sábado, 4 de janeiro de 2014

O direito de não ser filósofo


La philosophie triomphe aisément des maux passés et des maux à venir. Mais les maux présents triomphent d'elle.
(François de La Rochefoucauld)

Ficaram conhecidos os casos judiciais de Danilo Gentili e Rafinha Bastos, humoristas brasileiros, em decorrência de piadas que fizeram. Um fez piada com um grupo religioso, os judeus, outro fez piada com uma pessoa famosa, Vanessa Camargo. Foram piadas – isso é inegável, penso eu. Foram engraçadas – isso também é inegável, pensam muitos que não são eu. Outra coisa difícil de negar-lhes é a liberdade de expressão. Não se deve censurar em hipótese alguma quem quer que seja. Mas o que é censura?

Há formas de retórica e terminologia antiquadas que obstruem o bom funcionamento de nossa tão jovem democracia – que, aliás, juridicamente tem a minha idade: cerca de 24 anos. A dicotomia censura/liberdade de expressão, herdada da Ditadura Militar, é uma delas. Ainda hoje é comum dizer que, quando há manifestação contrária a uma opinião publicamente veiculada, tem-se censura à moda do que acontecia quando, por exemplo, suprimiam-se cenas de boquete numa pornochanchada nos idos dos 70 e 80 do século passado.

Não são a mesma coisa.

Uma tem como fundamento um regime de exceção; outra tem como chão um regime jurídico legitimamente constituído – a primeira, uma Ditadura; a segunda, uma Democracia. Para entender a diferença, de modo bem simples, imagine a situação em que alguém compõe uma canção. Essa atividade, por excelência, destina-se a ser pública. Ela depende, portanto, do direito a liberdade de expressão. A princípio, ninguém concordaria em suprimir-lhe esse direito. Ponto.

Na Ditadura, a moralidade e a segurança da nação são os discursos de base. Caso eles corram o risco de ser abalados, o Governo suspenderia sem exitar a circulação dessa canção. Foi o que aconteceu com Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e tantos outros.

Na Democracia, o discurso de base é o do direito individual. Caso o indivíduo se sinta ofendido, é-lhe de direito pedir ao Estado que cerceie a liberdade de outrem que ele considere estar lhe infligindo dano. Foi o que aconteceu com o vlogger Cauê Moura quando fez uma canção xingando o cantor Latino há alguns anos.

Nos dois casos, há cerceamento da liberdade de expressão, mas a censura só se dá no primeiro. Se ainda estiver muito abstrato o que estou dizendo, substitua “indivíduo” por você mesmo e “outrem” por aquela pessoa que já o ofendeu e releia o parágrafo anterior, por favor – as palavras estão em itálico para auxiliá-lo. Agora eu penso que você está começando a entender.

Dizer que o cerceamento da liberdade de expressão é sempre censura equivale a por no mesmo saco situações que são completamente distintas. O que certamente, na Ditadura, é censura, na Democracia, nada mais é que um “Sou contra sua opinião (seja por que motivo for, pessoal ou público) e vou processá-lo por isso”.

Não me entenda mal o leitor: repudio o ato de processar alguém em decorrência de uma opinião contrária a minha. Primeiro por que é ineficaz e só atrapalha o funcionamento do Judiciário que tem inúmeras outras pendências mais relevantes a tratar. Segundo porque não concordo com uma situação que é tão absurdamente não filosófica.

Entendo por filosofia aqui aquele procedimento inaugurado por Sócrates, na Atenas do séc. V/IV a.C. – a conversação que busca o esclarecimento de uma questão sem o auxílio de alguém de fora da questão, ou seja, sem o auxílio de um árbitro. Sócrates discutiu sobre justiça, por exemplo, com Trasímaco na República, Livro I. Em outra situação, no Banquete, discutiu sobre amor numa mesa em que estava Aristófanes. Trasímaco não foi exatamente o que podemos chamar de gentil. Aristófanes escreveu uma peça de teatro, As Nuvens, ridicularizando o filósofo. Porém não consta que Sócrates tenha processado qualquer que seja por manter opinião contrária à sua ou até por tê-lo ofendido publicamente. O que aconteceu foi exatamente o contrário: o alvo de processo judicial, que ao final de contas lhe custou a vida, foi ele próprio.

É aqui que a filosofia se distingue de dois outros procedimentos discursivos muito conhecidos até hoje e que, erroneamente, julgamos ser a típica prática do filósofo: a erística e o plebiscito. Queremos que o filósofo debata e que apresente argumentos irrefutáveis que façam com que os argumentos de um outro qualquer sejam derrubados, para persuadir a ele ou a um público de que a posição anteriormente sustentada era, na verdade, falsa. Isso é a erística; parece muito com o que o filósofo faz, porém o que a distingue é exatamente o objetivo de persuadir a todo custo, o que faz com que o discurso queira não mais o esclarecimento mútuo, mas sim o combate em que ao final saia um vencedor e um perdedor. Também queremos que o filósofo seja ou contra ou a favor das coisas. Queremos que ele tome posição, que ele diga o que é certo e o que é errado. Queremos diante de uma pergunta do tipo “Você é a favor ou contra?” que ele nos diga sua posição e que, a partir de então, nós a sigamos porque quem a defende é uma autoridade em inteligência. Esse é o plebiscito. E a filosofia não é isso.

O discurso judicial, o famoso “processo”, nesse sentido, aproxima-se bem mais da erística e do plebiscito que da filosofia. Ele se instaura visando não o esclarecimento; ao contrário, com o objetivo de ganhar uma causa a partir de posições contra e a favor, chama, para julgá-las, um árbitro, neste caso, o juiz. Na perspectiva que eu apresento, uma prática que se constitui nestes moldes não pode ser filosófica. E a minha opinião pessoal – que concorda com a de Sócrates – é a de que uma prática não filosófica não é a melhor para lidar com casos em que há discordância de opiniões. Isso quer dizer que quem processa outrem, neste caso, está errado? Não!

Posso negar legitimidade filosófica a essa pessoa, mas não posso negar-lhe legitimidade democrática. Sei muito bem que quem faz uso do Judiciário não quer dialogar coisa alguma, mas também sei que existe o direito ao não diálogo – o que eu chamo aqui de o direito de não ser filósofo. Está na Constituição Federal (art. 5°, XXXV):
A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito
O que a frase acima quer dizer é que qualquer um, uma vez que se sinta lesado ou que ache que tenha ameaçado direito seu, pode pedir ao Estado que aprecie esse seu “sentimento” ou esse seu “achismo”. Trocando em miúdos, trata-se do direito de processar. É necessária uma distinção aqui, muito importante por sinal, dado que causa enganos prejudiciais à prática democrática.

Refiro-me à diferença que há entre processar alguém e condenar alguém. Quando alguém figura como réu em um processo, isso não significa de modo imediato que se trata de alguém culpado – não basta apontar o dedo para identificar o ladrão. Só quem condena é a sentença transitada em julgado, o que quer dizer que ela já não é mais passível de recursos, contestações (dai ser errôneo dizer que político tal é corrupto só porque figura como réu em processo judicial – mais isso já é outro assunto).

Em resumo, há uma importante distinção a ser feita entre dois tipos de cerceamento da liberdade de expressão. Um, sem dúvida, constitui-se em simples e abominável censura – tendo como exemplo maior o que conhecemos como um dos períodos mais negros para as liberdades intelectuais da história do Brasil. Porém, é legítimo, sim, em casos específicos, cercear essa mesma liberdade, se do ponto de onde estamos discutindo temos um Estado Democrático de Direito e se há algum direito individual sendo ofendido. Apesar de legítimo, não é o melhor caminho, sendo o procedimento da conversa e do esclarecimento mútuo o mais adequado – o procedimento filosófico, enfim. Ainda que haja este modo, aquele outro é um direito garantido constitucionalmente e, por mais contra minha inclinação pessoal que possa ser, não posso negar o direito de não ser filósofo a qualquer um que o queira exercer.

9 comentários:

Thiago Ricardo de Mattos disse...

Filosofia deve ser coisa de confraria? Em nosso dia a dia, é difícil termos uma conversa em que nossas colocações não sejam vistas como tentativas de termos a autoridade sobre um assunto. Gostaríamos que mais gente embarcasse em nossa busca por aclarar os pressupostos do que é dito, mas isso é raro. Bem, filosofia parece ser coisa de confraria. Mas, veja só, Sócrates intervia junto a não filósofos. Estes não ficavam isentos de irritação, nem, em alguns casos, da suspeita quanto ao que sabiam sobre um assunto. Como se dá a conversa ou a intervenção de um filósofo junto a não filósofos?
Vítor, adorei o texto e o vídeo.

Anônimo disse...

Vitor, me encantei com o seu texto e com o seu video também, achei muito bom o seu ponto de vista e é claro a sua posição tomada.

Vitor Lima disse...

È, Thiago, filosofia é e não é coisa de confraria. Aquela velha máxima: "é para todos, mas não para qualquer um". Penso que se deve conversar com todos, como Sócrates fazia, mas sempre tendo em mente que não é qualquer um que vai abraçar a ideia. Além do mais, filosofia depende de "filia", e esta só é obtida no grupo, na confraria. Encontrar afinidade entre gênios fora desse contexto, pode até acontecer, mas é raro. Mas temos que tentar sempre. É o que eu venho tentando fazer com estes texto e vídeo.

Vitor Lima disse...

Obrigado,, Anônimo. Mas, que tal se identificar?

Cínthia de Oliveira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Cínthia Oliveira disse...

A anônima aqui..kk
Bom, agora um comentário no capricho.
Vitor, excelente o seu video, o seu texto então também está ótimo.
Quanto ao seu ponto de vista, eu achei muito importante, pois não ser a favor de uma coisa não faz de você a favor de outra... abordei esse tema na conversa, porém não no video.
Você tocou nos pontos principais, quanto ao acontecido não importa em si as questões judiciais que tomaram conta do caso, mas o mais importante é debater esse plano de fundo e também entender a causa de ação e reação (democrática e filosófica) para tomar uma posição sobre o fato.
A questão que mais me incomoda é o fato de uma declaração seja do Paulo ou não, tomar uma proporção tão gigantesca sendo que se prova o inverso em seus livros e como essa dualidade atrapalha, pois não ser a favor da declaração dele não significa que o indivíduo seja totalmente contra e a favor da Raquel a problematização está no fato de o movimento de críticas sem base de conhecimento, por exemplo não saber a causa e a razão, uma declaração irônica tornar-se tão comentada enquanto que os posicionamentos dela não...
Bom, não sei se estou divagando, mas só queria constar que eu adorei o seu video.
E quanto ao caso existe esses fatores aí que ainda podemos debater muito e o fator da liberdade de expressão, sendo ele ou não que tenha comentado, o fato é que não só ele como muitas outras pessoas fazem o mesmo tipo de comentário não em si direcionados à ela, mas a diferença é que eles não podem provar o contrário, diferente do Paulo que prova isso nos seus livros... e enfim, acho que divaguei...
Forte abraço Vito

Daniel Mota disse...

Muito bom o texto, Vitor! Principalmente ao tratar a distinção entre o discurso penal e o discurso filosófico. Abraços!

Vitor Lima disse...

Obrigado, Daniel. Mas veja que não digo "discurso penal" e sim discurso jurídico, que é mais amplo. O discurso cível e o trabalhista, por exemplo, também estariam incluídos no discurso jurídico.

Thiago Ricardo de Mattos disse...

Se os que demonizam o Paulo virem contra que figuras públicas ele se colocou, no ano passado, ficariam confusos. É possível que muitos se digam contrários às posições morais do Pondé e da Sherazade, à loucura do Olavo e ao cargo do Feliciano, defendendo o que pareça ser o simples oposto deles. Por isso o Paulo é difícil, pois critica quaisquer falas, quer sejam consideradas conservadoras ou não, e tem fair play para mandar quem baixem a calcinha quem não pensa, nem toma a posição de quatro, preferindo ficar no contra ou a favor.