segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Inventando racismo na TV


Em um evento do PIBID/Filosofia/UFRRJ, intitulado “A aula de Filosofia: debatendo propostas para o Ensino Médio”, em 2014, foram apresentados vários trabalhos que meus colegas de curso vêm desenvolvendo em sala de aula. Dentre eles, um sobre feminismo causou uma pequena discussão, não pelo conteúdo do projeto nele mesmo, mas pelo uso, durante a apresentação, de um impertinente verbo, considerado inadequado por alguns presentes. A colega que estava apresentando o trabalho, em determinado momento, soltou algo do gênero “O nosso objetivo era fazer com que o assunto fosse discutido de forma acessível, mas sem prostituir a filosofia”. Pronto. O projeto desenvolvido foi esquecido e os comentários se voltaram para a palavra maldita.

– A palavra é ofensiva nela mesma, e também o fato de ela ser alguém que está pesquisando o feminismo não permite que use esse tipo de vocabulário –, defendeu outra colega, em conversa particular.

– Ela, antes de tudo, de pesquisadora inclusive, é estudante de filosofia, filósofa até. Usar palavras é o que fazemos em filosofia, e o uso provocativo é um deles. Assim mesmo, o contexto em que ela a utilizou não foi provocativo – defendi eu, à época.

Penso que duas premissas estão implícitas no argumento da colega:
1) Não é dado a um pesquisador utilizar sem cuidado um vocabulário, tanto por implicações conceituais quanto por implicações sociológicas;
2) Há palavras cujo teor ofensivo não depende de contexto.
Concordo com a primeira premissa implícita. Não tenho o que lhe acrescentar, ainda que pense que, ao caso, ela não se aplique, pela razão já alegada. Com a segunda premissa, entretanto, tenho reservas (mas volto a ela, em alguns parágrafos).

Foi a reação de parte do ativismo antirracista a uma esquete do último episódio do programa de humor da Rede Globo de Televisão, “Tá no Ar: a TV na TV” que me fez voltar a pensar o caso.

A esquete consistiu em representar como seria se a venda de escravos do séc. XIX tivesse que ser anunciada com os meios que conhecemos de publicidade atuais. Uma vez que, ontem, vender escravo era tão comum quanto, hoje, vender artigos do lar, o raciocínio utilizado foi o de emular uma grande rede de vendas desse gênero. As famosas Casas Bahia foram parodiadas em uma de suas peças de publicidade mais lembradas: o famoso “Quer pagar quanto?”.

A esquete foi engraçada. Aliás, por si só, a peça das Casas Bahia já é engraçada, e imitá-la é meio caminho para conquistar a gargalhada do espectador. Ela é tão engraçada que o ator que nela atua é até hoje lembrado – não sem um sorriso jocoso de canto de boca – como “o garoto das Casas Bahia” ou “o ator do Quer pagar quanto?” e não por Fabiano Augusto (que, por sinal, é o seu nome; aposto que você não sabia; antes do Google, nem eu, confesso). Além disso, alguns elementos indicam que ela, a esquete, pretendeu-se crítica e não mera reprodutora do senso comum.

Ao ligar a venda de escravos (algo abjeto e legalmente banido) à venda de artigos do lar (algo corriqueiro e politicamente incentivado), o efeito é de estranhamento, não de acomodação. Algo que é banal (a venda de artigos domésticos) torna-se estranho, porque, em invés de riso automático e indiferença, vem o riso nervoso que favorece o seguinte comentário: “E pensar que comprar escravo já foi tão comum quanto comprar geladeira”. Faz pensar que mentalidades arraigadas mudam e que talvez nossas crenças atuais possam simplesmente não ser consideradas relevantes no futuro. Ao perceber isso, não estamos longe de dizer algo mais reflexivo como “E por que caralhos estou rindo disso?”.

É claro, entretanto, que essa é só uma interpretação possível. Outra é a de Douglas Belchior, afro ativista que escreve sobre diversidade e direitos humanos, no Blog Negro Belchior, no site da Revista Carta Capital.

Em artigo intitulado “Rede Globo: O racismo ‘Tá no Ar’ ou ‘Quer açoitar quantos?'”, Belchior defende a seguinte tese: não se deve fazer piada com a escravidão. Segundo sua leitura, tudo o que a esquete faz é mostrar “homens e mulheres postos à venda e nos lembrando que sempre fomos – negros e negras – tratados como mercadoria, desumanizados e coisificados […]”. Para Belchior, o humorístico não só não rompe com a “lógica estrutural que organiza o pensamento racista”, como “fortalece e fomenta o racismo” ao incentiva o “esteriótipo racial”.

O que seria, mais claramente, a “lógica estrutural que organiza pensamento racista”?

No meio de seu artigo, Belchior cita uma fonte que talvez ajude a responder essa questão. De acordo com o trecho, racismo consiste em agir associando traços fenotípicos a desenvolvimento cognitivo e comportamento social. Assim, o racista age atribuindo automaticamente determinado comportamento a alguém, levando em conta somente a cor de sua pele. A “lógica estrutural que organiza pensamento racista”, então, se é que entendi bem o seu raciocínio, consiste no conjunto de atos que, de alguma forma, reproduz a associação automática entre a cor da pele e determinado comportamento, incentivando o que ele chama de “esteriótipo racial”.

Em um esforço maior para compreender o raciocínio de Belchior (embora eu entenda que não foi seu intuito formulá-lo de forma silogística), desmembro-o a seguir:
a) É preciso combater o racismo;
b) Piada sobre escravidão reproduz a “lógica estrutural que organiza pensamento racista”;
c) Logo, não se deve fazer piadas sobre a escravidão.
Seu raciocínio, se é que o entendi corretamente, é aparentemente impecável. A premissa a) é irrefutável. Ninguém, sob o atual sistema jurídico brasileiro, iria de encontro a ela. A premissa b), caso se concorde sobre o que é a “lógica estrutural que organiza pensamento racista”, também é irrefutável. Não se pode negar que uma piada sobre escravidão, de alguma forma, deixa margem para a interpretação do “esteriótipo racial”. As duas premissas sendo irrefutáveis, então, a conclusão c) seria verdadeira?

Penso que não.

Minha resposta é negativa porque não concordo com a excessiva abrangência do que Belchior entende por “lógica estrutural que organiza o pensamento racista”. De acordo com essa noção, todo ato que encoraje, de alguma forma, o “esteriótipo racial”, direta ou indiretamente, tendo seu autor ou não intenção, consiste em racismo. Tal amplitude é socialmente perigosa e, no limite, leva a uma caça às bruxas tão nefasta quanto o comportamento racista.

Uma maneira de lidar com esse problema é analisá-lo em seus pressupostos conceituais. É o que farei a seguir.

O erro principal de Belchior é o mesmo erro do raciocínio de minha colega, com o qual iniciei este artigo, isto é, ambos pressupõem a seguinte premissa:
2) Há palavras cujo teor ofensivo não depende de contexto.
Para ambos, as palavras “prostituir” e “escravidão” levarão uma carga negativa onde quer que estejam, com uma exceção: elas podem ser usadas, desde que haja prévia permissão de alguém relacionado ao movimento ativista em questão, seja feminista, seja negro. A regra é que determinadas palavras, só aos iniciados é dado o poder de pronunciá-las.

Belchior diz:
“Mesmo que a intenção dos humoristas do ‘Tá no Ar’ tenha sido criticar o racismo na televisão brasileira, há de se perguntar: ‘Os grupos que reivindicam direitos para a população negra fazem piada com a escravidão? O Movimento Negro faria?’ […] Houve uma pesquisa dirigida à população negra para aferir como se sentem, tendo sua imagem e sua história satirizada em rede nacional? Eu, como descendente de pessoas escravizadas não me senti confortável com a piada.”
Neste trecho, Belchior confirma a interpretação segundo a qual o ato racista é configurado de maneira meramente formal, isto é, independente da intenção do autor e do contexto de seu discurso. Ao mesmo tempo, elege um grupo que teria legitimidade para dizer o que é racismo: caso a população negra ou o Movimento Negro dessem seu aval, a piada poderia ser feita, o racismo não estaria configurado. Declaradamente, o que o raciocínio de Belchior faz é reduzir uma questão jurídica (racismo é um dos crimes mais graves de nosso ordenamento jurídico: Constituição Federal, art. 5º, XLII) a uma questão de ofensa grupal ou individual. Prevalecendo essa tese, no limite, grupos e indivíduos teriam o poder de jurisdição, e princípios democráticos como o do contraditório e o da ampla defesa seriam abolidos, uma vez que pressupõem ambos um juiz que não seja parte na causa, para que ouça o acusado sem interesse no caso.

Além do aspecto jurídico, há o aspecto filosófico, derivado da aceitação da premissa 2) acima. Quem a aceita não está longe de aceitar esta outra, mais abrangente:
3) Há palavras cujo significado não depende de contexto.
Para ilustrar isso, cito novamente Belchior:
“É possível também argumentar que o programa usa a estratégia da ironia para expressar uma ideia antirracista, entretanto, a imagem deveria falar por si mesma, não poderia dar margem para outros tipos de interpretações. Se, ao observar a imagem, é possível uma interpretação racista, a tarefa fora, neste aspecto, mal sucedida.” (SIC, grifo meu)
A ideia de que algo possa “falar por si mesmo” e que não possa “dar margem para outros tipos de interpretações” pressupõe 3), ou seja, pressupõe que exista algo que, ao contrário, apresente uma, e só uma, interpretação. Bem, fora de uma linguagem lógica formal, essa demanda não pode ser cumprida. A não ser, é claro, que um regime de terror e exceção (como foi a Ditadura Militar) seja instaurado e que se proíba manifestações contrárias à ordem, abolindo-se a liberdade de expressão.

O que o raciocínio de pessoas como minha colega e Belchior deixam de lado é que, pressupor palavras com significados independentes de contexto fora do âmbito lógico-formal, tem por consequência prática uma atitude autoritária com quem pensa diferente. O que estou chamando aqui de atitude autoritária é, em nome do combate ao racismo e ao sexismo (e outras doenças sociais), limitar o direito de expressão de qualquer um que não reze na cartilha da militância e não só de verdadeiros racistas. Essa atitude é contraprodutiva para a própria militância porque a faz declarar guerra contra quem não é inimigo e a só estabelecer aliança com quem já se aliou.

O que certa parcela do movimento pró-minorias não entende é que não há como pressupor um texto que não seja polissêmico, uma vez inserido no campo social de outros textos. O fato de haver interpretações racistas possíveis da esquete humorística não significa que ela seja racista em si, pelo simples fato que no âmbito do discurso público não existe algo “em si”. A lógica de manipulação de estereótipos contra a qual todos os movimentos de minorias lutam parece, ao final de contas, ser tão forte que parcela deles não consegue dela se livrar. Tudo o que sabe propor é repeti-la, só que às avessas: ao denunciar uma hegemonia de representação, apresenta outra. O problema permanecerá enquanto houver quem, como minha colega e Belchior, faça questão de permanecer dentro desse esquema conceitual: inventando um inimigo, em vez de lutar contra o que já existe.

3 comentários:

Luma Miranda disse...

Parabéns pelo texto. A sua crítica é perfeitamente aplicada a esse mesmo tipo de confusão em outros contextos (no campo da Literatura, por exemplo...)

Bruno de Oliveira disse...

Bem legal o texto. Gosto muito quando, na internet, faz-se esse trabalho de formiguinha de ir aos detalhes da argumentação para assim desmontá-la.

Um abraço

Augusto Lima disse...

Sua sábia avó, se pudesse opinar, diria que "estão procurando sarnas pra se coçar". E eu lamento que continuem na superfície...