domingo, 28 de setembro de 2014

O autodidatismo como falsa libertação intelectual

Quem lê os diálogos em que aparece Sócrates, sabe que ele é irônico e que nem sempre tem “bom trato” em relação aos seus interlocutores. No “Crátilo” de Platão, há um bom exemplo dessa sua postura. Ao final, Sócrates não conseguindo, por todos os argumentos, convencer seu interlocutor, simplesmente se despede, dizendo-lhe: “...já que estas disposto, caminhe para o campo e leve consigo também Hermógenes, que cá está”1.

Nada demais, não é? Bom, não haveria se a) Hermógenes não fosse um nome derivado do nome Hermes (portanto ele mesmo, podendo ser um representante da divindade), se b) o próprio deus Hermes não fosse o responsável por conduzir as almas ao Hades e se c) o verbo em grego equivalente à tradução “caminhe para o campo” também não fosse o mesmo usado para as ocasiões em que as almas descem ao Hades. Em outras palavras, o que sutilmente Sócrates está dizendo é isto: vá para o inferno, Crátilo!2

No meio intelectual, não há problema algum na arrogância, considerada em si. É possível justificá-la em vários casos. Igualmente, não há problema na grosseria, também se pode justificá-la, não sempre, mas em determinadas situações certamente. Também não há problemas em proferir palavrões – o mesmo argumento. O problema que há é o de fazer uso de todos esses expedientes sem propriedade alguma. Mas o que fornece tal propriedade?


A primeira coisa a ser dita é que não há um princípio geral que regule o “bom uso” da arrogância, da grosseria e dos palavrões. Há quem defenda que nunca se pode falar em bom uso, quando se trata de tais usos – a acusação que recai sobre quem os utiliza é, predominantemente, a de alguém que está apelando ao argumento ad hominem (aquele que se dirige ao indivíduo, não ao seu argumento). Discordo, quase sempre, de que a utilização do ad hominem desqualifique o argumento de quem o utiliza. Quase sempre. De fato, existem casos em que os argumentos simplesmente não convencem o interlocutor que insiste em empacar. O diálogo “Crátilo” nos mostra isso.

Mas se não há princípio geral que regule o bom uso do ad hominem e se, ao mesmo tempo, ele requer alguma propriedade ao ser utilizado, como distinguir o seu “bom uso”? Se não há critério positivo, há algum critério negativo? Sim, há: podemos dizer que todos concordam que um arrogante, grosseiro e boca suja que sabe do que está falando é menos pior que um arrogante, grosseiro e boca suja que não tem a menor ideia do que está falando. Trocando em miúdos, é mais fácil levar a sério alguém que esbraveja com conhecimento do que alguém que esbraveja falando impropriedades. O critério negativo, portanto, é o de que o arrogante, grosseiro e boca suja não seja – e que isto se ponha com todas as letras – burro.

O burro é o animal que empaca num lugar, não importando as tentativas de movê-lo dali. O burro intelectual é o ser humano que empaca num raciocínio não importando quantos outros mais razoáveis venham a contra-argumentá-lo. Essa espécie de burro é encontrada fora e dentro da educação formal. Do mesmo modo que não é preciso ser pobre e ignorante para ser burro, também não é preciso estar fora da Universidade para sê-lo. Porém, penso que o problema é maior quando, aliada a essa postura, vem uma outra: a do autodidatismo.

O problema é que figuras que nunca frequentaram a educação formal (seja por falta de mérito ou por alinhamento ideológico) passem a substituí-la. Não raro, finda-se por acontecer o contrário do que o mais bem intencionado autodidata professa: o alinhamento ao dogma, a instauração da visão única, o empacamento, a burrice. O que era para ser uma auto-educação que visasse o não dogmatismo vira uma educação dogmática em que se idolatra alguém que, não tendo frequentado a academia, consegue parcamente ler livros acadêmicos.

Ademais, o autodidatismo do modo como se nos apresenta parece pressupor uma característica extremamente danosa: exclui o diálogo com os pares. Sob a justificativa de que tudo que é da educação formal é “contaminado”, o autodidata é aquele que pensa que pode saber sem frequentar o círculo dos amigos do saber, sem por seus argumentos à prova; é aquele que, por se inserir num grupo em que todos pensam como ele e dizem exatamente o que ele quer ouvir, sente-se um sábio. No exemplo mais caricato, o autodidata é tanto aquele que interpreta a Bíblia voluntariosamente quanto aquele que se recusa a ler Marx sob o pretexto de que se trata de um doutrinador de esquerda. O autodidata, em resumo, é aquele que chega ao cúmulo de não saber mais distinguir o que é um clássico – seja ele um autor ou uma interpretação.

Há inúmeros autodidatas que se aproveitam da ignorância de incautos e de mal intencionados. Isso se dá em grande parte devido ao nosso Ensino Médio de má qualidade (sim, a Universidade tem seus problemas que são excessivos, mas quem é a favor do autodidatismo dificilmente é do tipo que consegue ser aprovado em ENEM ou em exames vestibulares).

Porém, mesmo diante dessa educação média capenga, penso que nós da Universidade temos um dever de combater esse autodidatismo que, a princípio, parece ser ótima ideia (liberdade intelectual, autonomia argumentativa, não adoção de dogmas etc.), mas que finda por gerar esse tipo de aberração. Isso só prejudica ainda mais a educação de nosso País e muda o foco do que é realmente importante: valorização do salário do professor, melhoria das condições de infra-estrutura das escolas, internet de qualidade etc.

A educação de qualidade, formal ou informal, não se dá com o prefixo -auto, o prefixo -co é o correto. É hora de deixarmos de lado as reservas que nos obrigam a ser polidos e começarmos a não temer, quando necessário, agir como Sócrates diante de Crátilo. Todos sabemos que o que é tão proclamadamente próprio (-auto) só esconde ou uma incapacidade intelectual ou um aliamento ideológico burro. O autodidatismo, nesses moldes, não passa de uma falsa libertação intelectual.

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1O leitor pode conferir tanto o original grego quanto a versão completa em Língua Portuguesa de onde o trecho foi tirado da seguinte obra: SOUZA, Luciano Ferreira de. Platão, Crátilo, estudo e tradução. São Paulo, Dissertação de Mestrado, USP: 2010. Disponível aqui. Acesso em 10/10/2013.


2Esta interpretação anedotária é minha; não há concordância entre estudiosos quanto a ela. Porém, outras passagens em que Sócrates ilustra postura equivalente podem ser encontras – e, agora sim, com defesa de alguns estudiosos – , e.g., em “Górgias”. Devo essa interpretação a um insight que tive ao assistir à palestra da Prof. Luisa Severo Buarque de Holanda, na UFRRJ, no começo deste ano, quando apresentou uma comunicação sobre sua tese de doutorado pela PUC-RJ, “As armas cômicas: os interlocutores de Platão no Crátilo”.

Um comentário:

Augusto Lima disse...

Conhecimento é ciência, que se traduz em averiguação e pesquisa - nunca simples "constatação". Vale, para a ciência, colocar à prova o que se sabe ou descobriu - isso é produzir conhecimento. É o que você está fazendo cada vez mais brilhantemente. Parabéns!