quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Seja feliz. Você é livre



Ruth Manus, em "A geração que encontrou o sucesso no pedido de demissão", faz uma bela descrição das desventuras do que consideramos ser feliz, desde nossos avós. Primeiro, casamento bem arranjado. Depois, sucesso profissional. Agora, nem um, nem outro, mas aquilo que de mais particular houver em cada um. Não há princípios gerais de felicidade. A felicidade é individual. Carpe diem!

O texto é interessante porque tem como tese principal que cada um procure aquilo que lhe é mais particular. Porém, essa tese ela mesma não é particular, mas fruto do espírito de nosso tempo. O texto é gostoso de se ler, porque nos toca no íntimo. E só nos toca no íntimo porque partilhamos alguma coisa em comum. Nossa concepção de felicidade é moderna, demasiado moderna e é fruto de, ao menos, duas ficções difíceis de se livrar -- uma política, outra filosófica: o indivíduo e o sujeito.

O individuo é aquele que, em oposição à sociedade, não se confunde com o gosto da coletividade, nem pode ter seus direitos mais básicos usurpados pelo Estado. Quem nunca falou "Comecei a gostar de x, antes de x virar modinha"? Essa é uma frase típica de alguém que quer afirmar sua individualidade, frente ao gosto popular. Em outras palavras, tanto mais se é indivíduo quanto mais se consegue encontrar características próprias não mais partilhadas por ninguém. No mesmo passo, quem nunca disse que tem direito à dizer o que quiser porque ninguém manda naquilo que penso? O direito de livre expressão é o direito individual por excelência. Desde o séc. XVIII, é usado como ferramenta contra os desmandos dos monarcas absolutos. Filho da Era Moderna, ganhou corpo com a progressiva abolição da figura do soberano que tudo podia e que, sozinho, encarnava o poder político ("O Estado sou eu", disse Luís XIV).

O sujeito, por sua vez, é aquele que se define em oposição ao objeto. Este é, de modo geral, o mundo. Aquele é, de modo geral, cada um de nós, desde que sejamos conscientes de nossos pensamentos e responsáveis por nossos atos. Consciência de si e responsabilidade pelas próprias ações -- eis dois elementos que estão não base de nossa concepção do que é ser humano e do que é ser pessoa. É com base nela que punimos criminosos. Afinal de contas, criminosos são criminosos, porque escolhem o crime. E se escolhem (ou seja, são conscientes) do crime, então também são por ele responsáveis. Esqueça condições biológicas, psicológicas e sociais. Nada é mais decisivo para a conduta de uma pessoa que a consciência própria dessa pessoa.

E assim, povoada não por comunidades, mas por indivíduos e sujeitos é a modernidade. Se a felicidade é um atributo de tais seres, então a felicidade é tanto mais alcançável quanto mais for subjetiva e individual. Não há princípio comum possível. "Faz o que tu queres, pois é tudo da lei", disse Raul Seixas. Se nossos avós queriam casamentos perfeitos, e nossos pais, carreiras bem-sucedidas, nós, por nosso turno, podemos ter aquilo que quisermos. Somos livres.

Tal liberdade, porém, traz à lembrança a metáfora que Kant faz uso para ilustrar por que Platão abandonou o mundo dos sentidos na tentativa de evitar os limites tão estreitos impostos ao entendimento: "A leve pomba, que em seu voo livre corta o ar cuja resistência sente, poderia formar a impressão de que as coisas lhe seriam bem mais favoráveis no espaço sem ar." A pomba não repara, entretanto, que, em seus esforços sem qualquer obstáculo, não avança um centímetro sequer. Não encontrou resistência alguma que lhe servisse de suporte para que conseguisse se movimentar.

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