quarta-feira, 23 de julho de 2014

A epopeia de Elizabeth Bishop no Brasil

Bishop (Miranda Otto) e Lota (Glória Pires)

Há outras maneiras de interpretar um filme de amor que não como simplesmente um filme de amor. Entretanto, entendo que seja difícil, ainda mais quando o amor em jogo é um amor gay com alguma sugestão de triângulo amoroso. O filme Flores Raras (Bruno Barreto, 2013) que gira em torno do romance entre a poeta estadunidense Elizabeth Bishop (Miranda Otto) e a arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares (Glória Pires) é um exemplo. Ambientado no Rio de Janeiro, especialmente na região de Samambaia, em Petrópolis, dos anos 1950-60, a película faz referência às duas grandes mulheres que, tal qual o título sugere, são duas flores raras. Lê-las assim, porém, é o manifesto. Ao sair da sala do Teatro R. Magalhães Jr., na Acadêmia Brasileira de Letras, hoje mais cedo1, pensei que talvez a estória pudesse ser encarada por outro ponto de vista.

Do modo como li, podemos ganhar alguma descrição interessante de nós, brasileiros, se encararmos a estória não como uma narrativa de uma relação entre duas mulheres, mas antes como uma narrativa de como a americana Bishop sofre suas desventuras longe de sua terra natal, no Brasil, ou ainda, antes como uma epopéia que como um romance.

Há dois indícios que me fazem pensar assim. O primeiro é a semelhança com os mitos narrados em poemas épicos como A epopeia de Gilgamesh e a Odisseia. O segundo é o modo mesmo como se estrutura o roteiro, principalmente em suas cenas inicial e final.

Tal qual Gilgamesh que sai descontente do seu reino em direção à floresta em busca de respostas e lá encontra Enkidu, seu parceiro de sorte que finda por perecer no final, Bishop sai da América, vem ao Brasil e encontra Lota que tem destino semelhante. Tal qual Odisseu que sai de Ítaca, vive suas aventuras mas sempre consciente de voltar para casa, Bishop sai da América, vive experiências gloriosas e adversas em terras estranhas, porém não deixa de retornar ao lar.

Tanto na cena inicial quanto na final, como que para completar um ciclo, Bishop está em um banco do Central Park, em Nova York, conversando com seu amigo Robert Lowell (a quem ela chama de Cal). No início, cansada da vida que leva, sem inspiração, informa ao amigo que irá fazer uma viagem em busca do ânimo perdido. “Ah! A cura geográfica!”, percebe Robert. No final, depois de toda a experiência vivida, ela lê o sublime poema “Uma Arte” , de sua autoria, que assim se conclui:
Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo, que eu amo)
não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser um mistério
por muito que pareça (escreve) muito sério.

Esse poema foi lido, depois da morte de Lota. E isso marca de forma clara a personalidade de ambas e consequentemente o modo como lidam com o mundo. Bishop está pronta para ele, da forma como vier. Lota, que ao final se mata por não ter mais o amor da outra, não está preparada para perder.

O ambiente cultural de ambas fala por elas. Bishop é americana. Tem como valor supremo a liberdade, embora seja tímida e deteste falar em público, ainda que o discurso consista em poemas seus. Lota é brasileira. Mulher cultivada da alta sociedade. Orgulhosa, talentosa e altiva, faz questão de exibir seu trabalho. Uma linha imaginária separa ambas – e isso faz toda a diferença. É a Linha do Equador.

Umas das primeiras cenas do filme mostra Bishop, no navio, vindo para o Brasil. Ela pergunta a um tripulante se eles já ultrapassaram o Equador. Ele diz que não, mas assegura-lhe que, assim que isso acontecer, ele sinalizará com o toque de uma sineta. O toque vem instantes depois. Bishop, contente, vai dormir e, no dia seguinte, já acorda com o Rio de Janeiro à vista e se surpreende com a rapidez com que o navio chegara: “As coisas acontecem rápido por aqui” – observa ela.

“As coisas acontecem rápido por aqui” é o mote a partir do qual os personagens brasileiros principais se desenvolvem, Lota principalmente. Rápido é o modo como Lota se apaixona e conquista Bishop. Impetuoso é o modo como a elite retratada quer fazer cumprir o seu modo de ser, independente do que pensam os opositores. Apressado é o modo como os brasileiros em geral se esquecem de sua falta de liberdade em prol da mais banal festa. O filme indica isso em três sequências.

A primeira sequência é a da conquista precipitada de Bishop por Lota, que poderia ser vista como uma falha na narrativa fílmica. Tudo acontece muito rápido, de modo que não se entende muito bem o porquê da paixão, já que a personagem Bishop não tinha tido tempo narrativo suficiente para descortinar sequer um charme seu. Tudo o que se vê até o momento em que Lota decide tomar Bishop para si é uma mulher apagada e bem desinteressante. Porém, se o mote acima estiver claro, pode-se interpretar favoravelmente essa escolha da direção. Era preciso que tudo acontecesse rápido.

A segunda sequência é da construção do Parque do Flamengo. Lota foi a arquiteta responsável pela obra. Ao compor o parque, Lota é criticada pelos jornais da época por estar erigindo algo elitista. Ela reclama em diálogo com Bishop que o povo não entende nada e que teme uma revolução comunista, mostrando inclinação a uma intervenção militar. Bishop retorque que o governo, por ruim que fosse, constitui-se democraticamente. Lota responde que a América Latina é diferente e que, aqui, as coisas só funcionam assim. Bishop que faz parte de uma democracia constitucional mais que centenária não entende Lota que não faz ideia de como fazer política se não de modo truculento.

A terceira sequência já se passa após o Golpe, em um banquete de comemoração do novo estado de coisas da política. Bishop é chamada a discursar e não se contém. Ela tece uma crítica a partir de uma imagem que houvera presenciado momentos antes, da janela do hotel que estava hospedada: uma pelada de futebol de areia. O que surpreende a americana é o fato de aquela pelada, fato tão banal no cotidiano brasileiro micro, estar acontecendo ao mesmo tempo em que um fato nada banal se dava no contexto macro do País: a instauração de um regime não democrático. Ela lembra de quando Kennedy houvera sido assassinado e como houvera ficado a nação, em luto, durante tempo considerável. A partir desse contraste, a surpresa vem do fato de o Brasil estar perdendo algo muito mais precioso, isto é, a liberdade, e ainda assim estar jogando pelada como se nada importante houvesse lhe sido tirado. Na visão de Bishop, o Brasil se constituí como uma nação que não sabe o tempo devido de guardar ocasiões e se apressa em comemorar seja lá o que for.

Bishop se sai muito bem no Brasil. É recebida como uma rainha por Lota. Bishop ganha o Pulitzer por um livro de poesias escrito na casa que ambas partilhavam. Lota consegue construir o Parque do Flamengo, mas não consegue erigir um relacionamento que não seja à base de dominação. Bishop que nunca abriria mão de sua liberdade volta para a América. Lota entra em depressão – não aceita perder. Bishop também sofre, mas ao final entende que sua vida continua. Lota não entende e se mata à base de overdose de pílulas. Bishop entende o tempo. Lota, não.

Talvez sejamos excessivamente Lota. Talvez possamos aprender com Bishop:

Uma Arte
A arte de perder não é nenhum mistério
tantas coisas contém em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouco a cada dia. Aceite austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. Um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
Mesmo perder você ( a voz, o ar etéreo, que eu amo)
não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser um mistério
por muito que pareça (escreve) muito sério.
(Tradução de Paulo Henriques Brito)

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1A exibição do filme fez parte da programação do projeto “Cinema na ABL”, hoje dia 23/07.

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