sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Twins, dois corpos e uma alma?



Em 1996, a Revista LIFE trouxe na sua capa o título “Um Corpo, Duas Almas”, reportagem sobre as gêmeas siamesas Abigail e Brittany Hensel. As garotas são gêmeas coligadas cujas cabeças aparentemente partilham o mesmo tronco, braços, pernas etc, dando a aparência de um mesmo corpo sustentando duas cabeças. As irmãs ganharam certa notoriedade. Há alguns anos, deram entrevista a uma rede de TV norte americana, The Learning Channel [1] e, atualmente exibem seu próprio reality show, Abby and Brittany [2], mostrando que levam uma vida normal a despeito do que se poderia julgar à primeira vista.

De fato, numa análise mais cuidadosa, comprova-se que internamente há órgãos duplicados (esôfago, pulmões, estômago etc.), o que derruba a tese do senso comum de que se trata de um só corpo sustentando duas mentes. Mesmo assim, é interessante fazer uso dessa imagem popular que associa o que é do pescoço para baixo ao “corpo” e o que é do pescoço para cima à “mente”, porque entre outras coisas remete à separação mente/corpo discutida na Filosofia. Utilizando-se dessa mesma imagem, pode-se levantar outras questões através do curta-metragem de animação Twins (2011), dirigido pelo eslovaco Peter Budinsky [3].

Premiado por sua criatividade e expressão artística no Festival Internacional de filmes animados BANJALUKANIMA 2011, o curta chamou atenção por ser visto como tratando da temática do alter ego, expressada pela metáfora de “dois corpos e uma alma tratados de uma maneira humorística, focando no problema da intolerância e do egoísmo utilizando da estética do absurdo” [4]. Apesar do juri ter relacionado a história à temática, o filme pode ser visto como abordando outras questões.

O alter ego é um outro eu, que faz parte do eu normal, porém geralmente não é percebido por ele. Retrata bem essa faceta escondida, secreta do outro eu a película Clube da Luta (2000), dirigida por David Fincher. Ali o personagem principal, até o final do filme, não se dá conta que toda a ação dramática realizada em conjunto com seu amigo, no final das contas, era empreendida por ele só. Dessa maneira se estabelece o escondido que age mesmo que não seja percebido. Porém, em Twins, a história se dá de maneira diferente.

Tal qual Abby e Brittany, os personagens principais são dois gêmeos coligados, só que pela cabeça: um deles, um cara grande e durão; o outro, um nanico pusilânime. Como as irmãs, os dois levam uma vida normal: lutam boxe, fazem sexo, pegam táxi, enfim são reconhecidos pela sociedade como tal. Ainda em comparação com as gêmeas, não há nada de anormal, de escondido ali. Sendo assim, considerar a fábula de Budinsky algo sobre o alter ego, penso, é vê-la não através do melhor prisma. O que o diretor traz não é a história usual da personalidade que não se revela, que foge ao controle do indivíduo. Trata-se de outra coisa.

O filme começa com uma luta de boxe – é assim que eles ganham a vida. Os irmãos se enfrentam. O grandão sempre massacra o pequeno. Ao ganhar o duelo, o brutamontes recebe toda a glória e trata seu gêmeo com desprezo – os prêmios são todos dele: troféus, fama, mulheres. Uma cena engraçada no meio disso é a do sexo. Enquanto uma mulher cavalga no grandão, o menor está envergado e morrendo de tesão. Numa tentativa de partilhar da glória do irmão ele arrasta o troféu da luta que acabaram de realizar para perto de si, dando a entender que a vitória do irmão, não fosse por ele, não existiria. Ao ver a caneca perto do nanico, como que só guiada pelo brilho do ouro, a mulher salta da vara maior ao graveto enrijecido do menor. O grandalhão, enraivecido, tasca um soco no irmão e arrasta o troféu novamente para o seu lado, o que faz com que a mulher salte de volta num ritmo intermitente.

A cena de sexo leva à cena da morte do menor. Em mais um duelo entre eles, o menor, ao associar a glória da luta à possibilidade de transar, resolve reagir. O irmão, cego de raiva pela ousadia, extrapola na força e acaba por levar o outro à morte. Na tumba, o pequenino não é separado do grandão. Este permanece deitado sobre o chão de terra batida, em baixo do qual jaz seu irmão. Chuva cai. Panorâmica das tumbas do cemitério. Fim.

Fim do filme, mas, por pelo menos três parágrafos, não do texto.

Pelo que a película mostra da convivência dos dois, não se trata da história de um ego e de um alter ego. São dois indivíduos, distintos. Diferente de Abby e Brittany, eles não podem ser vistos pelo senso comum como possuindo só “um corpo”, muito menos só “uma mente”. A delimitação de cada um é bem clara como o são suas atitudes muito bem figuradas em suas estaturas somáticas. Juntos, ainda que em detrimento de um deles, conseguem certo status e reconhecimento. E isso só se dá em decorrência da união, posto que poderiam estar separados – nenhum órgão vital os conecta, o traço do desenho deixa isso claro.

Nesse passo, essa característica os assemelha mais ao mito do andrógino, narrado n' O Banquete de Platão. Este ser mitológico, composto por dois seres unidos, era dotado de tamanha força que chegou a desafiar os deuses. Separado do seu igual, não surpreendia muito. Ainda que os irmãos de Budinsky não sejam tão poderosos, suas trajetórias só fazem sentido unidas. Isolado de seu gêmeo, o grandão não é tão poderoso assim. E, tal qual o andrógino apartado de seu par, uma vez só, não há outra alternativa a não ser viver à procura de sua outra parte. Na morte desta, não resta outra solução a não ser deitar-se no solo fúnebre e esperar a morte.

Assim, ao invés de falar sobre alter ego, intolerância e egoísmo como mencionado pelo juri do Festival, Twins parece muito mais tratar da temática da valorização do companheirismo e da amizade. Sem querer descambar para a autoajuda de má qualidade, Peter Budinsky fornece uma boa alegoria de como não se deve menosprezar o companheiro, entendido como aquele que participa de nossas ocupações, atividades, aventuras ou mesmo de nosso destino. Ainda que Twins não suscite questões metafísicas como a separação mente/corpo a qual a história de Abby e Brittany pode remeter, a fábula lembra que mesmo que o outro não possua o mesmo status que o nosso, sua ausência pode ser fatal.


REFERÊNCIAS

[1] Entrevista em inglês das gêmeas ao The Learning Channel em dezembro de 2006. Endereço do vídeo no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=BkKWApOAG2g.

[2] Site oficial do reality: http://www.tlc.com/tv-shows/abby-and-brittany

[3] Site oficial do diretor, onde é possível visualizar o filme: http://www.peterbudinsky.com/

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