domingo, 22 de fevereiro de 2015

Casamento, amor e condução da vida*


Boa noite, recém-casados.

Boa noite, amigos presentes.

Quando minha irmã me convidou para ser padrinho de seu casamento e preparar um discurso, pensei que não poderia fazer outra coisa, se não algo relacionado à filosofia. Mais ai me ocorreu: falar algo do gênero pode não dar certo; o discurso fica chato se eu não souber levar. Mas, ao mesmo tempo, não posso escapar disso, porque é algo que corre nas minhas veias.

Amigos,

Vocês imaginam que um filósofo, chato, falaria algo do gênero “O casamento é uma instituição que, na origem, nada tem a ver com amor e tudo tem a ver com patrimônio” e, assim, estragaria todo o romantismo que essa ocasião pede. É verdade que o casamento, na origem, era isso, mas a origem não informa tudo sobre as coisas.

As coisas se transformam. A gente sabe que o presente ignora tanto o passado que não é raro que aquilo que existia no início acaba por ter pouca influência no dia a dia. Hoje e já há algum tempo, esta instituição chamada casamento simboliza outras coisas: o amor de duas pessoas e o quanto elas querem perpetuar esse amor indefinidamente.

Sand e Thiago,

Supostamente, eu, como padrinho, tenho que aconselhar vocês sobre o amor e sobre como preservar o amor.

Bem, o amor é um tema caro à filosofia. Mas vocês dois não se preocupem. Não vou falar aqui da origem grega do amor que era designado por três palavras e não por uma só. Não vou falar sobre Eros, philia e ágape – nomes engraçados pra noções que a gente pode começar a compreender perfeitamente por outros termos: desejo, amizade e caridade.

O desejo diz: eu te amo, você me faz falta, eu quero você.

A amizade diz: eu te amo, sua companhia me transborda, eu quero estar junto a você.

A caridade diz: eu te amo, Deus ama a todos, e, por Sua causa, nosso amor é possível.

O desejo é conhecido por não depender da escolha da gente. A falta que faz o outro, quando a gente ama, tanto vem, quanto vai, como se tivesse vontade própria. Os antigos consideravam o desejo divino por causa disso.

A amizade também tem o seu quê de não escolha. O ditado “a gente não faz amigos, mas reconhece” guarda certa verdade. Mas a gente reconhece não porque falta algo, mas porque a gente tá transbordando e quer compartilhar esse transbordamento com alguém nas mesmas condições.

A caridade é um sentimento tão desinteressado que só quem tem a divina capacidade de gerar uma vida é capaz de demonstrar. Ou seja, ou Deus ou a mãe e o pai da gente.

No casamento, as três formas de amor vão ter ocasião de aparecer. Não vejo utilidade em estabelecer qualquer hierarquia entre elas e aconselhar vocês, Sand e Thiago, por exemplo, a preservar mais uma que outra. Também não vejo como, do alto dos meus 25 anos, eu possa aconselhar um caminho seguro pra que o amor, em qualquer das manifestações, seja prolongado indefinidamente.

Sand e Thiago,

Amigos,

Como filósofo, não como sábio, não saberia aconselhar um caminho certo. Também não saberia aconselhar um caminho que fosse alheio ao que eu próprio já escolhi pra mim.

O que falarei a seguir – embora não sejam palavras minhas, mas de Nietzsche – tá inscrito em meu tecido mais profundo. Penso que essas palavras podem ser úteis pra vocês, caso vocês saibam dar ouvidos a ela.

Sobre como conduzir a vida:

“Se, em tudo aquilo que queres fazer, começares a te perguntar ‘será que quero mesmo fazê-lo em um número infinito de vezes?', isso será para ti o centro de gravidade mais sólido. Minha doutrina ensina: vivas de tal maneira que devas desejar reviver; é o dever. Aquele cujo esforço é a alegria suprema, que se esforce. Aquele que ama antes de tudo o repouso, que repouse. Aquele que ama, antes de tudo, submeter-se, obedecer e seguir, que obedeça. Mas que saiba bem aonde vai sua preferência e que não recue ante nenhum meio. É a eternidade que está em jogo. Essa doutrina é amável para com aqueles que não acreditam nela. Ela não possui nem inferno, nem ameaças. Aquele que não acredita sentirá, em si, apenas uma vida fugaz.”

Sand e Thiago,

Eu não desejo a vocês uma vida fugaz.

Vivam como se desejassem reviver um número infinito de vezes.

Não recuem ante nenhum meio.

A eternidade está em jogo.


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* Discurso feito pelo padrinho Vitor para os recém-casados, Sand e Thiago, em 21/02/2015.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Inventando racismo na TV


Em um evento do PIBID/Filosofia/UFRRJ, intitulado “A aula de Filosofia: debatendo propostas para o Ensino Médio”, em 2014, foram apresentados vários trabalhos que meus colegas de curso vêm desenvolvendo em sala de aula. Dentre eles, um sobre feminismo causou uma pequena discussão, não pelo conteúdo do projeto nele mesmo, mas pelo uso, durante a apresentação, de um impertinente verbo, considerado inadequado por alguns presentes. A colega que estava apresentando o trabalho, em determinado momento, soltou algo do gênero “O nosso objetivo era fazer com que o assunto fosse discutido de forma acessível, mas sem prostituir a filosofia”. Pronto. O projeto desenvolvido foi esquecido e os comentários se voltaram para a palavra maldita.

– A palavra é ofensiva nela mesma, e também o fato de ela ser alguém que está pesquisando o feminismo não permite que use esse tipo de vocabulário –, defendeu outra colega, em conversa particular.

– Ela, antes de tudo, de pesquisadora inclusive, é estudante de filosofia, filósofa até. Usar palavras é o que fazemos em filosofia, e o uso provocativo é um deles. Assim mesmo, o contexto em que ela a utilizou não foi provocativo – defendi eu, à época.

Penso que duas premissas estão implícitas no argumento da colega:
1) Não é dado a um pesquisador utilizar sem cuidado um vocabulário, tanto por implicações conceituais quanto por implicações sociológicas;
2) Há palavras cujo teor ofensivo não depende de contexto.
Concordo com a primeira premissa implícita. Não tenho o que lhe acrescentar, ainda que pense que, ao caso, ela não se aplique, pela razão já alegada. Com a segunda premissa, entretanto, tenho reservas (mas volto a ela, em alguns parágrafos).