domingo, 16 de fevereiro de 2014

Salamanca




Já imaginou que você pode estar agora em um álbum de família de alguém que não conhece, em um país que você não sabe sequer pronunciar o nome em sua língua nativa? Pois é o que acontece quando você está caminhando pela rua e, de repente, flash! – sua imagem é capturada sem querer pela câmera de um turista como parte do pano de fundo de uma foto.

Agora imagina o seguinte.

Você não enxerga nada, tudo escuro, só escuta ruídos. Você está em um lugar quente, alimentado por uma lareira talvez. Possivelmente fora dali esteja um frio seco de rachar os lábios molhados depois de um beijo. Há vozes que falam em um idioma consonantal que você não distingue uma escarrada de um eu te amo. Mas a tonalidade não é cortante, tampouco ríspida. Vez ou outra, você ouve uma risada gostosa daquelas de avó quase póstuma e outra daquelas de adolescente que põe a mão na frente da boca quando vai falar. Um tipo de inocência se faz audível ali.

Em algum momento você percebe que há uma constância nos ruídos emitidos, há um som que se repete em seguida de outro: algo que pode ser um Olha esta!, seguido de um Que bonito! Ai, os sons vão ficando cada vez mais familiares e lhe revelam aos poucos que a situação pode ser a de uma família folheando o álbum de fotos de um parente recém chegado de uma viagem de turismo.

Ainda está tudo escuro e você nada enxerga.

Estão folheando o álbum e sendo apresentados ao lugar que o parente até poucos dias estivera. Este parente os vai descrevendo tudo: a Igreja gótica ao lado da Catedral medieval – e vira-se a página; a rua renascentista que faz ligação à praça principal construída no séc. XVIII – e vira-se a página; a ponte romana construída para o exército de César – e vira-se a página; a rua que não tem nada de especial, mas que simplesmente, ao andarem, o parente e sua esposa resolveram sacar uma foto – ai, por um momento, a página não é virada.

O escuro dá lugar à claridade. Em um fiat, você começa a enxergar o que está acontecendo.

A rua é uma ladeira íngreme. A esposa estava-lhe no final, fazendo pose. E você estava descendo aquele beco quando flash! – sua imagem se reteve justo ao lado esquerdo da mulher.

Na casa, ao avistar você na foto, a mulher se recorda de tudo o que se passou naquela cidade turística. Tudo o que nunca contara a ninguém. Tudo o que ela fizera questão de esquecer, posto que demasiado perigoso para a sua vida feliz, burguesuda e mediosa de país desenvolvido.

Você, de dentro da foto, olha toda aquela família que o está observando de volta. Talvez não a você, mas ao cenário. Não importa. Não dura muito, uma vez que a paisagem ali não é artística, muito menos monumental. Porém dura o bastante para que os seus olhos encontrem os dela e, por segundos, um lapso se abra no espaço e no tempo e toda a história que vocês viveram aconteça novamente…

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