quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Gabi



Eu poderia iniciar este conto tentando fazer algum suspense com o nome que apresento no título, tal qual fez Machado de Assis no seu Miss Dollar. Mas, ao citar Machado, o leitor mais atento já deve tê-lo lido e já sabe que este título daqui, tal qual o dele, nomeia uma adorável cadela. Não da aristocrática raça galga, mas da aburguesada cocker. E para proletarizar um pouco, uma mestiçada, ocreada e desgrenhada cocker spaniel – a Gabi.

Não é este aqui um conto que tenha algum enredo digno de um Machado – cito-o mesmo só para dar alguma credibilidade, ainda que tangencial, a isto aqui, o que quer que isto seja. Ausente de gênio literário, isto aqui é sem pretensão um tributo a uma das companheiras de vida minha. Uma a quem eu não dei o devido valor quando ainda partilhava-lhe das sendas. Não pretensamente, para emprestar mais pompa, desejo lhe fazer também uma oração – senão à moda de, ao menos mimeticamente a Péricles. Isto para não outra coisa que para tentar redimir a mim mesmo, ainda que impossível de antemão.

Péricles para consolar os pais, mulheres e filhos dos soldados mortos na Guerra, discursou para eles não no sentido de exaltar as proezas individuais de cada guerreiro, mas pela via de exaltar a qualidade dos cidadãos atenienses como um todo. Na exaltação dos cidadãos, exaltava-se a pátria, fazendo com que a morte ficasse diminuída em vista a magnanimidade da causa a defender. Exaltarei o que os cidadãos da Atenas canina representam focando num ponto que também é central na narrativa periclínea: a bravura.

Quanto a esta qualidade, os cães aproximam-se de nós (tudo bem: somente dos melhores entre nós) não pelo fato de serem temerários – estultos que não pensam antes de agir, como é a opinião de muitos –, mas antes por se doarem de tal forma que facilmente abandonariam a vida por alguém que amam. Lembro de um caso da Gabi que me marcou profundamente e que me faz até hoje desejar o autoflagelo. Confesso: na ocasião fui de uma covardia sem volta e ainda hei de expiar meus pecados nesta vida ou em outra por lhe ter infligido tamanho mal. Explico.

Sua filha tinha acabado de parir a primeira ninhada; não lembro quantos filhotes. Mãe de primeira viagem – vejam só o tipo de inaptidão humana que se estende aos animais –, à cadela faltava o instinto de maternidade: não se aproximava das crias para dar-lhes de mamar. Gabi, já então bem mais experiente, dado o fato de já haver realizado pelo menos umas três ninhadas anteriores, aproximou-se, altiva, dos cachorrinhos e, com uma destreza natural, envolveu-os sob seu corpo de modo que eles, sentindo-lhe o calor, rapidamente se dirigiram um para cada peito seu, a fim de mamar. Repare que Gabi não os houvera dado à luz, no entanto era ela quem lhes estava dando o alimento. De que maneira? – o leitor perguntará, e eu responderei – Não faço ideia! Verdade era que os cachorrinhos, depois de algum momento, sentiram-se satisfeitos e puseram-se a cochilar ali mesmo.

Baby – havia me esquecido de nomear sua filha, perdoe-me – deixou essa prática se repetir com certa frequência não mais que dois dias; ao fim do segundo, ensaiou sua primeira mamada, aproveitando que Gabi houvera saído brevemente para fazer o que tinha que fazer no quintal. Baby até que se saía bem. Quando Gabi voltou e se deparou com aquela cena, pôs-se a, de longe, olhar aquilo por alguns segundos. Não satisfeita, ensaiou uma aproximação, no que Baby torceu a boca e rosnou, mostrando de leve os dentes. Gabi recuou, sem porém sair do recinto. Limitou-se a rodar sobre seu próprio eixo e deitar a uns dois metros de onde estavam Baby e seus filhotes.

A última frase do parágrafo acima é propositalmente ambígua: filhotes de quem? De fato eram de Baby; de direito, porém, Gabi certamente possuía argumentos para apresentar em qualquer corte cível em defesa de sua maternidade. Porém, dado que cães não possuem o mesmo estatuto jurídico que nós outros – animais conscientes de nossas responsabilidades que somos –, a querela tinha que ser resolvida ali mesmo. E dado também que conversa entre elas não havia, um acordo estava fora de cogitação. Em casos assim o melhor a se fazer é chamar um árbitro. Sobrou para mim.

Gabi me encarava com aqueles olhos de Gato de Botas e chorava de modo a amolecer até mesmo um coração feito o meu. Baby me olhava com olhos de “Você não vai cair nessa, né? Os filhotes são meus!” – eu não sabia o que fazer. Fiz o mais aconselhável nestes casos em que não se sabe o que fazer, ou seja, nada. Deixei ambas partilharem do mesmo quarto. Afinal, tudo que Gabi queria era a companhia dos filhotes, e tudo que Baby queria era ficar junto de seus filhos. Fui-me dali, pensando ter tomado a providência mais adequada, não sem antes recomendar à Gabi que respeitasse o momento de Baby e que não avançasse em atitudes que não lhe eram permitidas; que se resignasse à função de avó e que babasse os netos à distância, ao menos neste período de lactação, depois ela os podia mimar o quanto quisesse, oras! - “Entendeu, Gabi?”.

O leitor já imagina no que deu minha resolução. As duas brigaram, ou melhor, Baby arrasou Gabi ao chão, de modo que ela saiu de lá bem machucada, e eu não diria só fisicamente. Para evitar novos combates, afastei Gabi dali e, por meio de uma cancela de madeira, evitei que ela chegasse onde estavam sua filha e seus netos. Mas não adiantou. Seu corpo estava impossibilitado. Mas não seus lamentos. Gabi chorava feito uma criança que não aceita que lhe tirem o ursinho de pelúcia favorito. E chorava, e chorava, e chorava. Suas súplicas eram tais que, com o passar do tempo, deixaram de inspirar dó e passaram a inspirar um certo lado irascível da alma. Meu quarto fica relativamente longe de onde estavam Gabi e seus lamentos, porém eles eram de tal forma agudos que perfuravam qualquer obstáculo. Eu a tirava de lá, e ela voltava. Trancava-a em outro recinto e seus grunhidos aumentavam. Pedia-lhe que fizesse silêncio, com certa grosseria ameaçadora até, e ela, depois de me olhar com aqueles olhos de “Você tá brincando que eu vou obedecer ao seu comando, né? Isso aqui é bem mais forte do que eu e você queiramos, e você sabe!”. Tentei dar de ombros. Mas o leitor já sabe, a essa altura, que não foi isso que fiz por último.

Sim, e isto merece um parágrafo solitário, posto que o que eu falarei é infame: eu fiz com Gabi o que Gabi jamais faria comigo: usei de violência física. Alias, para que florear? Estou confessando uma covardia, um pecado mortal entre amigos, uma deslealdade: eu bati em Gabi de tal forma que ela não mais se lamentou desde então.

Depois do acontecido, ela já não mais reclamava para si o direito sobre os filhos e transigiu, de modo que Baby agora podia cuidar de sua prole em paz. Porém, depois daquilo, eu me senti mal de tal forma que não pude exprimir a mim mesmo, até ler estas palavras, anos depois, no romance de J. M. Coetzee, Disgrace:
No animal will accept the justice of being punished for following its instincts. What is ignoble is that, after a while, the poor animal begin to hate its own nature. It no longer needs to be beaten. It's ready to punish itself. At that point it is better to shoot it.
O leitor, assim como adivinhou no início sobre o que seria este conto, também já sabe o fim de Gabi: igual ao de Miss Dollar - “saindo um dia à rua foi pisada por um carro; faleceu pouco tempo depois.” Mas, ao contrário de Margarida, sua dona, que não pode evitar reter algumas lágrimas, eu mantive os olhos e o coração secos.

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P.S. Perdão, Gabi, por havê-la punido por simplesmente querer cuidar da prole de sua cria. Perdão por não haver entendido a sua inevitável phýsis. Eu me curvo diante de ti à espera de perdão. Não o seu, que eu tenho certeza que já tenho. O meu, que, ainda que vir, não será maior que minha culpa.

Um comentário:

Augusto Lima disse...

Grandes homens são assim por terem uma sensibilidade maior... e, por conseguinte, uma responsabilidade de igual tamanho.