sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

“Empunhar o gládio e punir os impostores”



Não dá pra tolerar gente que dá no saco. O fanático é o típico cara que dá no saco. Como tolerá-lo?

Consigo identificar uns três graus de fanático. O primeiro – no qual nos incluímos – é o chato e é bem caracterizado naquela canção de Clarice Falcão, Monomania. O segundo é o que só conhece um discurso moralmente certo e tenta implantá-lo, nos limites democráticos, ao máximo de pessoas possível. O terceiro é o mais mortal e, dentro do jogo que ele quer instituir, a democracia não é concebida.

Todos, em alguma medida, somos fanáticos. No sentido mesmo de ser muito fan de alguma coisa. Times de futebol, bandas musicais, autores de livros, correntes de pensamento, doutrinas religiosas. E por ai vai. Condenar que o cara pregue o velho testamento no pé do ouvido é fácil. Quero ver parar de postar memes no Facebook proclamando o ateísmo. O ateu é o novo crente. O crente, sabemos, já não acredita em deus há tempos.

Mas o chato a gente tolera. Há toda uma etiqueta que nos impele a isso. Estamos numa roda de amigos conversando, rindo, ai vem o chato. A roda está fechada, mas ele vem de mansinho e se posiciona atrás de alguém. Ninguém dá bola. Ele espera mais alguns segundos, acotovela um e força a entrada – pronto ele já está na roda, mas todos fazem aquele último esforço para não notá-lo. Outros segundos mais e ele se mete na conversa para complementar o que está sendo dito. Quando ele começa a complementar, você já viu. Eis o chato: ele não vai ouvir você; conversa para ele se resume a esperar você terminar de falar para ele continuar falando.

Somos amigos de chatos. Afinal, as pessoas são nossas amigas, não são? Mas há outro tipo de fanático que é preocupante um degrau a mais. É um tipo mais perigoso porque ele dá a entender que quer conversar, mas tudo o que ele quer é arrebanhar mais alguém para sua doutrina. Ele, por definição, é intolerante, o que o leva a só ter amizades que se encaixem na sua visão de mundo. Não é o objetivo dele aceitar a diferença. Tudo o que ele quer é igualar. Só há um modo como as coisas são. Quem se desvia disso está errado. Para ele, até mais: moralmente errado.

Nesse caso, há não uma etiqueta, mas uma ética que nos diz para tolerar também esse ai. A democracia até os institui. Quem são eles? O tipo partidário político é um exemplo. Se ele se assume de direita, a esquerda é moralmente errada a priori. Se ele se assume de esquerda, o contrário se dá. Mas quem duvidaria que eles são necessários à democracia? E eis que somos obrigados a conviver.

Porém há o fanático – e este não é só perigoso, mas mortífero – que é anti-democrático e que, por isso, põe o próprio chão do que conhecemos como tolerância em risco. Dá pra tolerar um Hitler, um Franco, um Mussolini, um Geisel? Há quem diga que a Segunda Grande Guerra só aconteceu porque Hitler foi tolerado tempo demais. Tendo a concordar – exemplos como esses ai nos fazem ter uma leitura não banal do afamado dito de Voltaire (que é mais ou menos assim):
Posso não concordar com uma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o direito de dizê-las.
O problema é que a frase só prevê o tempo de vida (“até a morte”), e o fanático quer justamente é nos ver mortos. E mortos não temos como defender o direito dele. Sendo democrata, então, fica difícil tolerar alguém não democrata. A intolerância nestes casos é necessária para resguardar a própria tolerância. Talvez tenha sido por isso que Rousseau, certa vez disse:
O fanatismo não é um erro, mas um furor cego e estúpido, que a razão nunca contém. [...] Podeis demonstrar a loucos, do melhor modo possível, que seus chefes os enganam, e não serão menos ardorosos em segui-los. Desde que o fanatismo exista, só conheço um único meio de impedir seu progresso - contra ele empregar suas próprias armas. Não se trata de raciocinar ou de convencer; impõe-se no caso deixar a filosofia, fechar os livros, empunhar o gládio e punir os impostores. (Carta a D'Alembert sobre a construção de um teatro de comédia em Genebra")

4 comentários:

Unknown disse...

Muito bom seu texto, Vitor.

Eu sempre mantenho em mente que o último tipo de fanático que você citou no texto, deve sentir vergonha de si mesmo. Quando damos voz ao fanático, ele pode fazer ditadura no lugar do Estado (isso acontece em algumas acusações de pedofilia, por exemplo).

Por isso, levar o fanático a acreditar que ninguém dá importância para o que ele diz, parece eficiente -- ele vai continuar acreditando que estão todos errados, mas vai sentir receio de abrir a boca pra dizer isso. Devem existir muitas formas de fazer o fanático se envergonhar. Particularmente, não achei a forma correta ainda, se é que existe alguma.

Abraços.

Vitor Lima disse...

Creio que fazer ele cair no ridículo é uma boa ferramenta. Uma má ferramente é certamente levar ele a sério e "argumentar" com ele, Giovane. Valeu pelo comentário!

Augusto Lima disse...

Quando seu interlocutor é fanático, não há o que fazer do ponto de vista do diálogo. E então cabe muito bem a espirituosa afirmativa de Rousseau na carta a D'Alembert. Ninguém ajuda quem não quer ser ajudado, quem acha que já tem tudo pronto, fechado. Dá pra fazer, sim, empunhar o gládio.

Adriano Alves Apolinário da Silva disse...

Muito legal. Gostei da colocação do Rousseau. Mas li também me sentindo o cara que acotovela pra entrar na roda. Valeu como exercício para meus - pouco dramáticos - fanatismos. Obrigado.