sábado, 18 de janeiro de 2014

A utilidade do que inútil se considera



"Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil, então podemos dizer que a filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes."
(Marilena Chauí)


“O filósofo é um inútil”, há muita gente que não exitaria em dizer isso. E usariam de manobras um tanto convincentes para sustentar sua opinião. Diriam as seguintes coisas. “O filósofo não é útil na discussão sobre se é devido ou não construir um teatro em uma cidade”. “Isso é um assunto muito concreto”. “Coisa de políticos em reunião com profissionais da construção civil e, no máximo, também com profissionais da cultura”. “O filósofo não é útil quando se discute métodos de sedução amorosa. “Conversa de gente mais afeita à parte sensual da vida”. “O filósofo não é útil nas discussões sobre qual o melhor experimento científico a ser adotado”. “Quando ele se enreda nessas questões, não passa de um conservador que atrapalha o inevitável curso do progresso técnico”.

Para concordar com os que dizem que o filósofo é inútil, podemos dizer que, de fato, há discursos restritos a uma área, há discursos mais apropriados a gente mais sensual – pessoas mais afeitas aos sentidos que ao intelecto – e há discursos que a prática científica considera conservadores e prejudiciais. Porém, não transigindo totalmente, completaríamos dizendo que o discurso do filósofo pode assumir todas essas formas e, ainda assim, ser útil.

Útil como? O filósofo pode assumir diversas práticas. Duas muito difundidas do que seria a sua por excelência são a postura crítica e a postura contemplativa.

O primeira é aquela que chama atenção para que não fiquemos no que se nos mostra à vista. Se, por exemplo, algo nos parece engraçado, a prática filosófica crítica diz: “Cuidado! Há coisa por trás disso” – e completa – “Na verdade, o que é tão engraçado para você traz sofrimento para outras pessoas, então não deveria ser tão engraçado assim. Você está enganado”. São palavras-chave na prática filosófica crítica as expressões “por trás de” e “na verdade”, porque esse tipo de prática objetiva mostrar sempre o que não está aparecendo, e que, uma vez exposto, mostrar-se-á como o que é verdadeiro. A verdade não é o que aparece, mas o que está escondido.

O segunda é aquela que não se preocupa com o que é meramente necessário, transitório e imediatamente proveitoso e que logo se consome, mas sim com o que é eterno, aquilo que é perene, não modificado pela interferência humana. A prática contemplativa busca aquilo que, no transitório das coisas do mundo, pode levar ao que não muda; ao conceito, por assim dizer. O filósofo contemplativo é conhecido popularmente como aquele que pouco liga para as coisas corriqueiras e que se volta para “questões sérias” e “dignas de reflexão”.

Esses dois quadros representam de forma exagerada o modo como o filósofo é comumente visto entre nós. De um lado, alguém que tem uma habilidade muito especial de nos mostrar a verdade que a maioria não enxerga – confundindo-se facilmente com uma espécie de guru –; de outro lado, alguém a quem não interessa nada do que acontece ao seu redor, alguém que só se importa com coisas “realmente interessantes” – o que lhe pode conferir um ar muito distinto, podendo-lhe garantir certo prestígio intelectual. Há quem os possa considerar úteis, porém a utilidade que pretendo apresentar aqui é diferente.

Por utilidade aqui não entendo nada muito elaborado, tal qual um conceito ou uma definição poderiam ser. Por utilidade aqui considero simplesmente aquela noção que Sócrates toma como o que surge quando se pode tirar algum proveito de algo (cf. Lísis, 210b-c). E de modo mais extenso, aquilo que aparece a partir de uma competência que produz algum tipo de bem à comunidade.

Mas que tipo de competência o filósofo possui que possa produzir algum bem à comunidade? Podemos, para responder, voltar-nos ao epigrama deste texto e ler o que a filósofa brasileira, Marilena Chaui, escreveu. A partir dai, podemos concordar que, desde que o filósofo nos ajude a ser menos ingênuos e menos preconceituosos, ele nos estará sendo útil. E voltando à introdução deste texto – surpreendente como possa parecer – ele pode cumprir esse papel mesmo em questões concretas como a construção de teatros, em questões sensuais como a melhor maneira de conquistar amorosamente alguém e em questões técnicas como experimentos científicos. Exemplos não faltam na história da filosofia para nos mostrar isso. Vamos a eles.

Rousseau, Diderot, D'Alembert e a questão do efeito pedagógico do teatro

A questão de qual a melhor maneira de promover a virtude em um povo é um tema perene na filosofia. No séc. XVIII, ela surgiu de um fato que pareceria banal à percepção comum.

No clima do Iluminismo, é conhecida a produção da famosa Enciclopédia dirigida por Diderot e que tinha a pretensão de impelir os homens ao livre uso da razão para que saíssem da menoridade intelectual, como afirmou Kant. Dentre os verbetes, houve um, escrito por D'Alembert, que chamou a atenção de Rousseau. Era o verbete sobre a cidade de Genebra. O problema identificado por Rousseau foi o de que D'Alembert gastou nada menos que um oitavo do texto falando não sobre o que havia na cidade, mas sobre o que nela faltava: um teatro de comédia.

Mereceu atenção especial o que para nós não passaria de, no máximo, um verbete mal escrito. A construção de um teatro, algo que hoje só preocuparia políticos, artistas e alguns poucos cidadãos mais cultos, fez Rousseau iniciar um debate filosófico sobre o efeito pedagógico do teatro, escrevendo uma carta a D'Alembert que ficou registrada na história da filosofia. Não cabe agora discorrer a respeito da posição tomada por cada filósofo. Fica o exemplo de como uma questão filosófica pode surgir de algo banal.

Sócrates e a arte erótica como arte filosófica por excelência1

Sócrates é comumente tomado como sendo o autor do dito “só sei que nada sei”, frase popularmente entendida como significando uma ignorância constante a respeito das coisas – sendo esta a atitude mais condizente com o que seria o verdadeiro filósofo. Nada mais errôneo. Sócrates nunca disse isso; pelo contrário, ele se dizia muito sabedor num tipo de arte que considerava filosófica por excelência: a arte do amor (cf. O Banquete, 177d-e).

No Crátilo (cf. 398d), Sócrates estabelece a relação filológica entre amor e conversação. Através de uma investigação etimológica, ele mostra que amor (Eros) tem a ver com a atividade de formular perguntas (erôtan). E, tendo em vista que sua atividade filosófica consistia basicamente no jogo de formular e de responder perguntas, é possível entender a atividade erótica característica de Sócrates, ou seja, a capacidade de entreter, através da conversação sedutora, o interlocutor e fazê-lo entrar no jogo filosófico que, por isso mesmo, não deixa de ser erótico.

O erotismo dos gregos, e de Sócrates em particular, não privilegiava a dupla conotação atual de sexo casual e de amor romântico. Para Sócrates, Eros deveria ser posto a serviço da melhoria do amado. O namoro, então, seria a atividade de “gerar e dar à luz no belo” (cf. O Banquete, 206e), que primeiramente se confundiria com o amado, mas que, no decorrer da atividade erótica conduzida corretamente, seria voltado para o verdadeiro belo, a Forma de Belo, completando-se a atividade filosófica. Saber a melhor forma de namorar, então, é essencial.

Dado esse contexto, pode-se entender melhor o porquê que se interessar na sedução amorosa é uma prática filosófica e não somente de gente dada à parte sensual da vida. A filosofia depende do amor (não esqueçamos que philia é também amor) e é por isso que, no Lísis, Sócrates abre o diálogo perguntando a Hipotales como era seu método de sedução. No decorrer da conversa, Sócrates mostra que seu modo de conquista é errado e lhe mostra o correto. Novamente, uma situação que para nós é banal tornada altamente filosófica.

O discurso ético como propiciador do progresso da ciência

A filosofia, e também a religião, podem se posicionar de forma bastante conservadora quando se trata de ciência. Porém, recentemente, no caso da discussão sobre as células-tronco embrionárias, por exemplo, esse conservadorismo paradoxalmente contribuiu para o progresso da ciência.

O que aconteceu de forma resumida foi que, ao se posicionar contra a pesquisa em células-tronco embrionárias, mostrando as implicações éticas de tal prática, a filosofia, e também a religião, forçaram a ciência a buscar outros métodos para conduzir a pesquisa. O que de fato aconteceu foi isto: a filosofia fui útil mesmo sendo conservadora; e em um assunto em que diriam “filósofo, neste assunto, só serve para atrapalhar”.

A filosofia é útil

Podemos tirar um denominador comum dos três exemplos acima que pode nos ajudar a entender o modo de proceder típico do filósofo. Os três começaram com situações corriqueiras e não com questões “sérias”, “dignas de reflexão”, “inteligentes” e tudo o mais que gente cult gosta de considerar. Essas situações corriqueiras, uma vez na mão do filósofo, ganharam uma interpretação inesperada, o que fez com que elas se tornassem dignas de serem vistas de outra perspectiva. O filósofo não mostrou nada “por trás” ou “escondido”; o que ele fez foi evidenciar algo que todo mundo já estava vendo, mas que ninguém dava a devida importância. O filósofo saiu do caso simplesmente concreto, do caso meramente sensual, do caso primariamente técnico e, partindo deles, fez ver o que neles é geral e relacionado a todas as pessoas.

Nesse sentido que estou tentando expor, o proveito que dele pode tirar a comunidade, ou seja, a utilidade do filósofo é ajudar as pessoas a verem em casos particulares a generalidade que relaciona a todos. E mais, é ajudar as pessoas a lidarem com perspectivas que não são as já consolidadas, as já dadas de forma gratuita, as que todo mundo já teria de antemão. Tudo para que com isso, modestamente, as coisas sejam vistas de um modo menos ingênuo e menos preconceituoso. Mas isso depende, claro, de que o filósofo, como disse Péricles em sua Oração Fúnebre, seja amante da filosofia e, conjuntamente, esforce-se em não ser indolente. Difícil. Mas não impossível.
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1 Para um maior desenvolvimento deste tópico, ver GHIRALDELLI Jr., Paulo. Como a filosofia pode explicar o amor. (Coleção Filosofia Prática). São Paulo: Universo dos Livros, 2011, especialmente o artigo Quase todos os amores de Sócrates.

3 comentários:

Anônimo disse...

Oi Vitor. Assisti o seu vídeo do dia 18, que me levou ao blog.

Não vejo o devido reconhecimento do filósofo em nosso país.

Talvez nem nas escolas.

Acho uma negligência imensurável.

Acredito na importância da filosofia para estimular e desenvolver o espírito inquisidor, capaz de solidificar o caráter do indivíduo e modificar o que, ao meu ver, vem se tornando um futuro negativamente obscuro para a humanidade.

Ações como a sua devem sempre serem estimuladas.

Abraço, amigo!

McLuhan

Vitor Lima disse...

Valeu pelo comentário, Mc - a quanto tempo! Bom, obrigado pelo incentivo. Mas eu devo dizer que não sou tão otimista quanto você quanto ao que a filosofia pode fazer. Não sei se ela pode solidificar o caráter do indivíduo como você diz. Entender melhor as coisas não faz de alguém moralmente melhor. Imagina que um doutor em Ética pode ser um crápula e um operário pode ser a pessoa mais honesta já venhamos a conhecer. Penso que a filosofia pode ser útil para nos tornar menos ingênuos e preconceituosos. Mas nada garante que, uma vez espertos e com os conceitos definidos, façamos deles o que é eticamente mais aconselhável. Mais ainda assim, agradeço muito o comentário. Divulga o texto e o vídeo, se puder me ajudar.

Anônimo disse...

Olavo de Carvalho é filósofo.