domingo, 17 de julho de 2016

Assassinos de Sócrates



"Ensinar Filosofia" pode servir a propósitos distintos. Decidir que objetivos e meios servirão a esse ensino deve ser algo bastante claro, com suas consequências muito bem estabelecidas. Segundo penso, um desses pares objetivo/meio deve ser evitado sobremaneira: aquele que se expressa no slogan "ensinar o senso crítico". Trata-se de um duplo erro. Antes de tudo porque presume que pensamento crítico é privilégio da filosofia. Além disso, dado que a erige como guardiã da criticidade, torna-a tão despótica quanto o que ela pretende denunciar.

Não custa lembrar: aquele que liberta alguém do senso comum não necessariamente lhe desperta o senso crítico. Eventualmente, acontece apenas uma substituição. Esse era um dos perigos do Esclarecimento, apontados pelos filósofos da Escola de Frankfurt. Tirar as amarras de um escravo que permanece com a mentalidade servil nada mais é que se tornar seu senhor.

Pior que isso. Corremos o risco de nos tornar uma sociedade de escravos assenhorando escravos. Tal qual o prisioneiro da caverna de Platão que foi libertado e não sabe por quem, saímos a ver as coisas iluminadas pelo sol e nos maravilhamos. Constatamos que, quando comparadas à nova visão, as sombras da caverna não passam de cópias malsucedidas. O que usualmente esquecemos, entretanto, é que a alegoria da caverna é exatamente o que o seu nome diz: uma alegoria. Ela ilustra a ascensão da aparência ao conhecimento. Porém, toda ela é aparência -- sejam as sombras no interior da caverna, seja o seu exterior iluminado pelo sol. Nada garante que, ao sair de uma ilusão, não se incorra imediatamente em outra.

Ainda assim, há uma postura que minimiza essa condição. Falo aqui da autocrítica constante. Falo aqui da constante busca por furos no próprio raciocínio. Sócrates e Platão chamaram isso de dialética. Para garantir essa conduta, o primeiro frequentou incessantemente a praça pública; o segundo fundou a Academia.

Por nosso turno, não precisamos entrar para a história da filosofia, inaugurando uma maneira revolucionária de preservar esse ideal. Basta que estejamos abertos à refutação. Isso quer dizer simplesmente estar disposto a dizer, diante de uma falha argumentativa apontada, "É... de fato, eu estava errado". Antes de tudo, é preciso pressupor que pode ser o caso que estejamos errados. E isso, por mais nobre que seja a causa que estejamos defendendo. É preciso entender que não há, em filosofia, causas nobres o suficiente a ponto de serem imunes à refutação -- e esse é um dos pontos mais delicados a ponto de mesmo aquele que se diz amante do saber raramente o praticar.

Quando não assumimos essa postura e passamos a ensinar e defender doutrinas, por mais bem intencionadas que sejam, em vez de agirmos como Sócrates -- parindo ideias, refutando e se deixando refutar --, vestimos a toga do sofista. As preocupações passam a ser a retórica e a busca por efeitos estilísticos e convencimento. Porém, por paradoxal que seja, comportamo-nos como Protágoras, mas nos recusamos a assumir a relatividade. Aquilo que acreditamos passa a ser o melhor modo de expressar a verdade, e quem conosco discorda contra nós está. Não passará tanto tempo assim até que o denunciemos ao tribunal e exijamos junto à corte sua condenação derradeira: beber cicuta.

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