quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

No mesmo lugar de antes



Saio para comprar o caldo do feijão: beterraba, cebola e alho. A bicicleta está murcha; a bomba de ar, com bronquite. Vou-me a pé. Faz um sol de janeiro na Baixada. Um sol de janeiro que se compara ao sol de janeiro da Linha do Equador que me pariu. Vou-me a pé. Já alcanço a ciclovia com os olhos. Estou prestes a atravessar a rua, quando vejo sob a ponte por cima do trilho do trem uma pilha de caixas de madeira, sacolas de plástico e retalhos de roupa. Torço para que seja o lar de algum mendigo, caso contrário lanço maldições ancestrais ao indivíduo responsável e a todos os seus óvulos ou espermatozoides -- melhor, amaldiçoo seu cromossomo 21 e está tudo resolvido. Atravesso e já alcanço a ciclovia com os pés. Vou-me a pé. Passam bicicletas por mim. Aquelas ali sustentam um casal: ele alto e negro, ela alta e negra. Distanciando-se de mim, assim no horizonte desta pista estreita, não distingo quem é um e quem é dois, e não importa. São entidades que passam por mim.

Corro para os alcançar. A cada pisada no chão, meu cérebro se contrai como se meus pés, em vez de concreto, esmagassem miolos. O cinza do chão, seguindo passos de ponteiro de relógio antigo, de cimento transforma-se em visco e ruga. Tropeço num felpo e mergulho de cabeça numa estrela ciclópica. Alguma ponte entre um padrão e outro se forma. E já não me vou a pé.

Estou na rua de minha infância, onde cresci, dos quatro aos quatorze. Contemplo todas as casas que de alguma forma estão impressas nas folhas gastas deste escritório cheio de prateleiras e etiquetas. De uma ponta à outra, trinta delas se perfilam, quinze de cada lado. A contar da esquina de minha margem, as seguintes: Simone, Tiago, Guilherme, Kinho, Eu, Tarado, dois andares, casal mal humorado, Seu Jacinto, abandonada, Anderson, Crentes, Professor de Informática, Rafa, Everton. Do outro lado, mesmo esquema: queijo e presunto, Estéfano, Angélica, vascaíno, Lucinha, Tamara e Taiana, Pagode, Pai Velho, Kaike, Josie, casal de gordos com filho viadinho, Carol e de lá eu já não tenho mais controle.

Na frente da casa dos crentes, certa tarde aconteceu alguma coisa que escapou ao domínio de uma criança de doze anos. Passava por ali em direção à casa da velha vendedora de dim-dim -- ainda não sabia àquela altura que dim-dim era sacolé. As prateleiras de minha cabeça só tinham espaço para saquinhos gelados de Nescau e de Quik -- tempos bons em que Quik genuíno era Quik de morango e nada mais, sem competição moleque com o imbatível Nescau. Alguns passos e vinte centavos separavam a saliva de minha língua daqueles açucares abaixo de zero, quando escuto um Ei, menino!

Giro a cabeça noventa graus para a esquerda, e o corpo inteiro, uns cento e noventa. Vejo uma menina, enferrujada do nariz ao dedo de casamento, trajando saia encardida e blusa estampada cujo desenho era igual a sua cara de animalzinho de rua. Chamou-me, e eu -- numa daquelas situações em que obedecemos sabendo que não sabemos porque estamos obedecendo -- obedeci. Estendeu o braço e ordenou Abre a mão, Por que?, Abre a mão, se não eu não te dou um presente. Meus olhos ainda percorriam aquela sujeira em forma de menina, quando me dei conta de que era a filha dos crentes. Veio-me um Caralho! e uma gargalhada prestes a sair da laringe como um coelho atrasado sai da toca. Antes da porta se abrir e o meu animal dar de cara com aquele outro que me olhava, estendi o braço e abri a mão. Cadê?, o que é que tu tem pra me dar?

Ela, tão presta como o bicho que sairia de minha garganta, largou entre meus dedos meia dúzia de pregos tão corroídos quanto sua pele e correu. Quando já a certa distância, É pra construir a casa do teu cachorro!

No mesmo passo em que ela se afasta a correr e se torna um ponto no horizonte, esse mesmo ponto aumenta e se torna um casal de bicicletas negras e altas vindo em minha direção. De volta à ciclovia, carrego sacolas contendo beterraba, cebolas pequenas e uma cabeça de alho. Estou no mesmo lugar de antes e, naquela época e agora, não tenho cachorro.


3 comentários:

Thiago Ricardo de Mattos disse...

Somos o magnetismo que atrai os temperos para casa.

Vitor Lima disse...

Especiarias. Tudo são rotas para as especiarias.

Augusto Lima disse...

Genial revelação de cruzamentos. Existência no chão e na memória criativa.
Adorei a caminhada (ou viagem)!