Em tempos em que Fátima Bernardes chama de negra a calcinha que é preta, até mesmo uma
cadeira pode virar racista. Basta que, para isso, uma mulher preta –
ou negra; já não sei mais – esteja em formato de uma, e que uma
mulher branca esteja sobre ela. O caso aconteceu. A mulher branca é
Dasha Zhukova, socialite russa, e a cadeira é uma obra de arte feita
por Bjarne Melgaard, artista noruegues que mora em Nova York. Muito
ousado?
Na verdade, não. Se
entendermos ousadia como o ato de percorrer um campo que ninguém
antes percorreu, tal qual a característica dos atenienses segundo
Péricles, Melgaard não foi ousado. Antes dele, nos idos dos anos
1960, o artista britânico Allen Jones fez a mesma coisa, só que a
mulher era branca. Ou melhor, mulheres, cada uma sob os seguintes
formatos: porta-chapéus, mesa e cadeira. Lembra da cena inicial de
Laranja Mecânica (Kubrick, 1971) em que estátuas de mulheres são
feitas de mobília? Foi possivelmente inspirada no trabalho de Allen.
OK. Já estamos
convencidos, portanto deixemos de lado a ousadia de Melgaard. Mas
então qual é ponto de sua obra para que ela seja considerada
racista? Jonathan Jones, crítico de arte do jornal britânico The
Guardian, nos dá a dica:
Na verdade, não se trata de racismo em si. Tem mais a ver com a maneira desajeitada que uma estranha obra de arte foi exposta à cultura popular, de uma maneira tal que facilita a má interpretação.1
Tirar a obra de arte de
seu contexto dá a ela um significado totalmente outro, da mesma
forma que tirar o objeto banal do cotidiano e expô-lo
institucionalmente o transforma por inteiro – quanto a isso,
Duchamp e Warhol já nos deram exemplos suficientes. Penso que são
razoáveis as reclamações contra a conduta de Zhukova ao se deixar
fotografar sentada na cadeira de Melgaard. Essa cadeira não foi
feita para se sentar. Ponto. Entretanto, não é a conduta de Zhukova
que pretendo abordar, mas sim suas consequências no imaginário
popular. Passo, então, a discutir a democratização não só de
obras de arte no sentido estrito, mas de uma cultura mais erudita
como um todo e, acoplado a isso, o problema do julgamento moral
apressado.
Todos agradecemos a
Lutero por ter vertido pela primeira vez os manuscritos originais da
Bíblia para sua língua nacional, abrindo caminho para a
democratização da alta cultura que hoje desfrutamos. Não
precisamos mais saber grego, latim ou seja lá que outra língua for
para ter acesso à cultura erudita. Aliás, depois de Lutero, muita
coisa que era erudita passou a ser popular. Porém, como há bens que
vem para o mau, com a benfeitoria de Lutero, veio a malfeitoria tão
conhecida nestes nossos dias que chamo de interpretação segundo o
que eu acho. A interpretação segundo o que eu acho é aquela que
diz, por exemplo, de um lado, que Nietzsche prega a vinda do
super-homem e a eliminação dos fracos e, de outro, que os contos da
Bíblia são para serem compreendidos antes como descrição de fatos
que de ensinamentos morais. O interpretador do achismo próprio pode
ser tanto o mais humilde dos nossos parentes, empregados e colegas de
trabalho quanto o mais estudado dos nossos professores, chefes e
governantes. O interpretador é o tipo que, portando uma
interpretação totalmente tosca das coisas, faz julgamentos morais
apressados. Ele não sabe do que está falando. Mas para ele isso
pouco importa.
O interpretador é o
tipo que se julga um soldado em defesa da moralidade, mas que só
consegue ser um pelego do moralismo. Ele está crente que sabe
exatamente como todos devem se comportar tanto no âmbito públlico
quanto no âmbito privado; ele sabe distinguir o que é “natural”
do que é “artificial” e “convencional”; ele sabe também que
o melhor é o que é “natural” e que o “convenvional” e o
“artificial” podem até ser permitidos, mas dentro de limites
específicos. O problema é que ele sabe de tudo isso, mas não sabe
de onde veio esse saber. O errado ele consegue identificar de longe,
de olhos vendados até, mas não pergunte para ele o porquê. Ai já
é demais.
Sabe um bom exemplo do
que eu estou chamando aqui de o interpretador? É o vídeo “Bala deborracha” feito pelo grupo Porta dos Fundos. Ali, não importa o
que se pergunte ao policial interpretado por Fábio Porchat sobre
como ele agiria diante de uma situação de manifestação popular,
ele responde “Bala de borracha!”. Diante de uma situação que
ele considera errada, só há uma resposta: bala de borracha, ou
seja, condenar e executar. Não interessa a ele entender nada. O
errado ele já sabe o que é; cabe, então, extirpar o errado o mais
rápido possível.
A moral, uma vez
destituída da compreensão do seu mecanismo, corre o risco de
transformar-se em puro moralismo. Ela é um conjunto de regras para o
convívio comum2,
por exemplo, as regras que proíbem o uso de determinado tipo de
vocabulário, porque não adequado em princípio a uma situação.
Para ficar em um exemplo simplório: se alguém faz uso de palavreado
chulo em sala de aula, por exemplo, está cometendo atitude imoral.
Porém, não é qualquer palavreado chulo dito em sala de aula que é
imoral. Imagine que na sala de aula, está-se estudando as peças de
Shakespeare – que foi, estava esperando que eu mencionasse as
canções de Valesca Popozuda para dar exemplo de palavreado chulo? É
claro que não, o leitor já há de ter lido Shakespeare – ou os
livros de Hemingway ou de Bataille, ou, para ficarmos em nosso país,
as peças de teatro de Nelson Rodrigues ou do grupo Teatro Oficina.
Nesse caso deveríamos acusar o professor de imoral por utilizar de
palavra chula? Deveríamos censurar a leitura de Hesíodo porque ele fala de
coco, xixi e gala em seu O trabalho e os dias?
O moralista que também
é um interpretador não está preocupado com o conteúdo, mas com a
forma. Se ele consegue identificar a forma do que ele considera
errado, a coisa está condenada. É por isso que Melgaard não
escapou dele. O que mais poderia significar uma mulher negra em
formato de cadeira? O moralista interpretador já tem a resposta:
racismo.
Não importa retrucar a
ele que quando a arte é ofensiva ela também é, em grande medida,
uma sátira a injustiças. Também não importa dizer a ele que a
cultura mais erudita está repleta do que ele considera imoral e feio. Ele
não tem acesso a ela, apesar de, em casos não tão raros, sua prateleira de
livros estar cheia de volumes. Ele não lê livros, ele lê manuais.
Em uma pergunta de múltipla escolha, ele só saberia uma e única
resposta: bala de borracha!
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1No
original: “In reality, it is not about racism as such. It is about
the clumsy exposure of a strange work of art to popular culture in a
way that begs to be misunderstood" in Jonathan Jones, Why there's nothing racist about the 'racist chair', The Guardian, disponível em: http://www.theguardian.com/artanddesign/jonathanjonesblog/2014/jan/21/racist-chair-bjarne-melgaard-dasha-zhukova#_ Acesso em: 25/01/2014.
2Não
faço distinção aqui entre moral e ética. Para uns autores a
diferença está em que a primeira é do âmbito da conduta privada,
e a segunda é do âmbito da conduta pública. Para um autor que
explora melhor essa diferença, ver GHIRALDELLI Jr., Paulo.
Filosofia política para educadores: democracia e direito de
minorias. São Paulo: Manole, 2013, especialmente o capítulo sobre
Moralismo.
2 comentários:
O título impetuoso e criativo condiz muito bem com o desenvolvido no texto, escrito de forma clara e compreensível.
Obrigado, pai. Vou me esmerando na arte da escrita.
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