sexta-feira, 23 de julho de 2010

Aspectos do Direito nas sociedades orgânica e mecânica em Durkheim


Durkheim

Ao explicar a divisão social do trabalho, Durkheim afirma que ela, além de sua evidente face econômica, possui uma dimensão ética, que é capaz de criar um sentido de solidariedade entre as pessoas. Para explicar como isso acontece, ele asserta que quanto mais especializada as pessoas, mais necessidade elas tem umas das outras, posto que, uma vez que cada cidadão tende a ser um especialista só naquilo que faz, é necessário que precise da especialidade dos demais. A divisão social do trabalho tem uma característica ética porque ela supre carências essencialmente éticas, que são as faltas de ordem e de harmonia sociais. Dessa forma, Durkheim explica a sociedade, dividindo-a entre aquelas que tem ou não uma divisão social do trabalho desenvolvida ou, em outras palavras, quanto a solidariedade a que está submetida. Quando um tipo de sociedade possui desenvolvida tal divisão, trata-se de uma sociedade de solidariedade orgânica; quando não, está-se diante da solidariedade mecânica.

Para explicar melhor tais variedades, Durkheim as relaciona com o Direito, já que, segundo sua teoria, os tipos de solidariedade são reflexos dos tipos de sistema legal, e vice-e-versa. Dai a distinção entre o aparato legal que reprime e o que restitui. De acordo com o paradigma evolucionista, Durkheim afirma que a sociedade tende para uma crescente divisão social do trabalho, para uma crescente complexificação das relações interpessoais, isto é, a sociedade movimenta-se gradativamente de uma solidariedade mecânica para uma solidariedade orgânica. E esse processo é acompanhado por um movimento que vem de um Direito repressor – que pune aqueles que violam a coesão social – para um Direito restituidor – que se esforça em facilitar a cooperação e em retornar às pessoas o status anterior à ocorrência de uma violação normativa.

A característica essencial da sociedade mecânica é que sua coesão depende da semelhança entre seus membros, resultante das práticas e crenças comuns. Com tal homogeneidade instituída, o indivíduo não existe, o que há é o grupo.

Em tais organizações não há uma divisão do trabalho complexa; Durkheim, portanto, chama-as de organizações simples, “sociedades inferiores”. Nestas sociedades, o Direito é quase inteiramente penal, e, não raro, é o povo, por meio de uma reunião (a assembleia, no caso específico de determinadas sociedades antigas, tais quais a grega, a romana e a mesopotâmica pré-urbana), que administra a justiça.

A lógica durkheineana é esta: quanto mais uma civilização é primitiva, mais semelhanças entre seus membros, e quanto mais semelhanças entre seus membros, mais arraigada é a consciência coletiva. E toda vez que esta é ferida ocorre a punição, dai o tipo de Direito predominante nas sociedades mecânicas ser o repressivo. A consciência coletiva em sociedades primitivas é um fato social tão cogente – por causa da rudimentar divisão do trabalho – que um desvio de sua linha acarreta repressão. É sob essa égide que Durkheim explica o mais rudimentar tipo de direito.

Não é difícil constatar que ali princípios penais hoje consagrados, como o da bagatela e o da intervenção mínima, não existiam. O primeiro, que, em linhas gerais, professa que para uma conduta ser considerada crime há de ter uma relevância (social, política, econômica) significativa não era respeitado. Durkheim cita fatos que, embora não representassem riscos à sociedade, eram considerados crimes. Tocar um objeto tabu, um animal ou homem impuro, não satisfazer a fórmula ritual apresentavam regulamentação no direito repressivo dos povos antigos. Exemplos mais notórios, sob a luz da famigerada lei do talião, podem ser citados. O Código de Hamurábi, fruto da sociedade babilônica, prescrevia que, em determinadas circunstâncias, deveria ser cortada a mão de quem furtasse. Passagens bíblicas, escritas sob a égide das sociedades primitivas, prescrevem coisas análogas. Nesse contexto, ferida a consciência coletiva, a intervenção mínima nunca acontecia; justamente o seu contrário: todo é qualquer fato que se desviasse do normal era punido, não raro, com uma elevada desproporção entre o crime e a sanção.

Em uma sociedade desenvolvida, em que há uma complexa cadeia de relações interpessoais, a situação é diversa. Não que a consciência coletiva não exista nas “sociedades superiores”, a ponto de ali não existir um direito repressor, mas onde a divisão do trabalho é desenvolvida a homogeneidade social se dilui, e a solidariedade mecânica perde seus atributos essenciais. E, com eles, o Direito predominante passa do repressor para o restituidor.

É da gama de relações novas que se estabelecem com a divisão do trabalho que nasce a necessidade de um novo Direito, igualmente complexo. Com o advento da individualização, novas questões, que não as unicamente coletivas, como o crime, passam a ter relevância. Durkheim cita como exemplo a divisão do trabalho doméstica. Ali podemos encontrar vários fatos que passam a ter relevância jurídica: os direitos e deveres do casal, o estado em que ficam em caso de divórcio, a anulação do casamento, a responsabilidade pela guarda de um menor.

O Direito que restitui não visa a punição, mas, de modo geral, a restauração de relações para um status quo ante ao momento da transgressão. Ao contrário do anterior, por exemplo, esse tipo de Direito funciona através de um aparelho mais especializado (tribunais, magistrados, funcionários técnicos, etc) e de uma ramificação maior. Passam a existir capilaridades especializadas do Ordenamento, que regulam a posse das coisas – direito real –, que protegem as relações de trabalho – direito trabalhista –, que tutelam a partilha de bens de um de cujus – direito das sucessões –, e assim por diante.

Em termos modernos, guardadas as devidas exceções, poderíamos dizer que o Direito restituidor equivale ao Direito Civil, aquele ordenamento específico que regula as interações entre indivíduos e entre indivíduos e coisas. Por exemplo, um instrumento, por excelência, de cooperação social em uma sociedade de solidariedade orgânica é o contrato tutelado pelo área civilista. Isso acontece porque ele regula a interação entre os indivíduos tendo a capacidade de reuni-los, cada um com a sua especialidade, em um acordo mútuo, situação essencialmente orgânica.

Quanto mais primitiva uma sociedade, mais semelhança entre seus membros. Por contraste, membros de uma sociedade avançada – civilizada – são mais distinguíveis uns dos outros. Mais desenvolvida a divisão do trabalho, mais complexa a sociedade e mais complexo o ordenamento jurídico. Para o progressista Durkheim, esse é o caminho inexorável das sociedades e do Direito, que anda em linha paralela com a evolução da humanidade.

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