sábado, 25 de janeiro de 2014

Bala de borracha na cadeira racista



Vídeo resposta ao Vitor (por Paulo Francisco)





Em tempos em que Fátima Bernardes chama de negra a calcinha que é preta, até mesmo uma cadeira pode virar racista. Basta que, para isso, uma mulher preta – ou negra; já não sei mais – esteja em formato de uma, e que uma mulher branca esteja sobre ela. O caso aconteceu. A mulher branca é Dasha Zhukova, socialite russa, e a cadeira é uma obra de arte feita por Bjarne Melgaard, artista noruegues que mora em Nova York. Muito ousado?

Na verdade, não. Se entendermos ousadia como o ato de percorrer um campo que ninguém antes percorreu, tal qual a característica dos atenienses segundo Péricles, Melgaard não foi ousado. Antes dele, nos idos dos anos 1960, o artista britânico Allen Jones fez a mesma coisa, só que a mulher era branca. Ou melhor, mulheres, cada uma sob os seguintes formatos: porta-chapéus, mesa e cadeira. Lembra da cena inicial de Laranja Mecânica (Kubrick, 1971) em que estátuas de mulheres são feitas de mobília? Foi possivelmente inspirada no trabalho de Allen.

OK. Já estamos convencidos, portanto deixemos de lado a ousadia de Melgaard. Mas então qual é ponto de sua obra para que ela seja considerada racista? Jonathan Jones, crítico de arte do jornal britânico The Guardian, nos dá a dica:
Na verdade, não se trata de racismo em si. Tem mais a ver com a maneira desajeitada que uma estranha obra de arte foi exposta à cultura popular, de uma maneira tal que facilita a má interpretação.1
Tirar a obra de arte de seu contexto dá a ela um significado totalmente outro, da mesma forma que tirar o objeto banal do cotidiano e expô-lo institucionalmente o transforma por inteiro – quanto a isso, Duchamp e Warhol já nos deram exemplos suficientes. Penso que são razoáveis as reclamações contra a conduta de Zhukova ao se deixar fotografar sentada na cadeira de Melgaard. Essa cadeira não foi feita para se sentar. Ponto. Entretanto, não é a conduta de Zhukova que pretendo abordar, mas sim suas consequências no imaginário popular. Passo, então, a discutir a democratização não só de obras de arte no sentido estrito, mas de uma cultura mais erudita como um todo e, acoplado a isso, o problema do julgamento moral apressado.

Todos agradecemos a Lutero por ter vertido pela primeira vez os manuscritos originais da Bíblia para sua língua nacional, abrindo caminho para a democratização da alta cultura que hoje desfrutamos. Não precisamos mais saber grego, latim ou seja lá que outra língua for para ter acesso à cultura erudita. Aliás, depois de Lutero, muita coisa que era erudita passou a ser popular. Porém, como há bens que vem para o mau, com a benfeitoria de Lutero, veio a malfeitoria tão conhecida nestes nossos dias que chamo de interpretação segundo o que eu acho. A interpretação segundo o que eu acho é aquela que diz, por exemplo, de um lado, que Nietzsche prega a vinda do super-homem e a eliminação dos fracos e, de outro, que os contos da Bíblia são para serem compreendidos antes como descrição de fatos que de ensinamentos morais. O interpretador do achismo próprio pode ser tanto o mais humilde dos nossos parentes, empregados e colegas de trabalho quanto o mais estudado dos nossos professores, chefes e governantes. O interpretador é o tipo que, portando uma interpretação totalmente tosca das coisas, faz julgamentos morais apressados. Ele não sabe do que está falando. Mas para ele isso pouco importa.

O interpretador é o tipo que se julga um soldado em defesa da moralidade, mas que só consegue ser um pelego do moralismo. Ele está crente que sabe exatamente como todos devem se comportar tanto no âmbito públlico quanto no âmbito privado; ele sabe distinguir o que é “natural” do que é “artificial” e “convencional”; ele sabe também que o melhor é o que é “natural” e que o “convenvional” e o “artificial” podem até ser permitidos, mas dentro de limites específicos. O problema é que ele sabe de tudo isso, mas não sabe de onde veio esse saber. O errado ele consegue identificar de longe, de olhos vendados até, mas não pergunte para ele o porquê. Ai já é demais.

Sabe um bom exemplo do que eu estou chamando aqui de o interpretador? É o vídeo “Bala deborracha” feito pelo grupo Porta dos Fundos. Ali, não importa o que se pergunte ao policial interpretado por Fábio Porchat sobre como ele agiria diante de uma situação de manifestação popular, ele responde “Bala de borracha!”. Diante de uma situação que ele considera errada, só há uma resposta: bala de borracha, ou seja, condenar e executar. Não interessa a ele entender nada. O errado ele já sabe o que é; cabe, então, extirpar o errado o mais rápido possível.

A moral, uma vez destituída da compreensão do seu mecanismo, corre o risco de transformar-se em puro moralismo. Ela é um conjunto de regras para o convívio comum2, por exemplo, as regras que proíbem o uso de determinado tipo de vocabulário, porque não adequado em princípio a uma situação. Para ficar em um exemplo simplório: se alguém faz uso de palavreado chulo em sala de aula, por exemplo, está cometendo atitude imoral. Porém, não é qualquer palavreado chulo dito em sala de aula que é imoral. Imagine que na sala de aula, está-se estudando as peças de Shakespeare – que foi, estava esperando que eu mencionasse as canções de Valesca Popozuda para dar exemplo de palavreado chulo? É claro que não, o leitor já há de ter lido Shakespeare – ou os livros de Hemingway ou de Bataille, ou, para ficarmos em nosso país, as peças de teatro de Nelson Rodrigues  ou do grupo Teatro Oficina. Nesse caso deveríamos acusar o professor de imoral por utilizar de palavra chula? Deveríamos censurar a leitura de Hesíodo porque ele fala de coco, xixi e gala em seu O trabalho e os dias?

O moralista que também é um interpretador não está preocupado com o conteúdo, mas com a forma. Se ele consegue identificar a forma do que ele considera errado, a coisa está condenada. É por isso que Melgaard não escapou dele. O que mais poderia significar uma mulher negra em formato de cadeira? O moralista interpretador já tem a resposta: racismo.

Não importa retrucar a ele que quando a arte é ofensiva ela também é, em grande medida, uma sátira a injustiças. Também não importa dizer a ele que a cultura mais erudita está repleta do que ele considera imoral e feio. Ele não tem acesso a ela, apesar de, em casos não tão raros, sua prateleira de livros estar cheia de volumes. Ele não lê livros, ele lê manuais. Em uma pergunta de múltipla escolha, ele só saberia uma e única resposta: bala de borracha!

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1No original: “In reality, it is not about racism as such. It is about the clumsy exposure of a strange work of art to popular culture in a way that begs to be misunderstood" in Jonathan Jones, Why there's nothing racist about the 'racist chair', The Guardian, disponível em: http://www.theguardian.com/artanddesign/jonathanjonesblog/2014/jan/21/racist-chair-bjarne-melgaard-dasha-zhukova#_ Acesso em: 25/01/2014.

2Não faço distinção aqui entre moral e ética. Para uns autores a diferença está em que a primeira é do âmbito da conduta privada, e a segunda é do âmbito da conduta pública. Para um autor que explora melhor essa diferença, ver GHIRALDELLI Jr., Paulo. Filosofia política para educadores: democracia e direito de minorias. São Paulo: Manole, 2013, especialmente o capítulo sobre Moralismo.

2 comentários:

Augusto Lima disse...

O título impetuoso e criativo condiz muito bem com o desenvolvido no texto, escrito de forma clara e compreensível.

Vitor Lima disse...

Obrigado, pai. Vou me esmerando na arte da escrita.