sábado, 8 de fevereiro de 2014

Sheherazade tal qual



Há uma aparência de que a jornalista Rachel Sheherazade aprendeu com maestria a prática de incitação ao crime (art. 285, Código Penal Brasileiro). O seu último discurso polêmico na TV pode levar a crer que, de alegada vítima, ela passou a agente do tipo penal que tanto condenou tempos atrás. Mas não é isso que quero discutir. É outra coisa.

Sheherazade defendeu os justiceiros que amarraram o suposto bandido ao poste pelo pescoço, ao mesmo tempo que o desnudaram e o deixaram exposto nessa situação por tempo considerável – sem falar no pedaço cortado de sua orelha. Ataque compreensível e até misericordioso a um marginalzinho que já vinha aterrorizando a vizinhança há algum tempo, sem que a polícia tomasse providências – alguns diriam sem pestanejar. Muitos de nós, brasileiros, já presenciamos algo assim em nossas vizinhanças. Eu, quando morava em Manaus, já. A vizinhança onde fica a casa de minha mãe vira e meche sofre desse mau. Já pegaram um desses assaltantes, lá no Norte. Já o quase lincharam. Eu vibrei, óbvio. Alguém exatamente como ele já apontara uma arma para a cabeça de minha irmã, xingado-a de vagabunda e roubando-lhe o notebook, enquanto ela ia trabalhar de manhã cedo. Se fosse eu que tivesse encontrado o sujeito, não faria diferente do que fez minha vizinhança.

Sim, estou confessando um pecado, mesmo não sendo você, leitor, um padre. Para mim é uma questão de honestidade intelectual. E diria mais: eu desconfio enormemente de quem, passando pela situação que passei, com um ente querido, não houvesse pensado como eu. Alguém que não tivesse pensado como eu, provavelmente, seria uma pessoa que pouco ou nada tem de leal com os que lhe são queridos. Defender, do ponto de vista pessoal, o direito do “bandido”, em detrimento do da vítima, ainda mais quando esta é sua irmã, é uma aberração moral. Isso faz de mim alguém que é contra os direitos humanos?

Não.

Os únicos lugares em que eu irei escrever “direitos humanos” são aqui e no parágrafo anterior. Esse termo, de tão dito por gente que não faz ideia do que seja, já se desgastou ao extremo. Usarei, então, simplesmente a palavra Direito – no sentido mesmo de ordenamento jurídico, somado ao conjunto de instituições que o executam, criam e julgam. Por que esse termo é importante? Porque é ele que vai dizer o que eu devo fazer com o meu pensamento pessoal: levá-lo a cabo ou refreá-lo.

Vivo em algo que se chama sociedade e sob o jugo de algo que se chama Estado. Uma das explicações filosóficas do porquê eu me encontrar nesta situação é explicada pelo contratualismo. Há várias versões de contratualismo, mas é comum se dizer que, para quem defende essa narrativa, a sociedade surge da seguinte maneira. Em uma situação onde não há Estado, cada homem tem para si sua liberdade inteira. Acontece, porém, que é comum que haja toda sorte de conflito e de desentendimento entre eles, de modo que, na prática, nunca é possível usufruir sequer a ínfima parte dessa liberdade. Então, cansados de só viver no meio de temores e de encontrar inimigos por toda a parte; fatigados de uma liberdade cuja incerteza de conservação a torna inútil; os homens sacrificam parte de sua liberdade para gozar-lhe do restante que lhes sobra com mais segurança. Assim forma-se a soberania de uma nação, que consiste na soma das porções de liberdade sacrificadas ao bem geral. Surge, então, a figura do Estado, aquele que é encarregado pelas leis do depósito das liberdades e dos cuidados da administração. Uma vez criado, só ele pode tirar liberdades; os homens, uma vez sem parte de suas liberdades, esperam que os demais respeitem-lhes as posses do que eles ainda guardam de liberdade.

Nessa linha, o Estado é limitador em sua origem, portanto. Ele limita para poder garantir a liberdade, ainda que não inteira. Mas o que Sheherazade sugere é que tal Estado não existe e que o que reina é um estado de violência sem limite, tal qual o estado de natureza, condição pré-estatal do homem. Tendo isso como premissa é considerado legítimo o contra-ataque aos que ela chama de "bandidos”, não sendo o que os justiceiros fizeram nada mais que uma “legítima defesa coletiva”. Sheherazade acerta? Quase. Se não fosse por uma coisa...

O Brasil possui um Estado!

É o Estado Brasileiro, a quem também denominamos de um Estado Democrático de Direito, que me diz o que devo fazer com a posição pessoal que confessei acima. É de acordo com ele que, não mais pessoalmente, mas publicamente, não defendo qualquer linchamento a quem quer que seja, inocente ou culpado. É porque vivo em um Estado, ainda que em grande parte omisso, que sei que minha lógica pessoal, uma vez aplicada de forma geral, só irá se voltar contra mim. É esse mesmo Estado que me faz distinguir entre justiça e vingança. Será que Sheherazade, então, estaria defendendo uma espécie de volta da Lei de Talião?

De novo: não.

Na letra da Bíblia, a lex talionis seria o seguinte:
Mas, se houver dano grave, então darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe (Êx. 21.23-25)
É o famoso olho por olho, dente por dente. Porém, o que não atentamos quando falamos desse preceito normativo é que ele já carrega em si um tanto de civilização. O conceito jurídico primitivo expresso é o da justa reciprocidade do crime e da pena. Etimologicamente falando, lex é lei, e talis é tal, de tal tipo; de onde se tira a seguinte ideia: tal crime, tal qual pena. Não nos esqueçamos também que a primeira notícia escrita que temos desse preceito é o Código de Hamurabi, lei escrita mais antiga (ou uma das mais antigas) de que se tem notícia. Nela, já havia um poder centralizado, portanto é possível pensar que não houve uma simples transposição do que era oral, consuetudinário para algo escrito. Talião guarda uma certa ideia de equilíbrio baseado na ideia de retribuição equitativa do dano sofrido, coisa completamente diferente do que conhecemos por vingança pessoal. Quando há vingança pessoal, não há retribuição equitativa, o que há é justamente o exagero na retribuição. Se alguém nos tira um bem, tiramos-lhe dois bens; se nos insultam, quebramos-lhe a perna; se matam alguém querido nosso, assassinamos-lhe toda a família – eis a lógica da vingança pessoal. Ela nunca é contida, sabemos.

É pelo que expus no parágrafo acima que não posso dizer que Sheherazade esteja defendendo a Lei de Talião. O que ela parece defender é algo mais primitivo, algo mais afeito à vingança pessoal mesmo. Não podemos dizer que o que os justiceiros fizeram com o suposto bandido foi uma “legítima defesa social”, nas palavras da jornalista. Legítima defesa pressupõe moderação. O que fizeram foi tortura e humilhação pública – noções que não casam com moderação. O bandido suposto já estava detido, não havia porque – exceto pelo desejo de vingança pessoal – mantê-lo do modo como ele foi mantido. Defender isso é defender um estado de coisas em que não existe Estado; é não defender a volta da segurança pública. Sheherazade fica, então, como já sabemos: tal qual sempre foi. E não faltarão aqueles que a queiram seguir. Tal qual.

Um comentário:

Augusto Lima disse...

Você distinguiu muito bem a reação pessoal da reação legal, esta amparada pelo Estado. Infelizmente, por possuirmos forte instinto de matilha, facilmente nos deixamos influenciar por quem fala mais alto ou atiça com facilidade. Realmente precisamos meditar sobre isso: até que ponto estamos sendo conduzidos por ações e falsos discursos como esse da Sheherazade, entre outras pseudos personalidades.