sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Três versões de Judas

Jorge Luis Borges

There seemed a certainty in degradation
(T. E. Lawrence. Seven Pillars of Wisdom. CIII.)

Na Ásia Menor ou em Alexandria, no século II de nossa fé, quando Basílides publicava que o cosmos era uma temerária ou malvada improvisação de anjos deficientes, Nils Runeberg haveria dirigido, com singular paixão intelectual, um dos conventículos gnósticos. Dante lhe haveria destinado, talvez, um sepulcro de fogo; seu nome teria aumentado os catálogos de heresiarcas menores, entre Satornilo e Carpócrates; algum fragmento de suas prédicas, exornado de injúrias, perduraria no apócrifo Liber adversus omnes haereses ou haveria aparecido quando o incêndio de uma biblioteca monástica devorou o último exemplar do Syntagma. Ao invés disso, Deus o deparou com o século XX e com a cidade universitária de Lund. Ai, em 1904, publicou a primeira edição de Kristus och Judas; ai, em 1909, seu livro capital Den hemlige Frälsaren. (Do último, há versão alemã, executada em 1912 por Emil Schering; chama-se Der heimliche Heiland).

Antes de ensaiar um exame dos precipitados trabalhos, urge repetir que Nils Runeberg, membro da União Evangélica Nacional, era profundamente religioso. Em um cenáculo de Paris, ou ainda de Buenos Aires, um literato poderia muito bem redescobrir as teses de Runeberg; essas teses, propostas em um cenáculo, seriam ligeiros exercícios inúteis da negligência ou da blasfêmia. Para Runeberg, foram a chave que decifra um mistério central da teologia; foram matéria de meditação e de análise, de controvérsia histórica e filológica, de soberba, de júbilo e de terror. Justificaram e desbarataram sua vida. Aqueles que passeiam por este artigo devem, mesmo assim, considerar que aqui não há senão registros das conclusões de Runeberg, não sua dialética e suas “provas”. Quem se resigna a buscar provas de algo crido por ele ou cuja pregação não lhe importa?

A primeira edição de Kristus och Judas leva esta categórica epígrafe, cujo sentido, anos depois, dilataria o próprio Nils Runeberg: Não uma coisa, todas as coisas que a tradição atribui a Judas Iscariotes são falsas (De Quincey, 1857). Precedido por algum alemão, De Quincey especulou que Judas entregou Jesus Cristo para forçar-lo a declarar sua divindade e a acender uma vasta rebelião contra o jugo de Roma; Runeberg sugere uma vindicação de índole metafísica. Habilmente, começa por destacar a superabundância do ato de Judas. Observa (como Robertson) que para identificar um professor que diariamente pregava na sinagoga e que obrava milagres diante do concurso de milhares de homens não se requer a traição de um apóstolo. Isso, no entanto, aconteceu. Supor um erro na escritura é intolerável; não menos intolerável é admitir um fato casual no mais precioso acontecimento da história do mundo. Ergo, a traição de Judas não foi casual; foi um fato prefixado que tem seu lugar misterioso na economia da redenção. Runeberg prossegue: O Verbo, quando foi feito carne, passou da ubiquidade ao espaço, da eternidade à história, da bem-aventurança sem limites à mutação e à morte; para corresponder a tal sacrifício, era necessário um homem, em representação de todos os homens, que fizesse um sacrifício condigno. Judas Iscariotes foi esse homem. Judas, único entre os apóstolos, intuiu a divindade secreta e o terrível propósito de Jesus. O Verbo se havia rebaixado a mortal; Judas, discípulo do Verbo, podia rebaixar-se a delator (o pior delito que a infâmia suporta) e a ser hóspede do fogo que não se apaga. A ordem inferior é um espelho da ordem superior; as formas da terra correspondem às formas do céu; as manchas da pele são um mapa da incorruptíveis constelações; Judas espelha de algum modo Jesus. Dai as trinta moedas e o beijo; dai a morte voluntária para merecer ainda mais a Reprovação. Assim dilucidou Nils Runeberg o enigma de Judas.

Os teólogos de todas as confissões o refutaram. Lars Peter Engström o acusou de ignorar, ou de preterir, a união hipostática; Axel Borelius, de renovar a heresia dos docetas, que negaram a humanidade de Jesus; o férreo bispo de Lund, de contradizer o terceiro versículo, do capítulo 22, do Evangelho de São Lucas.

Estes variados anátemas influíram em Runeberg, que parcialmente reescreveu o reprovado livro e modificou sua doutrina. Abandonou a seus adversários o terreno teológico e propôs oblíquas razões de ordem moral. Admitiu que Jesus, “que dispunha de consideráveis recursos que a Onipotência pode oferecer”, não necessitava de um homem para redimir todos os homens. Rebateu, logo, àqueles que afirmam que nada sabemos do inexplicável traidor; sabemos, disse, que foi um dos apóstolos, um dos eleitos para anunciar o reino dos céus, para curar enfermos, para limpar leprosos, para ressuscitar mortos e para exorcizar demônios (Mateus, 10:7-8; Lucas 9:1). Um varão a quem o Redentor distinguiu dessa maneira merece de nós a melhor interpretação de seus atos. Imputar seu crime à ganância (como tem fito alguns, alegando João, 12:6) é se resignar ao motivo mais torpe. Nils Runeberg propõe o motivo contrário: um hiperbólico e até ilimitado ascetismo. O asceta, para maior gloria de Deus, degrada e mortifica a carne; Judas fez o mesmo com o espírito. Renunciou à honra, ao bem, à paz do reino dos céus, como outros, menos heroicamente, ao prazer2. Premeditou com lucidez terrível suas culpas. No adultério geralmente participa a ternura e a abnegação; no homicídio, a coragem; nas profanações e na blasfêmia, certo fulgor satânico. Judas escolheu aquelas culpas não visitadas por nenhuma virtude: o abuso de confiança (João, 12:6) e a delação. Obrou com gigantesca humildade, acreditou-se indigno de ser bom. Paulo escreveu: “Aquele que se glorifica que se glorifique no Senhor” (I, Coríntios 1:31); Judas busco o Inferno, porque a bem-aventurança do Senhor lhe bastava. Pensou que a felicidade, como o bem, é um atributo divino e que não devem usurpar-la os homens3.

Muitos descobriram, post factum, que nos justificáveis começos de Runeberg está seu extravagante fim, e que Den hemlige Frälsaren é uma mera perversão ou exasperação de Kristus och Judas. No final de 1907, Runeberg terminou e revisou o texto manuscrito; quase dois anos transcorreram sem que o houvesse entregue à imprensa. Em outubro de 1909, o livro apareceu com um prólogo (enigmaticamente morno) do hebraísta dinamarquês Erik Erfjord e com esta pérfida epígrafe: “No mundo estava, e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu” (João, 1:10). O argumento geral não é complexo, ainda que a conclusão seja monstruosa. Deus, argumenta Nils Runeberg, rebaixou-se a ser homem para a redenção do gênero humano; cabe conjecturar que foi perfeito o sacrifício obrado por ele, não invalidado ou atenuado por omissões. Limitar o que padeceu à agonia de uma tarde na cruz é blasfematório4. Afirmar que foi homem e que foi incapaz de pecado encerra contradição; os atributos de impecabilitas de humanitas não são compatíveis. Kemnitz admite que o Redentor pode sentir fatiga, frio, turbação, fome e sede; também cabe admitir que pode pecar e se perder. O famoso texto “Brotará como raiz da terra sedenta; não há bom parecer nele, nem beleza; depreciado e o último dos homens; varão de dores, experiente em perdas” (Isaías, 53:2-3), é para muitos uma previsão do crucificado, na hora de sua morte; para alguns (verbigracia, Hans Lassen Martensen), uma refutação da beleza que o consenso vulgar atribui a Cristo; para Runeberg, a pontual profecia não de um momento, mas de todo o atroz porvir, no tempo e na eternidade, do Verbo feito carne. Deus totalmente se fez homem, mas homem até à infâmia, homem até à reprovação e ao abismo. Para nos salvar, pode eleger qualquer dos destinos que tramam a perplexa rede da história, pode ser Alexandre ou Pitágoras ou Rurik ou Jesus; elegeu um ínfimo destino: foi Judas.

Em vão propuseram essa revelação las livrarias de Estocolmo e de Lund. Os incrédulos a consideraram, a priori, um insípido e laborioso jogo teológico; os teólogos a desdenharam. Runeberg intuiu nessa indiferença ecumênica uma quase milagrosa confirmação. Deus ordenava essa indiferença; Deus não queria que se propalasse na terra Seu terrível segredo. Runeberg compreendeu que não era chegada a hora. Sentiu que estavam convergindo para ele as antigas maldições divinas; recordou de Elias e de Moisés que, na montanha, tamparam os olhos para não ver a Deus; de Isaías, que se aterrorizou quando seus olhos viram a Aquele cuja glória preenche a terra; de Saul, cujos olhos se cegaram no caminho de Damasco; do rabino Simeón bem Azaí, que viu o paraíso e morreu; do famoso feiticeiro Juan de Viterbo, que enlouqueceu quando pode ver à Trindade; dos Midrashim, que abominam os ímpios que pronunciam o Shem Hamephorash, o Nome Secreto de Deus. Não era acaso ele culpável desse crime obscuro? Não seria essa a blasfêmia contra o Espírito, a que não será perdoada? (Mateus, 12:31). Valerio Sorano morreu por haver divulgado o oculto nome de Roma; que infinito castigo seria o seu por haver descoberto e divulgado o horrível nome de Deus?

Bêbado de insônia e de uma dialética vertiginosa, Nils Runeberg errou pelas ruas de Malmö, rogando alto que lhe houvera sido concedida a graça de compartilhar com o Redentor o Inferno.

Morreu do rompimento de um aneurisma, em 1º de março de 1912. Os heresiólogos talvez o recordarão; ele agregou ao conceito do Filho, que parecia esgotado, as complexidades do mal e do infortúnio.

1944


Tradução de Vitor Lima

Autoria de Jorge Luis Borges 

Texto retirado de BORGES, J. L. Ficciones. España: Emecé Editores, 2006.

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2Borelius interroga com escárnio: “Por que não renunciou a renunciar? Por que não renunciar a renunciar?”

3Euclides da Cunha, em um livro ignorado por Runeberg, anota que para o heresiarca de Canudos, Antônio Conselheiro, a virtude “era uma quase impiedade”. O leitor argentino recordará passagens análogas na obra de Almafuerte. Runeberg publicou, na folha simbólica Sju insegel, um assíduo poema descritivo, A água secreta; as primeiras estrofes narram os feitos de um tumultuoso dia; as últimas, a descoberta de uma lagoa glacial; o poeta sugere que a persistência dessa água silenciosa corrige nossa inútil violência e de algum modo a permite e a absolve. O poema conclui assim: “A água da selva é feliz; podemos ser malvados e dolorosos.”


4Maurice Abramowics observa: “Jesus, d'apres ce scandinave, a toujours le beau rôle; ses déboires, grâce à la science des typographes, joussent d'une réputation polyglotte; sa residence de trente-trois ans parmi les humains ne fut, em somme, qu'une villégiature”. Erfjord, no terceiro apêndice da Christelige Dogmatik, refuta essa passagem. Anota que a crucificação de Deus não terminou, porque o acontecido uma só vez no tempo se repete sem trégua na eternidade. Judas, agora, continua cobrando as moedas de prata no templo; continua beijando Jesus Cristo; continua arremessando as moedas de prata no templo; continua atando o laço na corda no campo de sangue. (Erfjord, para justificar essa afirmação, invoca o último capítulo do primeiro tomo da Vindicação da eternidade de Jaromir Hladik.)

2 comentários:

Anônimo disse...

fas + video que ta poko

Tom Vital disse...

Muito Bom...Auuuuuuuuuuuuuuu!