segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Uma estória lúgubre de saudade e amor



Li a “viúva na praia” de Rubem Braga e me pus a fazer uma experiência de pensamento inevitável -- e se a viúva fosse minha? A viúva de Braga está na praia, esquina de sua casa, com um filho ainda criança a tomar banho de sal e sol. Jovem, com seu maiô preto, olhos claros, boca e dentes imperfeitos e belos, vinte e poucos anos. E se o morto da viúva fosse eu? E se a viúva fosse minha Evelyn? Estando ela em Cabo Frio, estando eu em Seropédica, coisas assim preenchem o buraco no peito que sua ausência física cava neste terreno de carne e sangue.

Poderia muito bem algum homem observar o corpo de minha viúva na praia. Poderia muito bem eu não lhe gostar do olhar. O ciúme cochicharia em meu ouvido esquerdo e faria com que me ressentisse dos olhos vivos a devorá-la. A ira sussurraria em meu ouvido direito indagando-me por que não guardou o luto, por que não se entristeceu, por que foi à praia, ainda que de maiô preto, e por que não morreu comigo. Evaporados esses sopros malignos, perceberia o quanto sou ridículo e sentiria enorme culpa por ter desejado que morresse comigo quem a vida me deu.

Depois de recomposto e purificado, traria ao coração imagens do leito de morte, onde jamais fui deixado em desamparo. Quando vomitei todas as refeições, limpou-me o canto da boca e escovou-me os dentes. Quando não conseguia dormir, dados os socos que pulmões e estômago trocavam entre si, suas mãos afagavam minha grande cabeça -- a cabeça aumentara àquela altura, e meu corpo diminuíra. Quando comecei a exalar esgoto, sequer torceu o nariz. Passou pano umedecido sobre meus membros e sobre minhas inertes dobras suadas. Mesmo quando só o sexo de necrófilos pulsava por meu corpo, não lançou em minha direção olhos de Calcutá. Calava-se, porém, que era para não me magoar. Evelyn cuidou de mim na doença, na tristeza, na pobreza até que a morte nos separou.

Imagino mesmo que ela já, nos últimos momentos de vida minha -- só nos últimos -- já não amasse carnes e sangue. Seu vegetarianismo sexual me era dúbio. Alegrava-me -- certamente fazia-me morrer mais cedo a deixá-la em paz. E também me entristecia -- perder o amor da vida é um golpe duro da vida. Só me faltavam poucos dias para viver e queria do meu lado a quem tantas vezes prometi nunca abandonar. Ela cumpriu a promessa. Eu morri antes e agora observo-a na praia como se ainda fosse possível fazer-lhe companhia.

Aquele homem, sequer lhe sei o nome. Ela também não, porque ainda não se deu conta de que as águas do mar a secar em seu corpo não são pelo vento que as carrega, mas pelo olhar de fanático ostentado em sua direção. Meu primeiro olhar -- lembro exatamente -- não foi de fanático, mas de fascínio. Aquele é um frequentador da igreja da esquina e só sabe gritar e espernear quando sente a energia divina. Este é o devoto experiente que sabe falar com Deus sem gritar, porque Deus não é surdo. Mas quem sou eu para julgar a manifestação da fé alheia? Estou morto. E, neste lado de cá, ainda não me deparei com Ele.

Aproxima-se, repara em seu corpo estirado na areia, com uma perna esticada e outra em ângulo, dobrada, e pergunta alguma coisa que daqui não escuto. Ela olha para cima, encara-o e responde sorrindo. É o primeiro sorriso sincero que vejo em seu rosto desde que adoeci. Não que eu sempre soubesse disso. Veio-me agora, como um fiat: todos os sorrisos dirigidos, no leito moribundo, foram generosos, mas não sinceros. Comparados a este, aqueles eram de uma madre, de uma irmã, não de uma mulher. Esta sensação causa estranheza. Evelyn não me pertence mais. Um sorriso sincero tanto inicia quanto quebra contratos.

Estranheza, este misto de repulsa e atração. Não sinto necessidade de afastamento, mas também não vejo motivo para continuar aqui. Aquele gesto de músculos faciais carregado de um significado só comungado pelos dois faz perceber que posso parar de penar, que posso deixá-la viver -- porque os vivos só vivem em paz depois que os mortos descansam em paz. O fanático me faz perceber que minha promessa pode ser cumprida e que Evelyn não está mais sozinha.


Um comentário:

Augusto Lima disse...

E levantar do túmulo é o melhor negócio - ainda que a viúva esteja amparada.