segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Viver ou tornar-se imortal?

Aquiles (pintura em vaso grego)

Fernando Pessoa escreve, retomando um antigo dito romano, que “Navegar é preciso; viver não é preciso”. O poeta clama para si o espírito da frase, que é o seguinte: antes de tudo – até mesmo da vida –, é necessário criar; tornar a vida grande, de toda a humanidade. É como se o poeta quisesse se tornar imortal através de seus próprios feitos, tal qual um herói épico. Este, entretanto, precisa de um aedo que cante em versos sua jornada para que, toda vez que a narrativa melódica seja entoada, sejam revividos seus feitos, e com eles sua memória. Porém, Pessoa faz crer que quer se emancipar da figura do herói para alcançar a imortalidade. Ele mesmo quer ser o herói. Os feitos não são mais de Hércules, de Aquiles ou de Odisseu, mas dele próprio: do aedo da alma que não é pequena.

Mas que condições levam alguém a crer na ideia, a princípio paradoxal, de que é preciso abandonar a vida para alcançar a imortalidade?

A Ilíada de Homero mostra que a glória (kléos) tem a ver com fazer com que o seu nome, junto com seus feitos, nunca pereçam, nunca sejam esquecidos. Eis a condição do mortal: ainda que seja o mais excelente dentre aqueles que o pareiam, nunca será igual aos deuses, isto é, imperecível. A condição do mortal é exatamente esta: ele perece, tal qual uma flor que perde o viço. O mortal ainda tem uma desvantagem, se comparado à flor: esta pode ser plantada novamente e voltar a vicejar em outra estação, seguindo um ciclo infindo. O mortal, uma vez tendo sua passagem ao Hades realizada, não pode voltar: seu fim foi decretado. Uma exceção apenas resta: ser acolhido pelas Musas.

Zeus tem nove filhas com Mnemósine (Memória). Cada uma domina uma ciência e preside um tipo de arte. Elas são chamadas de Musas, e o aedo, quando quer recitar algum poema, a primeira coisa que faz é evocar-lhes o auxílio. Filhas da memória que são, sopram no ouvido do poeta tudo aquilo que presenciam. Mas para que algo lhes seja digno da presença há de ser grandioso. E ai começa a busca dos mortais excelentes em encontrar ocasião onde seus próprios feitos possam ser testados e, uma vez passados pelo crivo das deusas, jamais esquecidos. É isso que leva o preferido entre os deuses, Aquiles, até a Guerra de Tróia, mesmo que os troianos jamais tivessem ofendido a ele ou a sua terra em específico. Aquiles só é Aquiles por que é o herói que tem seus feitos grandiosos testados e aprovados pelas Musas.

E assim nasce a base para a poesia homérica: um aedo (Homero), com o auxílio das Musas, canta os feitos de um herói (Aquiles). Assim nasce um específico gênero, o épico, que se traduz em um extenso poema de amplo alcance, composto em um estilo de linguagem elevada, não usual e soberba, sobre os feitos maravilhosos dos heróis.

Agora, há mais elementos para entender o aparente paradoxo apontado acima: o da morte que leva à imortalidade. Não se trata de qualquer morte. Nem todos tem a sorte de morrer como um herói trágico: a maioria morre de forma banal e é esquecida no ato. A morte de Fernando Pessoa e de Aquiles, ao contrário, se dá para que seus nomes sejam lembrados. Vale dizer, cantados através dos tempos. Talvez se entenda melhor o poera através de uma paráfrase: ser imortal é preciso, viver não é preciso.

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