terça-feira, 10 de agosto de 2010

Cota racial como ação afirmativa para os olhos da sociedade



As ações afirmativas, como atividades que concretizam direitos das mulheres e das minorias, são um consenso formal em nosso País. Digo formal já que nenhuma autoridade pública, mesmo contestando aplicações de tais ações, opõe-se-lhes de forma solene. O que acontece é que o debate a respeito de como implantar tais políticas não se desenvolve de forma tão consensual assim. Particularizando esse tema, tomo a discussão a respeito da cota racial em Universidades Públicas. Ali, a discussão é tomada sob pontos de partida equivocados.

Tratarei neste texto do erro que se dá em duas linhas de raciocínio predominantes em relação à cota étnica: as que a consideram a) como política educacional e as que o fazem b) como política social. Os primeiros argumentam que o acesso de grupos étnicos às instituições públicas de ensino superior é limitado e, por isso, precisa ser mudado como forma de reparação histórica. Os segundos empenham-se pela conversão da política de cotas em política social, sob o argumento de que a limitação ao acesso ao ensino público superior se dá por uma causa econômica, não étnica.

1.

Estes últimos[1] iniciaram uma pugna judicial, ainda corrente, peticionando ao Supremo Tribunal Federal (STF), de forma a contestar os critérios de seleção dos cotistas na Universidade de Brasília (UnB). Entretanto, Não é no mérito desse pedido que está a sua intenção, mas nos argumentos usados para fundamentar sua causa. Uma das teses é a de que é “menos lesivo aos direitos fundamentais”[2], ao invés de cotas étnicas, o uso de cotas com referência na capacidade econômica. Dessa forma, o acesso à Universidade Pública se daria sem detrimento de grupos, desde que passassem pelo crivo da baixa renda. A base usada é que seria injusto favorecer uma etnia, uma vez que o real motivo do problema seria econômico.

É a partir dai que esse tipo de argumento se desenvolve na direção de que a política de cotas passe a ser política social. Acontece que ou quem argumenta nesse sentido não sabe o que é política social ou está agindo de forma ideológica e, o que é pior, de má-fé.

Não adianta colocar o pobre na universidade via sistema de cotas e dizer que se trata de política social. Esta, pelo nome e pelo histórico, é um conjunto universalizante de medidas que visa a melhoria da sociedade como um todo. Do modo como é colocada, não é mais que um paliativo. Melhoria de infra-estrutura; criação das leis trabalhistas, consumeristas e da própria Constituição Federal; melhor gerência dos recursos destinados à educação, todas essas medidas são exemplos de ações sociais. Quando uma política não se faz nessa linha ela não é social, portanto quando alguém faz apologia de alguma ação que não melhore o todo está agindo de forma ideológica, ou seja, de modo a ocultar a real intenção daquela atividade. Isso pode se dar por ignorância ou por má-fé. Não se sabe onde aqueles que aceitam essa visão se localizam.

2.

No caso dos primeiros, eles argumentam que cota étnica é política educacional. É necessário – dizem – combater a ausência de determinadas etnias nos espaços públicos de nível superior. Um argumento tentador. Principalmente quando sacado do argumento da justiça distributiva de Aristóteles[3]. Porém, o fundamento dessa tomada de decisão, se levado às últimas consequências, só nutriria o problema. O fundamento é o da injustiça histórica, aliada a uma espécie de vingança tardia.

Essa lógica é interessantíssima. Mudar a sociedade, reparar as injustiças históricas cometidas é o gol que muita gente deseja converter. Quando partimos da linha que diz que devemos tratar desigualmente os desiguais (Aristóteles), tudo parece se encaixar perfeitamente. Não desejo apreciar este mérito, ou seja, a incontrovérsia da aplicação do princípio da isonomia e se ele, de modo efetivo, deve ser aplicado nesse caso. O que me chama atenção é o segundo ponto argumentativo: a vendeta histórica.

O que não falta são propagandas no sentido de dizer que cota étnica é reparação histórica. A impressão passada é semelhante a esta metáfora: é necessária uma pena, e esta consiste em que aos brancos cabe arranjar um e outro quarto na casa grande para abrigar parte dos negros da senzala, de modo a diminuir-lhes o ânimo revoltoso. Não argumento no sentido de legitimar práticas abomináveis do passado; é necessário, porém, rever as ferramentas usadas para o combate ao problema que colocamos em questão.

O obstáculo, nesse caso, que todos queremos superar é a discriminação étnica. Então essa perpetuada contenda de discursar a necessidade de uma reparação, aos moldes do que vem sendo feito, não leva ao fim desejado. Desde o Iluminismo (com Cesare Beccaria à frente), nem o Direito Penal funciona mais desse modo. Em uma democracia que se pretende social e liberal, não há mais caminho profícuo nesse sentido.

Além disso, voltando à metáfora da casa grande e da senzala, cota étnica não é política educacional. Uma política educacional que consiste no fato de o branco arranjar determinado número de vagas para o negro não existe como tal. Política é uma série de medidas governamentais para a obtenção de um fim social. Se é política educacional, o fim é a educação da sociedade. Nesse caso, a educação ganha quase nada, posto que é ínfimo o esforço de melhorar o sistema educacional somente com medidas desse tipo. Cota étnica, portanto, não é política educacional.

Política educacional é o incentivo à ascensão da escola pública. Esta sim, desde que de boas qualidade e quantidade, estabeleceria o acesso universal ao ensino superior – que por pressuposto também seria de igual monta. Nesse caso, tratar-se-ia de uma verdadeira política educacional e, nas suas consequências mais frutíferas, de política social.

3.

Cota étnica não é nem política educacional nem política social, mas “política de luta pela integração e pela ampliação da visibilidade de uma cultura miscigenada para ela mesma.” (itálico meu). É desse modo que Paulo Ghiradelli Jr.[4], filósofo e especialista em filosofia da educação, transmite qual é a noção sob a qual devemos conduzir o entendimento das cotas étnicas. As consequências do argumento do filósofo são as mesmas do tópico frasal deste parágrafo. Cota étnica é, como o título deste texto sugere, ação afirmativa para os olhos da sociedade.

Uso essa alegoria para sugerir que a política de cotas serve sim, como afirmam os primeiros argumentadores acima (ver n° 2), para combater a ausência de certas etnias em espaços públicos de ensino superior, porém faço no sentido de fornecer, conforme o filósofo, uma fundamentação diferente da que eles usam. O papel para o qual a cota é estabelecida é o da integração. Ela serve como possibilitadora da visibilidade de quem não é usualmente percebido em determinado lugar. Seu fim é promover a transição de um conceito aquém (pré-conceito) para um conceito otimizado.

A função da cota étnica é análoga à da cota para mulheres nos partidos políticos. Semelhante às etnias historicamente desprivilegiadas no ensino superior brasileiro, as mulheres não tinham visibilidade nas esferas públicas de tomadas de decisão até pouco tempo. Na lei 12.034/2009 [5], criaram-se regras, dessa vez cogentes, para integrá-las. Lá, o pressuposto não foi o de que as mulheres são menos capazes que os homens, nem de que se tratasse de uma reparação histórica, muito menos de que isso fosse política social. O que se visou foi a integração.

A mulher não vinha sendo vista naquele espaço; vem passando a sê-lo. O conceito de político brasileiro é um conceito aquém. Quando se pensa em político brasileiro, à memória vem um político brasileiro homem e, portanto, trata-se de um conceito não otimizado, um pré-conceito.

Entendeu-se que neste País em que ambos os sexos possuem status de cidadão não é plausível que os procuradores dos direitos políticos sejam vistos de forma equivocada. O sistema de cotas foi estabelecido e vem cumprindo com o que se propôs. Atualmente temos três principais candidatos a presidente da república, duas são mulheres.

A cota visa ampliar o convívio e, dessa forma, mudar a mentalidade e o modo da sociedade ver a si própria. Qualquer outra destinação que se dê a esse tipo de medida é errônea e pode levar a consequências ineficazes. Como um objetivo a servir de horizonte, a cota na sistemática que argumento serve para a consolidação de uma identidade nacional mais próxima da Nação miscigenada que somos. O Brasil é multi-étnico – sabemos –, porém é preciso visualizar esta condição. Penso que a cota étnica como ação afirmativa para os olhos da sociedade é um bom caminho para isso.


Notas:

[1]
-->Representados nas pessoas do partido político Democratas (DEM) e dos respectivos amici curiae. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) n° 186, relatoria do Min. Ricardo Lewandowski.
-->
[2] Esta frase encontra-se no relatório da decisão de 31/07/09 (DJE n° 148, divulgado em 06/08/09), da mesma ADPF, do Min. Gilmar Mendes a respeito de uma medida cautelar peticionada pelo autor da ação.

[3]
--> Ética a Nicômaco. V, 3, 1131b, 10.
[4] GHIRALDELLI, Paulo. Cota racial é política, cota social é esmola. Disponível em www.ghiradelli.pro.br. Acesso em 06/07/10.

[5] É importante frisar que essa lei já existia desde 2007, entretanto, com a nova redação de 2009, o procedimento passou a ser obrigatório.

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