar a própria tolerância. Talvez tenha sido por isso que Rousseau, certa vez disse:
O fanatismo não é um erro, mas um furor cego e estúpido, que a razão nunca contém. [...] Podeis demonstrar a loucos, do melhor modo possível, que seus chefes os enganam, e não serão menos ardorosos em segui-los. Desde que o fanatismo exista, só conheço um único meio de impedir seu progresso - contra ele empregar suas próprias armas. Não se trata de raciocinar ou de convencer; impõe-se no caso deixar a filosofia, fechar os livros, empunhar o gládio e punir os impostores. (Carta a D'Alembert sobre a construção de um teatro de comédia em Genebra")

domingo, 26 de janeiro de 2014

Razão mortífera

Theodor Adorno



Se você gosta de se conceber como um simples e comum racionalista então talvez você não queira esquentar a cabeça com Theodor Adorno, o filósofo alemão que colocou o holocausto na conta da hiper-valorização da razão. Porém, Adorno não foi um defensor da irracionalidade, misticismo ou superstição. Ele é um intencional semeador de paradoxos, mas, assim como você, ele está do lado do progresso, da ciência e do secularismo. A diferença é que ele também estava profundamente alerta ao modo como o bom senso obstinado pode levar à complacência intelectual e, em seguida à incompreensão, ao preconceito e à catástrofe.
Adorno nasceu em uma rica família de Frankfurt, em 1903, e foi educado para ser um aristocrata cultural com um forte senso de responsabilidade histórica – um dever para acalentar e preservar as altas tradições das artes e literatura europeias que ele herdara. Mas, enquanto ela era apenas um colegial durante a Grande Guerra, ele aprendeu a odiar o nacionalismo alemão e começou a sentir atração pelo marxismo revolucionário. Ele não precisava ganhar a vida e gastou a década de 1920 se preparando para ser um auto-consciente e elegante escritor, um especialista em filosofia e música e um crítico mordaz de tudo aquilo que fosse considerado falso, bombástico, liso, simplificado, nostálgico ou sentimental. Ele desprezava o otimismo vazio dos positivistas científicos, assim como ele detestava o pessimismo, tal qual ele concebeu, de Kierkegaard e Heidegger e ele foi repelido pela cultura popular de todos os tipos. Em 1934 ele se auto-exilou na Inglaterra e depois nos EUA e observou a resistível ascensão da violência nazista com um terrível espanto. Em seu livro Dialética do Esclarecimento, em coautoria com o teórico social marxista Max Horkheimer em 1944, ele tentou demonstrar que as calamidades políticas do séc. XX não foram desvios de algum plano pré-ordenado do progresso, mas sintomas de uma doença congênita da modernidade: uma enfermidade que permite benevolência transformar-se em terror, conhecimento em mito, razão em dogma e civilização em barbárie. Crescimento econômico, ele diz, “fornece as condições para um mundo mais justo”, mas ao mesmo tempo “permite que o aparato técnico e os grupos sociais que o administram tenham uma superioridade desproporcional em relação ao resto da população.”
Isso pode parecer a doutrina clássica do marxismo, mas, para melhor ou pior, representou algo profundamente revisionista. Para Adorno, as origens da injustiça contemporânea não repousam tanto nas inequalidades e misérias causadas pelo modo capitalista de produção, mas na estupidez gerada pela cultura da modernidade. Ele pensava que a sociedade como um todo tinha sido vítima de uma forma de razão tecnológica que apagou o poder da crítica ao obliterar a subjetividade e destruir a cultura autêntica, e ele não tinha expectativa que a classe trabalhadora fosse se levantar um dia e expropriar os expropriadores e liderar a humanidade em direção a um reino dourado de liberdade e igualdade. A razão iluminista criou uma forma de falsa consciência que – emprestada do teórico húngaro Georg Lukács – ele chamou de “reificação”, significando algo que trata relações sociais mutáveis como se elas fossem fatos da razão que não se transformam. Esse processo foi trazido para uma grotesca perfeição pela “indústria cultural”, em que cinema, rádio, teatro e jornais derramam um miasma venenoso de pornografia, lascívia e auto-congratulação mútua, ao mesmo tempo em que o sucesso e o reconhecimento popular se confundem com mérito artístico. A verdadeira inteligência e a arte genuína tinham se transformado, portanto, em passatempo idiossincrático de um pequeno e exclusivo avant-garde.
Alguns leitores se empertigaram diante da aparente implicação de que Adorno era o único qualificado a falar pelo pequeno enclave cultural que tinha escapado da devastação geral. Ele parecia ter descoberto um modo de se tornar um marxista sem que tivesse que renunciar aos hábitos de um excêntrico e refinado esteta, ou, por assim dizer, de um rico elitista e esnobe, e sua companheira de exílio Erika Mann o descrevia como um “vaidoso patológico” e um “grande blefe”. Quando ele retornou a Frankfurt em 1949 ele foi recepcionado com alegria por estudantes traumatizados e por intelectuais da Alemanha Ocidental como um emblema de retitude incorruptível e ele aproveitou uma curiosa forma de fama popular até sua morte que se deu 20 anos depois, aos seus 65 anos.
Sua reputação se encontra principalmente em Minima moralia, um livro de aforismos e observações escrito em 1951. A premissa geral é a de que nós vivemos em uma “falsa sociedade”, onde tudo é “totalmente organizado” e as pessoas são tratadas como coisas, e coisas como pessoas. Não há qualquer valor, exceto o valor de troca, e isso se infiltrou em nossas vidas tão completamente que nós esquecemos como amar alguém pelo seu valor próprio. Nós até perdemos a habilidade de dar presentes inteligentes: o ato de fabricar um presente se degenerou em um estratagema tático, uma troca de má vontade de objetos feitos com “adesão cuidadosa ao orçamento prescrito, avaliação cética do outro e o mínimo de esforço possível.” Enquanto isso, cada encontro com a cultura popular nos fez mais grossos e estúpidos, sendo que estamos sempre muito ocupados para gastar algum tempo com arte, quando muito com “biografias inúteis” que “humanizam” os feitos de grandes artistas, trazendo-os para o nosso próprio nível. A vigorosidade do pensamento original foi substituída pela “profundidade assalariada” de professores universitários, que treinam seus alunos para harmonizar seus julgamentos com os de seus colegas, de modo a ganhar a vida como “porta-vozes da média”. O único remédio possível é combater os “filisteus da cultura”, renunciar ao velho ideal de “coesão teórica” e se esforçar para alcançar a verdade na única forma que ainda tem algum significado: não a trivialidade pré-mastigada do bom senso da racionalidade, mas fragmentos irregulares de visão cujo valor não reside na sua plausibilidade, mas na sua “distância da continuidade do familiar”.
Por provocações apimentadas como essa, Minima moralia merece um lugar em toda estante de livros de um racionalista. Mas há momentos em que Adorno exagera e se torna inteligente pela metade. “Só a mentira absoluta agora tem qualquer liberdade para dizer a verdade”, diz ele, e “a demanda por honestidade intelectual é ela mesma desonesta” – observação que, ao menos para mim, soa nada mais que desculpas chorosas para os seus próprios vícios. Seus livros mais respeitáveis – notavelmente,Dialética negativa e o póstumo Teoria estética – são irritantes de diferentes modos: eles são escritos num estilo de alguém que engoliu uma biblioteca e que perdeu toda a capacidade de percepção clara e de declaração franca, e é difícil imaginar alguém os lendo a não ser por algum imperativo profissional. Por outro lado, ele às vezes mudava a mão para formas de expressão menos rebarbativas – incluindo seminários, muitos deles publicados, e discursos populares de rádio – nos quais a ideia de irracionalidade da razão surge enfim docemente razoável.
Em novo livro, Adorno and the Ends of Philosophy, Andrew Bowie de Royal Holloway, University of London, baseia-se nessas fontes familiares, apresentando seus leitores a um pensador que, uma vez despojado de seus “exageros indefensáveis”, pode ser capaz de trazer paz e prosperidade para o território devastado pela guerra da filosofia contemporânea. Se Bowie está certo, então as facções que tem lutado por décadas, arte e ciência, natureza e cultura, corpo e mente, determinismo e liberdade precisam ler os trabalhos de Adorno e por um fim a suas obsessões destrutivas. Uma vez que eles entendam que a humanidade tem relações com o mundo objetivo que “não são apenas cognitivas” – em particular aquelas obras de arte musicais e outras formas de manifestação artística e de experiência de beleza natural –, eles vão depor as armas, abrir negociações sem condições e se preparar para restabelecer a paz. Bowie combina uma enorme gama de leitura com um poder extraordinário de exposição lúcida, e é difícil ver como a tarefa de transformar Adorno em um pacificador intelectual poderia ser melhor alcançada. Mesmo assim, talvez não estejamos persuadidos: Adorno estava no seu momento mais interessante quando ele estava mais extravagante, e talvez uma das melhores coisas dele foi justamente o exagero.
Traduzido por Vitor Lima
Autoria de Jonathan Rée, filósofo e historiador freelancer. Escreve para várias revistas, dentre elas:  The London Review of BooksProspect,The Independent e The Times Literary Supplement
Texto original de RÉE, Jonathan. Deadly reason. Rationalist Association. Publicado em 13/01/14. Disponível em http://rationalist.org.uk/articles/4531/deadly-reason. Acesso em 26/01/14.

sábado, 25 de janeiro de 2014

Bala de borracha na cadeira racista



Vídeo resposta ao Vitor (por Paulo Francisco)





Em tempos em que Fátima Bernardes chama de negra a calcinha que é preta, até mesmo uma cadeira pode virar racista. Basta que, para isso, uma mulher preta – ou negra; já não sei mais – esteja em formato de uma, e que uma mulher branca esteja sobre ela. O caso aconteceu. A mulher branca é Dasha Zhukova, socialite russa, e a cadeira é uma obra de arte feita por Bjarne Melgaard, artista noruegues que mora em Nova York. Muito ousado?

Na verdade, não. Se entendermos ousadia como o ato de percorrer um campo que ninguém antes percorreu, tal qual a característica dos atenienses segundo Péricles, Melgaard não foi ousado. Antes dele, nos idos dos anos 1960, o artista britânico Allen Jones fez a mesma coisa, só que a mulher era branca. Ou melhor, mulheres, cada uma sob os seguintes formatos: porta-chapéus, mesa e cadeira. Lembra da cena inicial de Laranja Mecânica (Kubrick, 1971) em que estátuas de mulheres são feitas de mobília? Foi possivelmente inspirada no trabalho de Allen.

OK. Já estamos convencidos, portanto deixemos de lado a ousadia de Melgaard. Mas então qual é ponto de sua obra para que ela seja considerada racista? Jonathan Jones, crítico de arte do jornal britânico The Guardian, nos dá a dica:
Na verdade, não se trata de racismo em si. Tem mais a ver com a maneira desajeitada que uma estranha obra de arte foi exposta à cultura popular, de uma maneira tal que facilita a má interpretação.1
Tirar a obra de arte de seu contexto dá a ela um significado totalmente outro, da mesma forma que tirar o objeto banal do cotidiano e expô-lo institucionalmente o transforma por inteiro – quanto a isso, Duchamp e Warhol já nos deram exemplos suficientes. Penso que são razoáveis as reclamações contra a conduta de Zhukova ao se deixar fotografar sentada na cadeira de Melgaard. Essa cadeira não foi feita para se sentar. Ponto. Entretanto, não é a conduta de Zhukova que pretendo abordar, mas sim suas consequências no imaginário popular. Passo, então, a discutir a democratização não só de obras de arte no sentido estrito, mas de uma cultura mais erudita como um todo e, acoplado a isso, o problema do julgamento moral apressado.

Todos agradecemos a Lutero por ter vertido pela primeira vez os manuscritos originais da Bíblia para sua língua nacional, abrindo caminho para a democratização da alta cultura que hoje desfrutamos. Não precisamos mais saber grego, latim ou seja lá que outra língua for para ter acesso à cultura erudita. Aliás, depois de Lutero, muita coisa que era erudita passou a ser popular. Porém, como há bens que vem para o mau, com a benfeitoria de Lutero, veio a malfeitoria tão conhecida nestes nossos dias que chamo de interpretação segundo o que eu acho. A interpretação segundo o que eu acho é aquela que diz, por exemplo, de um lado, que Nietzsche prega a vinda do super-homem e a eliminação dos fracos e, de outro, que os contos da Bíblia são para serem compreendidos antes como descrição de fatos que de ensinamentos morais. O interpretador do achismo próprio pode ser tanto o mais humilde dos nossos parentes, empregados e colegas de trabalho quanto o mais estudado dos nossos professores, chefes e governantes. O interpretador é o tipo que, portando uma interpretação totalmente tosca das coisas, faz julgamentos morais apressados. Ele não sabe do que está falando. Mas para ele isso pouco importa.

O interpretador é o tipo que se julga um soldado em defesa da moralidade, mas que só consegue ser um pelego do moralismo. Ele está crente que sabe exatamente como todos devem se comportar tanto no âmbito públlico quanto no âmbito privado; ele sabe distinguir o que é “natural” do que é “artificial” e “convencional”; ele sabe também que o melhor é o que é “natural” e que o “convenvional” e o “artificial” podem até ser permitidos, mas dentro de limites específicos. O problema é que ele sabe de tudo isso, mas não sabe de onde veio esse saber. O errado ele consegue identificar de longe, de olhos vendados até, mas não pergunte para ele o porquê. Ai já é demais.

Sabe um bom exemplo do que eu estou chamando aqui de o interpretador? É o vídeo “Bala deborracha” feito pelo grupo Porta dos Fundos. Ali, não importa o que se pergunte ao policial interpretado por Fábio Porchat sobre como ele agiria diante de uma situação de manifestação popular, ele responde “Bala de borracha!”. Diante de uma situação que ele considera errada, só há uma resposta: bala de borracha, ou seja, condenar e executar. Não interessa a ele entender nada. O errado ele já sabe o que é; cabe, então, extirpar o errado o mais rápido possível.

A moral, uma vez destituída da compreensão do seu mecanismo, corre o risco de transformar-se em puro moralismo. Ela é um conjunto de regras para o convívio comum2, por exemplo, as regras que proíbem o uso de determinado tipo de vocabulário, porque não adequado em princípio a uma situação. Para ficar em um exemplo simplório: se alguém faz uso de palavreado chulo em sala de aula, por exemplo, está cometendo atitude imoral. Porém, não é qualquer palavreado chulo dito em sala de aula que é imoral. Imagine que na sala de aula, está-se estudando as peças de Shakespeare – que foi, estava esperando que eu mencionasse as canções de Valesca Popozuda para dar exemplo de palavreado chulo? É claro que não, o leitor já há de ter lido Shakespeare – ou os livros de Hemingway ou de Bataille, ou, para ficarmos em nosso país, as peças de teatro de Nelson Rodrigues  ou do grupo Teatro Oficina. Nesse caso deveríamos acusar o professor de imoral por utilizar de palavra chula? Deveríamos censurar a leitura de Hesíodo porque ele fala de coco, xixi e gala em seu O trabalho e os dias?

O moralista que também é um interpretador não está preocupado com o conteúdo, mas com a forma. Se ele consegue identificar a forma do que ele considera errado, a coisa está condenada. É por isso que Melgaard não escapou dele. O que mais poderia significar uma mulher negra em formato de cadeira? O moralista interpretador já tem a resposta: racismo.

Não importa retrucar a ele que quando a arte é ofensiva ela também é, em grande medida, uma sátira a injustiças. Também não importa dizer a ele que a cultura mais erudita está repleta do que ele considera imoral e feio. Ele não tem acesso a ela, apesar de, em casos não tão raros, sua prateleira de livros estar cheia de volumes. Ele não lê livros, ele lê manuais. Em uma pergunta de múltipla escolha, ele só saberia uma e única resposta: bala de borracha!

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1No original: “In reality, it is not about racism as such. It is about the clumsy exposure of a strange work of art to popular culture in a way that begs to be misunderstood" in Jonathan Jones, Why there's nothing racist about the 'racist chair', The Guardian, disponível em: http://www.theguardian.com/artanddesign/jonathanjonesblog/2014/jan/21/racist-chair-bjarne-melgaard-dasha-zhukova#_ Acesso em: 25/01/2014.

2Não faço distinção aqui entre moral e ética. Para uns autores a diferença está em que a primeira é do âmbito da conduta privada, e a segunda é do âmbito da conduta pública. Para um autor que explora melhor essa diferença, ver GHIRALDELLI Jr., Paulo. Filosofia política para educadores: democracia e direito de minorias. São Paulo: Manole, 2013, especialmente o capítulo sobre Moralismo.

sábado, 18 de janeiro de 2014

A utilidade do que inútil se considera



"Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil, então podemos dizer que a filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes."
(Marilena Chauí)


“O filósofo é um inútil”, há muita gente que não exitaria em dizer isso. E usariam de manobras um tanto convincentes para sustentar sua opinião. Diriam as seguintes coisas. “O filósofo não é útil na discussão sobre se é devido ou não construir um teatro em uma cidade”. “Isso é um assunto muito concreto”. “Coisa de políticos em reunião com profissionais da construção civil e, no máximo, também com profissionais da cultura”. “O filósofo não é útil quando se discute métodos de sedução amorosa. “Conversa de gente mais afeita à parte sensual da vida”. “O filósofo não é útil nas discussões sobre qual o melhor experimento científico a ser adotado”. “Quando ele se enreda nessas questões, não passa de um conservador que atrapalha o inevitável curso do progresso técnico”.

Para concordar com os que dizem que o filósofo é inútil, podemos dizer que, de fato, há discursos restritos a uma área, há discursos mais apropriados a gente mais sensual – pessoas mais afeitas aos sentidos que ao intelecto – e há discursos que a prática científica considera conservadores e prejudiciais. Porém, não transigindo totalmente, completaríamos dizendo que o discurso do filósofo pode assumir todas essas formas e, ainda assim, ser útil.

Útil como? O filósofo pode assumir diversas práticas. Duas muito difundidas do que seria a sua por excelência são a postura crítica e a postura contemplativa.

O primeira é aquela que chama atenção para que não fiquemos no que se nos mostra à vista. Se, por exemplo, algo nos parece engraçado, a prática filosófica crítica diz: “Cuidado! Há coisa por trás disso” – e completa – “Na verdade, o que é tão engraçado para você traz sofrimento para outras pessoas, então não deveria ser tão engraçado assim. Você está enganado”. São palavras-chave na prática filosófica crítica as expressões “por trás de” e “na verdade”, porque esse tipo de prática objetiva mostrar sempre o que não está aparecendo, e que, uma vez exposto, mostrar-se-á como o que é verdadeiro. A verdade não é o que aparece, mas o que está escondido.

O segunda é aquela que não se preocupa com o que é meramente necessário, transitório e imediatamente proveitoso e que logo se consome, mas sim com o que é eterno, aquilo que é perene, não modificado pela interferência humana. A prática contemplativa busca aquilo que, no transitório das coisas do mundo, pode levar ao que não muda; ao conceito, por assim dizer. O filósofo contemplativo é conhecido popularmente como aquele que pouco liga para as coisas corriqueiras e que se volta para “questões sérias” e “dignas de reflexão”.

Esses dois quadros representam de forma exagerada o modo como o filósofo é comumente visto entre nós. De um lado, alguém que tem uma habilidade muito especial de nos mostrar a verdade que a maioria não enxerga – confundindo-se facilmente com uma espécie de guru –; de outro lado, alguém a quem não interessa nada do que acontece ao seu redor, alguém que só se importa com coisas “realmente interessantes” – o que lhe pode conferir um ar muito distinto, podendo-lhe garantir certo prestígio intelectual. Há quem os possa considerar úteis, porém a utilidade que pretendo apresentar aqui é diferente.

Por utilidade aqui não entendo nada muito elaborado, tal qual um conceito ou uma definição poderiam ser. Por utilidade aqui considero simplesmente aquela noção que Sócrates toma como o que surge quando se pode tirar algum proveito de algo (cf. Lísis, 210b-c). E de modo mais extenso, aquilo que aparece a partir de uma competência que produz algum tipo de bem à comunidade.

Mas que tipo de competência o filósofo possui que possa produzir algum bem à comunidade? Podemos, para responder, voltar-nos ao epigrama deste texto e ler o que a filósofa brasileira, Marilena Chaui, escreveu. A partir dai, podemos concordar que, desde que o filósofo nos ajude a ser menos ingênuos e menos preconceituosos, ele nos estará sendo útil. E voltando à introdução deste texto – surpreendente como possa parecer – ele pode cumprir esse papel mesmo em questões concretas como a construção de teatros, em questões sensuais como a melhor maneira de conquistar amorosamente alguém e em questões técnicas como experimentos científicos. Exemplos não faltam na história da filosofia para nos mostrar isso. Vamos a eles.

Rousseau, Diderot, D'Alembert e a questão do efeito pedagógico do teatro

A questão de qual a melhor maneira de promover a virtude em um povo é um tema perene na filosofia. No séc. XVIII, ela surgiu de um fato que pareceria banal à percepção comum.

No clima do Iluminismo, é conhecida a produção da famosa Enciclopédia dirigida por Diderot e que tinha a pretensão de impelir os homens ao livre uso da razão para que saíssem da menoridade intelectual, como afirmou Kant. Dentre os verbetes, houve um, escrito por D'Alembert, que chamou a atenção de Rousseau. Era o verbete sobre a cidade de Genebra. O problema identificado por Rousseau foi o de que D'Alembert gastou nada menos que um oitavo do texto falando não sobre o que havia na cidade, mas sobre o que nela faltava: um teatro de comédia.

Mereceu atenção especial o que para nós não passaria de, no máximo, um verbete mal escrito. A construção de um teatro, algo que hoje só preocuparia políticos, artistas e alguns poucos cidadãos mais cultos, fez Rousseau iniciar um debate filosófico sobre o efeito pedagógico do teatro, escrevendo uma carta a D'Alembert que ficou registrada na história da filosofia. Não cabe agora discorrer a respeito da posição tomada por cada filósofo. Fica o exemplo de como uma questão filosófica pode surgir de algo banal.

Sócrates e a arte erótica como arte filosófica por excelência1

Sócrates é comumente tomado como sendo o autor do dito “só sei que nada sei”, frase popularmente entendida como significando uma ignorância constante a respeito das coisas – sendo esta a atitude mais condizente com o que seria o verdadeiro filósofo. Nada mais errôneo. Sócrates nunca disse isso; pelo contrário, ele se dizia muito sabedor num tipo de arte que considerava filosófica por excelência: a arte do amor (cf. O Banquete, 177d-e).

No Crátilo (cf. 398d), Sócrates estabelece a relação filológica entre amor e conversação. Através de uma investigação etimológica, ele mostra que amor (Eros) tem a ver com a atividade de formular perguntas (erôtan). E, tendo em vista que sua atividade filosófica consistia basicamente no jogo de formular e de responder perguntas, é possível entender a atividade erótica característica de Sócrates, ou seja, a capacidade de entreter, através da conversação sedutora, o interlocutor e fazê-lo entrar no jogo filosófico que, por isso mesmo, não deixa de ser erótico.

O erotismo dos gregos, e de Sócrates em particular, não privilegiava a dupla conotação atual de sexo casual e de amor romântico. Para Sócrates, Eros deveria ser posto a serviço da melhoria do amado. O namoro, então, seria a atividade de “gerar e dar à luz no belo” (cf. O Banquete, 206e), que primeiramente se confundiria com o amado, mas que, no decorrer da atividade erótica conduzida corretamente, seria voltado para o verdadeiro belo, a Forma de Belo, completando-se a atividade filosófica. Saber a melhor forma de namorar, então, é essencial.

Dado esse contexto, pode-se entender melhor o porquê que se interessar na sedução amorosa é uma prática filosófica e não somente de gente dada à parte sensual da vida. A filosofia depende do amor (não esqueçamos que philia é também amor) e é por isso que, no Lísis, Sócrates abre o diálogo perguntando a Hipotales como era seu método de sedução. No decorrer da conversa, Sócrates mostra que seu modo de conquista é errado e lhe mostra o correto. Novamente, uma situação que para nós é banal tornada altamente filosófica.

O discurso ético como propiciador do progresso da ciência

A filosofia, e também a religião, podem se posicionar de forma bastante conservadora quando se trata de ciência. Porém, recentemente, no caso da discussão sobre as células-tronco embrionárias, por exemplo, esse conservadorismo paradoxalmente contribuiu para o progresso da ciência.

O que aconteceu de forma resumida foi que, ao se posicionar contra a pesquisa em células-tronco embrionárias, mostrando as implicações éticas de tal prática, a filosofia, e também a religião, forçaram a ciência a buscar outros métodos para conduzir a pesquisa. O que de fato aconteceu foi isto: a filosofia fui útil mesmo sendo conservadora; e em um assunto em que diriam “filósofo, neste assunto, só serve para atrapalhar”.

A filosofia é útil

Podemos tirar um denominador comum dos três exemplos acima que pode nos ajudar a entender o modo de proceder típico do filósofo. Os três começaram com situações corriqueiras e não com questões “sérias”, “dignas de reflexão”, “inteligentes” e tudo o mais que gente cult gosta de considerar. Essas situações corriqueiras, uma vez na mão do filósofo, ganharam uma interpretação inesperada, o que fez com que elas se tornassem dignas de serem vistas de outra perspectiva. O filósofo não mostrou nada “por trás” ou “escondido”; o que ele fez foi evidenciar algo que todo mundo já estava vendo, mas que ninguém dava a devida importância. O filósofo saiu do caso simplesmente concreto, do caso meramente sensual, do caso primariamente técnico e, partindo deles, fez ver o que neles é geral e relacionado a todas as pessoas.

Nesse sentido que estou tentando expor, o proveito que dele pode tirar a comunidade, ou seja, a utilidade do filósofo é ajudar as pessoas a verem em casos particulares a generalidade que relaciona a todos. E mais, é ajudar as pessoas a lidarem com perspectivas que não são as já consolidadas, as já dadas de forma gratuita, as que todo mundo já teria de antemão. Tudo para que com isso, modestamente, as coisas sejam vistas de um modo menos ingênuo e menos preconceituoso. Mas isso depende, claro, de que o filósofo, como disse Péricles em sua Oração Fúnebre, seja amante da filosofia e, conjuntamente, esforce-se em não ser indolente. Difícil. Mas não impossível.
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1 Para um maior desenvolvimento deste tópico, ver GHIRALDELLI Jr., Paulo. Como a filosofia pode explicar o amor. (Coleção Filosofia Prática). São Paulo: Universo dos Livros, 2011, especialmente o artigo Quase todos os amores de Sócrates.

sábado, 4 de janeiro de 2014

O direito de não ser filósofo


La philosophie triomphe aisément des maux passés et des maux à venir. Mais les maux présents triomphent d'elle.
(François de La Rochefoucauld)

Ficaram conhecidos os casos judiciais de Danilo Gentili e Rafinha Bastos, humoristas brasileiros, em decorrência de piadas que fizeram. Um fez piada com um grupo religioso, os judeus, outro fez piada com uma pessoa famosa, Vanessa Camargo. Foram piadas – isso é inegável, penso eu. Foram engraçadas – isso também é inegável, pensam muitos que não são eu. Outra coisa difícil de negar-lhes é a liberdade de expressão. Não se deve censurar em hipótese alguma quem quer que seja. Mas o que é censura?

Há formas de retórica e terminologia antiquadas que obstruem o bom funcionamento de nossa tão jovem democracia – que, aliás, juridicamente tem a minha idade: cerca de 24 anos. A dicotomia censura/liberdade de expressão, herdada da Ditadura Militar, é uma delas. Ainda hoje é comum dizer que, quando há manifestação contrária a uma opinião publicamente veiculada, tem-se censura à moda do que acontecia quando, por exemplo, suprimiam-se cenas de boquete numa pornochanchada nos idos dos 70 e 80 do século passado.

Não são a mesma coisa.

Uma tem como fundamento um regime de exceção; outra tem como chão um regime jurídico legitimamente constituído – a primeira, uma Ditadura; a segunda, uma Democracia. Para entender a diferença, de modo bem simples, imagine a situação em que alguém compõe uma canção. Essa atividade, por excelência, destina-se a ser pública. Ela depende, portanto, do direito a liberdade de expressão. A princípio, ninguém concordaria em suprimir-lhe esse direito. Ponto.

Na Ditadura, a moralidade e a segurança da nação são os discursos de base. Caso eles corram o risco de ser abalados, o Governo suspenderia sem exitar a circulação dessa canção. Foi o que aconteceu com Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e tantos outros.

Na Democracia, o discurso de base é o do direito individual. Caso o indivíduo se sinta ofendido, é-lhe de direito pedir ao Estado que cerceie a liberdade de outrem que ele considere estar lhe infligindo dano. Foi o que aconteceu com o vlogger Cauê Moura quando fez uma canção xingando o cantor Latino há alguns anos.

Nos dois casos, há cerceamento da liberdade de expressão, mas a censura só se dá no primeiro. Se ainda estiver muito abstrato o que estou dizendo, substitua “indivíduo” por você mesmo e “outrem” por aquela pessoa que já o ofendeu e releia o parágrafo anterior, por favor – as palavras estão em itálico para auxiliá-lo. Agora eu penso que você está começando a entender.

Dizer que o cerceamento da liberdade de expressão é sempre censura equivale a por no mesmo saco situações que são completamente distintas. O que certamente, na Ditadura, é censura, na Democracia, nada mais é que um “Sou contra sua opinião (seja por que motivo for, pessoal ou público) e vou processá-lo por isso”.

Não me entenda mal o leitor: repudio o ato de processar alguém em decorrência de uma opinião contrária a minha. Primeiro por que é ineficaz e só atrapalha o funcionamento do Judiciário que tem inúmeras outras pendências mais relevantes a tratar. Segundo porque não concordo com uma situação que é tão absurdamente não filosófica.

Entendo por filosofia aqui aquele procedimento inaugurado por Sócrates, na Atenas do séc. V/IV a.C. – a conversação que busca o esclarecimento de uma questão sem o auxílio de alguém de fora da questão, ou seja, sem o auxílio de um árbitro. Sócrates discutiu sobre justiça, por exemplo, com Trasímaco na República, Livro I. Em outra situação, no Banquete, discutiu sobre amor numa mesa em que estava Aristófanes. Trasímaco não foi exatamente o que podemos chamar de gentil. Aristófanes escreveu uma peça de teatro, As Nuvens, ridicularizando o filósofo. Porém não consta que Sócrates tenha processado qualquer que seja por manter opinião contrária à sua ou até por tê-lo ofendido publicamente. O que aconteceu foi exatamente o contrário: o alvo de processo judicial, que ao final de contas lhe custou a vida, foi ele próprio.

É aqui que a filosofia se distingue de dois outros procedimentos discursivos muito conhecidos até hoje e que, erroneamente, julgamos ser a típica prática do filósofo: a erística e o plebiscito. Queremos que o filósofo debata e que apresente argumentos irrefutáveis que façam com que os argumentos de um outro qualquer sejam derrubados, para persuadir a ele ou a um público de que a posição anteriormente sustentada era, na verdade, falsa. Isso é a erística; parece muito com o que o filósofo faz, porém o que a distingue é exatamente o objetivo de persuadir a todo custo, o que faz com que o discurso queira não mais o esclarecimento mútuo, mas sim o combate em que ao final saia um vencedor e um perdedor. Também queremos que o filósofo seja ou contra ou a favor das coisas. Queremos que ele tome posição, que ele diga o que é certo e o que é errado. Queremos diante de uma pergunta do tipo “Você é a favor ou contra?” que ele nos diga sua posição e que, a partir de então, nós a sigamos porque quem a defende é uma autoridade em inteligência. Esse é o plebiscito. E a filosofia não é isso.

O discurso judicial, o famoso “processo”, nesse sentido, aproxima-se bem mais da erística e do plebiscito que da filosofia. Ele se instaura visando não o esclarecimento; ao contrário, com o objetivo de ganhar uma causa a partir de posições contra e a favor, chama, para julgá-las, um árbitro, neste caso, o juiz. Na perspectiva que eu apresento, uma prática que se constitui nestes moldes não pode ser filosófica. E a minha opinião pessoal – que concorda com a de Sócrates – é a de que uma prática não filosófica não é a melhor para lidar com casos em que há discordância de opiniões. Isso quer dizer que quem processa outrem, neste caso, está errado? Não!

Posso negar legitimidade filosófica a essa pessoa, mas não posso negar-lhe legitimidade democrática. Sei muito bem que quem faz uso do Judiciário não quer dialogar coisa alguma, mas também sei que existe o direito ao não diálogo – o que eu chamo aqui de o direito de não ser filósofo. Está na Constituição Federal (art. 5°, XXXV):
A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito
O que a frase acima quer dizer é que qualquer um, uma vez que se sinta lesado ou que ache que tenha ameaçado direito seu, pode pedir ao Estado que aprecie esse seu “sentimento” ou esse seu “achismo”. Trocando em miúdos, trata-se do direito de processar. É necessária uma distinção aqui, muito importante por sinal, dado que causa enganos prejudiciais à prática democrática.

Refiro-me à diferença que há entre processar alguém e condenar alguém. Quando alguém figura como réu em um processo, isso não significa de modo imediato que se trata de alguém culpado – não basta apontar o dedo para identificar o ladrão. Só quem condena é a sentença transitada em julgado, o que quer dizer que ela já não é mais passível de recursos, contestações (dai ser errôneo dizer que político tal é corrupto só porque figura como réu em processo judicial – mais isso já é outro assunto).

Em resumo, há uma importante distinção a ser feita entre dois tipos de cerceamento da liberdade de expressão. Um, sem dúvida, constitui-se em simples e abominável censura – tendo como exemplo maior o que conhecemos como um dos períodos mais negros para as liberdades intelectuais da história do Brasil. Porém, é legítimo, sim, em casos específicos, cercear essa mesma liberdade, se do ponto de onde estamos discutindo temos um Estado Democrático de Direito e se há algum direito individual sendo ofendido. Apesar de legítimo, não é o melhor caminho, sendo o procedimento da conversa e do esclarecimento mútuo o mais adequado – o procedimento filosófico, enfim. Ainda que haja este modo, aquele outro é um direito garantido constitucionalmente e, por mais contra minha inclinação pessoal que possa ser, não posso negar o direito de não ser filósofo a qualquer um que o queira exercer.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Gabi



Eu poderia iniciar este conto tentando fazer algum suspense com o nome que apresento no título, tal qual fez Machado de Assis no seu Miss Dollar. Mas, ao citar Machado, o leitor mais atento já deve tê-lo lido e já sabe que este título daqui, tal qual o dele, nomeia uma adorável cadela. Não da aristocrática raça galga, mas da aburguesada cocker. E para proletarizar um pouco, uma mestiçada, ocreada e desgrenhada cocker spaniel – a Gabi.