terça-feira, 23 de junho de 2015

Viviany Beleboni não representa


Viviany Beleboni, a atriz que realizou uma performance em que aparecia crucificada, na última parada gay, participou ontem do Hora da Coruja, programa de filosofia na FlixTV, conduzido pelos amigos Francielle Chies e Paulo Ghiraldelli Jr., ocasião em que lhe fiz uma pergunta. Perguntei-lhe sobre o que ela achava do caráter político da parada gay, do modo como se manifestavam politicamente a comunidade LGBT.

O que motivou minha pergunta foi o fato de, mais cedo, ali mesmo, e em outras entrevistas, Viviany ter alegado que não concordava com o modo com que estão, principalmente alguns políticos difamadores, vinculando sua imagem à de outros manifestantes mais exaltados.

Sabe-se que o pastor deputado Marcos Feliciano divulgou uma montagem em que aparecem as imagens de Viviany crucificada em um quadro, junto a outros quadros em que aparecem outros manifestantes executando performances mais agressivas, uma delas é a de enfiar um objeto no cu, outra é a de fumar maconha. Sabe-se também que já foi desmentido que os quadrantes retratando os heterogêneos manifestantes não são todos da parada gay. (O leitor pode ver a reportagem em que ocorre o desmonte da farsa aqui). Porém, por que incomoda Viviany o fato de vincular sua imagem a outras manifestações?

Quando participei dos protestos de junho de 2013, na Av. Rio Branco, no Rio de Janeiro, um manifestante (outros havia, mas com este eu cheguei a ter uma conversa direta) tomou para si o dever político de, no meio dos outros que só se preocupavam em levantar cartazes de mais variados vieses, inclusive humorísticos – o que era o meu caso, você pode ver uma foto minha da época aqui –, de conscientizar, fazer com que aquilo não virasse uma micareta, uma festa a céu aberto. Na ocasião o considerei sisudo demais, porque o fato de ele estar ali monitorando a alegria alheia me pareceu excesso de politização. Por excesso politização, aqui, entendo os ativistas que só enxergam um lado da luta, como não poderia ser diferente, e que além disso querem eliminar o outro lado, não conviver harmoniosamente com ele. Continuei meu protesto bem-humorado, junto com dois outros amigos, a Patrícia e o Thiago, e esqueci do carrancudo.

De todas as minorias, sempre encontrei mais sentido no tipo de protesto dos gays que dos negros e das mulheres, por exemplo. Os gays foram os únicos que, nessa luta, conseguiram transformar grande parte dos adjetivos pejorativos que lhes impunham em adjetivos não pejorativos. E o fizeram com humor! “Viado”, “bixa” e “bofe” viraram, na boca de pessoas bem-humoradas, adjetivos carinhosos, familiarmente admoestadores e lisonjeantes, respectivamente (no Rio de Janeiro, viado virou sinônimo de “brother”, “cara”, “mano” – curiosamente, com a mesma função que exerce a palavra “macho”, no Ceará). Os gays, nesse sentido, escapam daquilo que após Nietzsche conhecemos como ressentimento, o principal combustível de um específico tipo de moral, a moral do fraco ou do escravo.

O ressentimento pode ser compreendido como um caldeirão de ódio insatisfeito que é constantemente mexido por um cozinheiro que é espezinhado, mas que não tem condições de revidar; sua única alternativa é olhar para o caldeirão e enxergar ali, como uma bruxa que vê o futuro, tudo o que ele faria com seu inimigo, caso tivesse força para tal. Resultado disso é que o ressentido não esquece, ele se recorda o tempo todo, porque sua atividade não é outra que não a de mexer e remexer o caldeirão. O cozinheiro, caso generalizado, é o modelo para um tipo de comportamento que, para sobreviver – afinal, nem só de ódio vive o homem –, tem que de alguma forma transformar esse ódio, mesmo que não deliberadamente.

O cozinheiro de Nietzsche é o cristão. O cristão, considerado enquanto tipo e não como indivíduo, aproxima-se do cozinheiro quando é espezinhado e não tem como revidar. Tendo sua base histórica em Roma, para sobreviver sua moral não poderia ser outra se não a de transformar o espezinhamento próprio, isto é, transformar tudo aquilo que é falta, impotência e inaptidão em seu oposto. No cristão, falta de sexo, vira pureza; fraqueza, bondade; submissão a quem se odeia, obediência; não ser capaz de se vingar, perdão. Porém, mesmo empreendendo essa transformação, outra característica da moral do escravo é negar, dizer não – justamente porque não pode dizer sim. O ressentido, isto é, o fraco é aquele que não age, apenas reage. Agir, na conta de Nietzsche, é a atividade de quem é potente, só pessoas aptas agem; inaptos, esperam a ocasião certa, confabulam, tramam e só depois da ação é que passam a (re)agir.

A reação, nesse sentido específico, foi algo de que os gays, enquanto manifestantes políticos, conseguiram se manter afastados de certa forma, diferente das mulheres e dos negros. O humor é a marca principal que confirma essa tese. Na conta da narrativa nietzschiana, só o forte é capaz do humor; o fraco é demasiado carrancudo, está ocupado de mais corroendo o ódio interno para rir de si próprio. A tipologia mais extrema do ativista negro é aquela que, até mesmo quando ri de si própria, só permite o riso depois de um monitoramento, para ver se a risada não machuca ninguém – como se fosse possível controlar isso (fiz um texto respondendo a um posicionamento assim de um ativista negro, e você pode lê-lo aqui).

O lado contraprodutivo do riso, porém, é a carnavalização ou, para inventar um neologismo, uma coringalização – fazendo referência ao Coringa do Batman, especialmente ao Coringa de Heath Ledger, no filme Batman, cavaleiro das trevas (Christopher Nolan, 2008). O Coringa, nessa conta, é aquele que só quer rir de tudo e instaurar o caos, a ausência de objetivos. A graça de tudo está em que tudo que se pretende sério, porque persegue alguma causa, na verdade, não tem causa nenhuma a seguir. É exatamente isso que Viviany vê na parada gay atual, a coringalização, e com ela o risco iminente de se realizar o que tanto quer o Coringa: a sensação de que nenhuma causa deve ser seguida e que não vale mais a pena lutar por algo. Foi isso que Viviany me respondeu. Seu objetivo, com a performance, foi fazer com que o excesso de riso parasse de causar a sensação de que não se deve mais lutar por alguma causa.

Não importa o quanto políticos e religiosos tenham se sentido chocados com a performance de Viviany, ela não foi chocante. Não há um sinal sequer, na performance inteira, de desrespeito por parte de Viviany, a não ser que se considere chocante um travesti fazer o papel de Cristo crucificado na parada gay, como se houvesse ocasião mais pia que outra para fazer o papel de Cristo. Vou mais longe ainda e digo (contrariando inclusive a intenção de Viviany) que a performance não foi sequer uma “releitura contemporânea” da crucificação, porque não houve representação, mas sim presentação. Isto é que causou o tão alegado choque: Viviany presentificou Cristo, que apareceu, para o ódio dos auto-alegados castos, na rua, na parada gay, em vez de na Igreja ou no palanque da bancada evangélica do Congresso Nacional.



Nenhum comentário: