segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Impossível exprimir em palavras





Muitos de nós endossamos tacitamente a ideia segundo a qual a linguagem é incapaz de abarcar a realidade. Quando dizemos, por exemplo, “Tenho um sentimento aqui no peito que é impossível de se exprimir em palavras”, o que estamos a querer dizer é que “As palavras sempre serão insuficientes para dar conta da realidade”. Quando percebemos isso, nossa defesa deixa de ser tácita e passa a ser expressa: a realidade é intraduzível.

Temos, inclusive, uma figura de linguagem para expressar essa incapacidade intrínseca para alguns casos: catacrese. A catacrese é a figura de linguagem que consiste na utilização de uma palavra ou expressão que não descreve com exatidão o que se quer expressar, exatamente porque não há outra palavra apropriada para tal. Pé da mesa, vinagre de maçã, dente de alho, cabeça de alfinete são exemplos. Nesse sentido, o processo da catacrese consiste em aplicar uma metáfora no uso cotidiano, de modo tão recorrente, que chega uma hora que esquecemos que estamos utilizando uma metáfora.

Uma metáfora é uma transposição do sentido próprio de algo ao seu sentido figurado. Se designo um objeto ou uma qualidade mediante uma palavra que designa outro objeto ou qualidade, utilizo uma metáfora.

Há, no uso da metáfora, uma não exatidão intrínseca. Descrevo um indivíduo via um nome que não é o seu e que, no máximo, só apresenta semelhança parcial consigo. Para ficar no âmbito da cultura de massas, uma série célebre de metáforas é a utilizada pelo já falecido cantor Wando: “você é luz, é raio, estrela e luar/Manhã de sol/ Meu iaia meu ioio”.

Seja lá quem for que Wando está a descrever, não se trata literalmente de alguém que é pura luz, mas de alguém que, à semelhança dos astros descritos, apresenta um brilho figurativo aos olhos do eu lírico da canção. E esse, claro, é apenas um aspecto do indivíduo que se está a descrever. Muitos outros, por suposto, estão sendo deixados de fora. Mas essa é a maldição de nomear algo, por mais que seja através de um recurso tão carregado de sentidos como é a metáfora. 

Há mesmo quem diga que a linguagem inteira se comporta assim: ao nomear a realidade ou a experiência, nada mais fazemos que etiquetar nomes socialmente convencionados, com significados igualmente arbitrários, de modo que nada, intrinsecamente, significa aquilo que dizemos significar. O que acontece é que, de tanto utilizar esses nomes, esquecemos que eles originalmente são apenas metáforas e, agora, tomamos todos eles como se fossem os nomes “verdadeiros” que a realidade e a experiência possuem.

Acreditamos, alguns de nós, que denunciar essa falha constitutiva da linguagem significa dar um passo a mais na batalha que é conseguir chegar à realidade, sem ilusões. Consideramos que a liberdade absoluta, sem constrangimentos de qualquer ordem, está ao alcance. Nem que para isso tenhamos que nos livrar à força de todas as amarras que nos prendem. Ainda que não à força, ao menos com o poder da mente. 

Mente, no entanto, é aquilo que organiza a experiência. Por isso, a mente precisa ser formada de categorias organizadoras. E uma maneira de entender essas categorias organizadoras é entendê-las como uma linguagem. Afinal, classificamos o mundo através da linguagem. É por isso que, se consideramos que a linguagem é enganadora, assumimos ao menos um pressuposto: o de que é possível apreender a realidade sem linguagem e, portanto, sem categorias.

Como saber, no entanto, o que é a realidade sem categorias organizadoras? Há como ter acesso à realidade sem antes categorizá-la? Se sim, fica aqui o convite para que você ensaie uma resposta. Só tome o cuidado de não utilizar palavras. Caso o faça, você já estará fazendo uso de categorias.


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