domingo, 20 de julho de 2014

Estaria Leonardo Boff sofrendo de uma séria doença?

Leonardo Boff


Há uma doença no meio intelectual que o torna motivo de zombaria. O efeito principal dessa moléstia é fazer com que um autor cite outro a fim de parecer mais erudito, sem se importar se o excerto utilizado se ajusta ao todo argumentativo de seu próprio texto ou se o fragmento referido não contraria o pensamento macro do pensador referenciado. Dentre os citados, Nietzsche consta com certa frequência, talvez devido ao caráter aforismático de sua obra, aberta à polissemia. Afetado pela doença e, por isso mesmo, querendo parecer inteligente, um autor cita Nietzsche. E é desse ato que surge o nome para a enfermidade inflamatória das faculdades mentais: a citanietzsche.

Sejamos condescendentes: não é preciso ser um intelectual medíocre para ser pego pela citanietzsche. É mesmo possível que um autor distinto contraia esse achaque sem se dar conta. Talvez isso tenha acontecido com Leonardo Boff. Em artigo publicado ontem (19/07), em seu Blog, intitulado Festejar: é afirmar a bondade da vida, Boff recorre a Nietzsche algumas vezes para avalizar sua tese que é a seguinte: “pelo fato de havermos perdido a jovialidade, grande parte de nossa cultura não sabe festejar”. As noções de festa e de jovialidade pretendem ser tributárias do pensamento de Nietzsche. Aliando isso ao título do artigo de Boff – em que se encontram outras duas palavras-chave, i.e., bondade e vida –, é possível ponderar se Nietzsche foi mesmo uma escolha sensata para acompanhar sua reflexão ou se estamos diante de mais um grandioso escritor acossado pela citanietzsche.

Boff entrelaça seu discurso da seguinte forma. Inicia por introduzir o efeito liberador que a festa traz em contraposição à fria racionalidade para inserir a noção que será um dos cernes de seu texto, a saber, a de que a festa tem um “sentido alimentador da vida onerosa que levamos”. Em outras palavras, a festa se justificaria por ser justamente o momento em que o homem pode “parar para respirar e, renovado, seguir adiante” por se constituir no lugar de onde “saímos mais fortes para enfrentar as exigências da vida”. A partir daí, Boff insere o problema: o “espírito da festa” precede a festa mesma, e é exatamente com esse “espírito”, formado principalmente de “jovialidade” e “alegria”, que não estamos mais sabendo lidar. Haveria então uma alegria da festa que estaria perdida, o que nos impediria de verdadeiramente festejar; ao invés, tudo o que fazemos é frivolidade, tais como exceder na comida e na bebida, falar palavrões grosseiros e produzir festas montadas como comércio. A maior crítica de Boff ao que ele chama de frivolidade é que, nas festas hoje organizadas, “há tudo menos alegria e jovialidade” e, em decorrência, “saímos delas vazios ou saturados quando seu sentido era de encher-nos de um sentido maior para levar avante a vida...”. Boff poderia parar por ai e não citar autor algum. Sua bagagem como teólogo respeitado daria aval para isso. Mas, não. Ele cita Nietzsche.

É a partir de dois livros que o teólogo faz uso do filósofo: Vontade de Potência (publicado postumamente) e Gaia Ciência (1882).

Do primeiro, o trecho citado é dividido em dois: “Para alegrar-se de alguma coisa, precisa-se dizer a todas as coisas: sejam bem-vindas” e “Se pudermos dizer sim a um único momento então teremos dito sim não só a nós mesmos mas à totalidade da existência” (todos, segundo Boff, do Livro Quarto, “Disciplina e Seleção”). O que Boff conclui das passagens é que “para podermos festejar de verdade precisamos afirmar positivamente a totalidade das coisas”. Porém o que Boff entende por “afirmar positivamente a totalidade das coisas” está em consonância com o que Nietzsche entende por afirmar positivamente a totalidade das coisas, de modo a justificar a citação? Já volto a isso.

Do segundo, Boff utiliza dois aforismos. Um, o aforismo 125, intitulado “O insensato”, fala sobre o louco que, como Diógenes, o cínico, pôs-se em praça pública, durante o dia, com uma lanterna na mão, gritando “Procuro Deus! Procuro Deus!” e, depois de ter conquistado o olhar de todos, bradou “Vou lhes dizer! Nós o matamos, vós e eu! Nós todos, nós somos seus assassinos!”. Outro, o aforismo 343, nomeado “Nossa serenidade”, discorre sobre como há esperança para os filósofos ou “espíritos livres”, mesmo após a constatação de que Deus está morto. Entretanto, a conclusão de Boff da leitura de ambos, em forma de paráfrase é esta: “a perda da jovialidade, isto é, da graça divina é a consequência fundamental da morte de Deus”. Seria esta a conclusão mais acertada dos aforismos?

A resposta é negativa.

E para justificar, retomo duas ideias: i) a pergunta que deixei em aberto três parágrafos atrás, “O que é “afirmar a totalidade das coisas” para Nietzsche?” e ii) duas das quatro palavras-chave que destaquei no segundo parágrafo: bondade e vida.

O que Nietzsche entende por vida pode ser apreendido no célebre parágrafo 259, de Além do Bem e do Mal (1886), onde o filósofo expõe que viver “é essencialmente apropriação, violação, dominação do que é estrangeiro e mais fraco, opressão, dureza, imposição da própria forma, incorporação e, pelo menos, no mais clemente dos casos, exploração”.

O que Nietzsche entende por bondade é um valor que será entendido a depender da perspectiva de quem o engendrou. No seu pensamento, essa perspectiva é dupla: a dos senhores e a dos escravos, a dos fortes e a dos fracos, a dos nobres e a dos ressentidos. O senhor, a partir de si próprio, estabelece o que é “bom” e, apenas como “um contraste pálido”, atribui, no escravo, o que é “ruim”. Sua “bondade” está ligada tanto à sua destreza quanto à sua força, superiores as do escravo que, por isso mesmo, não executa bem suas ações; sendo, portanto, “ruim”. Para o fraco, o forte é “mau”, e por “mau” ele entende aquele que, apesar de ter forças e habilidades que excedem as suas, poderia escolher não subjugá-lo e mesmo assim não o faz. A partir do forte “mau”, ele elabora o “bom”, aquele que, por “bondade”, escolhe não subjugar, ou seja, ele mesmo.

O noção de vida ajuda a entender a noção de “afirmar a totalidade das coisas” para Nietzsche. Já que viver é entendido como dominação, tudo o que vá de encontro a isso é negador da vida. E a doutrina que mais de encontro à vida nietzschiana se posiciona é a moral cristã professada por Boff em seu artigo. O “excesso” que Boff chamaria de “frívolo” é típico daquele que genuinamente vive, o forte. O forte, aliás, jamais partilharia da “bondade” cristã-boffeana entendida como “capacidade de chorar, de se alegrar pela bondade da vida, pelo nascer do sol e pela carícia entre dois namorados.” O bom afirmador da vida e, portanto, da “totalidade das coisas”, não seria o bonzinho esboçado por Boff.

Recuperando as outras duas palavras-chave do parágrafo segundo acima, Boff se esquece que a jovialidade e a festa afirmadoras de vida a que Nietzsche se refere em nada se assemelham ao que ele, teólogo, quer fazer crer em seu artigo. Bastaria que se lembrasse isto: o que há de festivo na afirmação da vida contraria em tudo a sua linha argumentativa, já que a festa se faz também mediante o prazer desinteressado na crueldade:
Parece que repugna à delicadeza, mais ainda à tartufice dos mansos animais domésticos (isto é, os homens modernos, isto é, nós), imaginar com todo o vigor até que ponto a crueldade constituía o grande prazer festivo da humanidade antiga, como era um ingrediente de quase todas as suas alegrias; e com que ingenuidade se apresentava a sua exigência de crueldade, quão radicalmente a "maldade desinteressada [...] era vista como atributo normal do homem - logo, como algo a que a consciência diz Sim de coração!” (Genealogia da Moral, Segunda Dissertação, §6)

Seria possível admitir que, na alegria, há crueldade? Boff diria um Não de coração! E mais: é de difícil compreensão os motivos de Boff, tendo lido os parágrafos que menciona de A Gaia Ciência, para ter omitido que um deles, o 343, finda por concluir exatamente o oposto do que ele professa sobre a "morte de Deus". Ao contrário do teólogo, o filósofo encara como auspicioso tal evento. Com a palavra, Nietzsche:
Talvez nos encontremos dominados pelas primeiras consequências desse evento? – e essas primeiras consequências, tendo em vista o que poderíamos esperar talvez, não nos pareçam sombrias e tristes, mas, contrariamente, como espécie de nova luz, difícil de descrever, como espécie de felicidade, alívio, de serenidade, de encorajamento, de aurora... [...] enfim o horizonte nos parece livre, admitindo mesmo que não esteja claro...

Enfim, como disse acima, tivesse Boff encerrado seu sermão sem referências bibliográficas ou se limitado à crítica à mercantilização das festas, teria acertado de mão cheia - ainda que não dissesse nada de novo. Afinal, quem discordaria de que não sabemos mais festejar e que ao invés de, como ele diz, nutrir-nos no momento de celebração saímos ainda mais famintos? O problema todo está em usar um autor, forçando tanto a interpretação que, ao final, qualquer outro autor que se quisesse referenciar serviria. Se qualquer um serviria, por que citar Nietzsche? Não encontro outra explicação, penso mesmo que Leonardo Boff, ainda que temporariamente, está sofrendo de uma séria doença. 

2 comentários:

Augusto Lima disse...

Dessa doença padecem muitos, inclusive os intelectuais cristãos quando tentam referenciar seus devaneios em citações descontextualizadas da sua própria bíblia.

Adriano Alves Apolinário da Silva disse...

Muito bom mesmo.