quinta-feira, 27 de novembro de 2014

A demiúrgica Menina do Guarda-Chuva



Uma dificuldade não fácil de resolver surge quando um filme se propõe mostrar o conflito interno de um personagem. Uma das críticas ao Hannah Arendt (Margareth von Trotta, 2012) foi exatamente o pecado cometido ao se tentar retratar uma filósofa ou, como o imaginário popular prefere, “alguém que pensa”, em seus momentos de “reflexão”. Trotta não foi feliz – ao menos neste aspecto – porque reproduziu o lugar comum do “pensador”, em cenas em que se olha para o nada, fuma-se, põe-se a mão no queixo e blá blá blá. Felizmente o erro de querer mostrar o tal do “conflito interno” não acomete A menina do guarda-chuva (veja o trailer aqui).

Inversamente à Segunda Balada (2012), também de Rafael Ramos, o conflito interno é o que menos importa – e isso é um dos maiores acertos da direção e do roteiro. Explico o que quero dizer por “conflito interno”, comparando as duas produções. Na Segunda Balada, para demonstrar que sofriam os personagens de Efrain Mourão e Diego Bauer, evidenciavam-se-lhes os contorcionismos dos músculos faciais. Na Menina, para demonstrar o mesmo, não bastou mais que oferecer o personagem de Danilo Reis... vivendo! Não precisou de nenhum close demorado em seu rosto para percebermos sua dor. Sua mudança de humor é retratada exteriormente não em seu corpo mais em outros elementos. E aqui entra um dos aspectos mais belos do filme: o colorido.

Tanto o guarda-chuva (e a menina que o segura) quanto os palhaços (no significativo número de três) fornecem o colorido demiúrgico necessário para superar o conflito do filme: a tristeza. Na película, alegria e tristeza, aliás, não são mais sentimentos – aquilo que nós, modernos, gostamos de depositar no caixa-forte escondido do Eu (se é que vocês me perdoam o cacofônico trocadilho) –, mas sim demiurgos, divindades cuja circulação e influência independem de qualquer vontade que não sejam as suas próprias. Para entender o que quero dizer quando contraponho sentimentos, de um lado, e demiurgos, de outro, é só lembrar que Amor (Eros), Medo (Fobos) e Sorte (Parcas), por exemplo, no Mundo Antigo, são todos escritos assim, com letra maiúscula, porque ao invés de pertencerem ao âmbito interno, são externos. Em um mundo não moderno, faz mais sentido dizer “O Medo (divindade) me possui” que “Eu estou com medo (sentimento)”. Desde que a subjetividade – essa invenção filosófica da modernidade – não se torne discurso hegemônico, ganham mais evidência as peripécias das divindades, como bem retrata o Orestes de Eurípedes.

Nessa tragédia grega, Orestes sofre de arrependimento não porque tem peso na consciência (palavra cujo correspondente exato inexiste em grego antigo), mas porque as Erínias (divindades da justiça enquanto vingança) não o deixam de acompanhar, levando-o a picos de insanidade – imagem bem retratada na pintura de Bouguereau. Meninas traz outras três divindades (na verdade seis, se se conta a menina do guarda-chuva e o assassino do pai), na figura de clowns, mas desta vez divindades da alegria e não da vendeta. A estória se encerra indicando, via presença do trio demiúrgico, que o conflito enfim começa a ser resolvido ou que, em outras palavras, finalmente os deuses voltam a favorecer o menino órfão.

Esse acerto da direção e do roteiro não é obscurecido por outras falhas menores, por exemplo, a do artificialismo dos diálogos. Como solução, talvez valesse mais a pena deixar os atores – são todos de teatro – estabelecerem jogos de cena por eles mesmos. Faria com que os diálogos parecessem mais consistentes, não meramente decorados. Para ficar em um único exemplo, que não compromete em nada a qualidade do ator, até Robson Ney, artista de alguma estrada, é artificial, quando representa o minúsculo personagem do balconista da loja de fotos – e isso, penso, menos por responsabilidade sua que pela direção.

No mais, é gostoso – essa é a palavra, porque meche mesmo com o paladar – de ver a arte de Hamyle Nobre e o comportamento de câmera e a fotografia de César Nogueira – a qualidade dessa combinação da Artrupe já virou marca. Outro bom acerto é a trilha sonora de Ediel Castro e o som direto cantado de Diego Bauer e Heitor Lopes, tudo a ver com as cenas nas quais se insere – caso fossem cortadas, virariam sem problemas videoclipes de qualidade, tão em sintonia estão as narrativas da canção e das ações. Enfim, é todo um clima onírico que essa amálgama fornece. É isso que me leva a afirmar que essa Menina é, sem dúvida, demiúrgica.


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