sábado, 27 de fevereiro de 2016

Como a arte moderna ficou atada ao seu impulso de chocar



Roger Scruton
escritor e filósofo britânico

Qualquer um pode mentir. É suficiente que diga algo com a intenção de enganar. Fingir (faking), entretanto, é uma façanha. Para fingir é preciso enganar pessoas, incluindo a sua própria. O mentiroso simula estar chocado quando sua mentira é descoberta: sua simulação, porém, é parte da mentira. O fingidor realmente fica chocado quando descoberto, porque criou sobre si mesmo uma comunidade de confiança, da qual ele próprio é um membro.

Em todas as idades, pessoas mentem para escapar das consequências de suas ações, e o primeiro passo em educação moral é ensinar crianças a não contar lorotas. Porém, fingir é um fenômeno cultural, mais proeminente em determinados períodos que em outros. Há pouco fingimento na sociedade descrita por Homero, por exemplo, ou na descrita por Chaucer. No tempo de Shakespeare, entretanto, poetas e dramaturgos começaram a se interessar de verdade por esse novo tipo humano.

No Rei Lear de Shakespeare, as irmãs malvadas, Goneril e Reagan, pertencem a um mundo de emoções fingidas, persuadindo a si próprias e a seu pai de que sentem o mais profundo amor, quando na verdade elas são completamente sem coração. Mas elas não concebem a si mesmas como sem coração: caso o fizessem, não poderiam se comportar tão descaradamente. A tragédia do Rei Lear se inicia quando pessoas de verdade – Kent, Cordelia, Edgar, Gloucester – são postas para fora pelos fingidores.

O fingidor é alguém que reconstruiu a si próprio com uma visão que ocupa outra posição social em relação àquela que lhe seria natural. É o caso do Tartufo de Molière, o impostor religioso que assume o controle de uma casa através da exibição de uma devoção programada. Assim como Shakespeare, Molière percebe que fingir atinge o coração da pessoa engajada nesse ato. Tartufo não é simplesmente um hipócrita que finge idealizar algo em que não acredita. Ele é uma pessoa fabricada que acredita em seus próprios ideais, visto que ele é tão ilusório quanto eles são.

O fingimento de Tartufo era uma questão de religião santimonial. Com o declínio da religião durante o séc. XIX, um novo tipo de fingimento tomou lugar. Os poetas e pintores românticos viraram as costas à religião e buscaram salvação na arte. Eles acreditavam no gênio do artista, dotado de uma capacidade especial de transcender a condição humana de forma criativa, quebrando todas as regras com o objetivo de alcançar uma nova ordem de esperança. A arte se tornou uma avenida ao transcendental, o portão para um tipo mais alto de conhecimento.

A originalidade, então, tornou-se o teste que distingue arte verdadeira da fingida. É difícil dizer em termos gerais no que consiste a originalidade, mas temos exemplos bastantes: Ticiano, Beethoven, Goethe, Baudelaire. Mas esses exemplos nos ensinam que originalidade é difícil: ela não pode ser apanhada no ar, mesmo se há aqueles prodígios naturais, como Rimbaud e Mozart que parecem fazer justamente isso. Originalidade requer aprendizado, trabalho duro, a maestria de um instrumento e – acima de tudo – sensibilidade refinada e abertura à experiência que tem no sofrimento e na solidão seus custos normais.

Ganhar o status de um artista original não é, portanto, fácil. Mas em uma sociedade em que a arte é reverenciada como a mais alta realização cultural, as recompensas são enormes. Então, há uma razão para fingir. Artistas e críticos se juntam para introduzirem a si próprios, os artistas posando como autores de surpreendentes descobertas, os críticos posando como juízes penetrantes da verdadeira avant-garde.

Nesse caminho, o famoso Urinol de Duchamp tornou-se um tipo de paradigma dos artistas modernos. É como se faz, dizem os críticos. Considere uma ideia, coloque-a em exibição, chame-a de arte e aguente firme. O truque foi repetido com as Brillo Boxes de Andy Warhol e então, mais tarde, com o tubarão e a vaca conservados de Damien Hirst. Em cada caso, os críticos se amontoaram como galinhas cacarejando ao redor do novo e inescrutável ovo, e o fingimento é projetado ao público com todo o aparato requisitado para a sua aceitação como coisa real. Tão poderoso é o ímpeto em direção ao fingimento coletivo que agora é raro ser um finalista ao Turner Prize2, sem produzir algum objeto ou evento que mostre a si mesmo como arte baseado somente em que ninguém o conceberia como tal, até que os críticos digam que é.

Gestos originais do tipo introduzido por Duchamp não podem realmente ser repetidos – como piadas, eles só podem ser feitos uma vez. Por isso, o culto da originalidade muito rapidamente leva à repetição. O hábito de fingir se torna tão profundamente arraigado que nenhum julgamento é certo, exceto o julgamento que diz que diante de nós está a “coisa real” e, em absoluto, não um fingimento, que por sua vez é um julgamento fingido. Tudo o que sabemos, no fim, é que qualquer coisa é arte, porque nada é.

Vale a pena perguntar a nós mesmos pelo motivo do culto da originalidade fingida ter tão poderoso apelo em relação às nossas instituições culturais, de modo que cada museu, galeria de arte e teatro público o levarem a sério. Os primeiros modernistas – Stravinsky e Schoenberg, na música, Eliot e Pound, na poesia, Matisse, na pintura, e Loos, na arquitetura – estavam unidos na crença de que o gosto popular se tornara corrompido, que sentimentalidade, banalidade e kitsch tinham invadido as várias esferas da arte e eclipsado suas mensagens. Harmonias tonais tinham sido corrompidas pela música popular, a pintura figurativa tinha sido superada pela fotografia; rima e metro tinham se tornado conteúdo de cartões de natal, e as estórias tinham sido contadas com muita frequência. Tudo lá fora, no mundo das pessoas ingênuas e não pensantes, era kitsch.

O modernismo foi a tentativa de resgatar o sincero, o verdadeiro, o arduamente alcançado da praga da emoção fingida. Ninguém pode duvidar que os primeiros modernistas foram bem-sucedidos em sua empresa, dotando-nos com obras de arte que mantêm o espírito humano vivo diante das novas circunstâncias da modernidade e que estabeleceram continuidade com as grandes tradições de nossa cultura. Mas o modernismo se deu de presente a rotinas de fingimento: a tarefa árdua de manter a tradição se provou menos atrativa que modos baratos de rejeitá-la. Em vez do estudo perpétuo de Picasso em apresentar o rosto de uma mulher em idioma moderno, você pode apenas fazer o que Duchamp fez e pintar um bigode na Mona Lisa.

O fato interessante, porém, é que o hábito de fingir surgiu do medo de fingidores. A arte moderna foi uma reação contra a emoção fingida e contra os clichés confortáveis da cultura popular. A intenção era varrer para longe a pseudo-arte que nos amortece com mentiras sentimentais e pôr a realidade, a realidade da vida moderna, com a qual a arte real por si só pode chegar a um acordo, no seu lugar. Por isso, por um longo tempo se assumiu que não pode haver criação autêntica na esfera da alta arte que não seja, de algum modo, um “desafio” às complacências de nossa cultura pública. A arte precisa fornecer ofensa, caminhando para o futuro fortemente armada contra o gosto burguês para o conformante e o confortável, que simplesmente são outros nomes para kitsch e clichê. Mas o resultado disso é que a ofensa se tornou clichê. Se o público se tornou tão imune ao choque que só um tubarão morto em formaldeído despertará um breve espasmo de ultraje, então o artista precisa produzir um tubarão morto em formaldeído – isso, ao menos, é um gesto autêntico.

Então, cresceu ao redor dos modernistas uma classe de críticos e empresários que ofereceram explicar simplesmente por que não é perda de tempo olhar uma pilha de tijolos, sentar quietamente durante dez minutos de barulho excruciante ou estudar um crucifixo conservado em urina. Para convencer a si mesmos de que eram verdadeiros progressistas que montavam na vanguarda da história, os novos empresários rodearam-se de outros de seu tipo, promovendo-os a todos os comitês que são relevantes ao seu status e esperando ser promovidos de volta. Então surgiu o sistema modernista – o autocontido círculo de críticos que formam a espinha dorsal de nossas instituições culturais e que comercializam “originalidade”, “transgressão” e “desvendamento de novos caminhos”. Esses são os termos de rotina emitidos por burocratas do conselho de artes e sistemas de museus, sempre que querem gastar dinheiro público em algo que nunca sonhariam em ter em suas salas de estar. Mas esses termos são clichês, assim como as coisas que eles estão acostumados a louvar. Por isso, a fuga do clichê termina em clichê, e a tentativa de ser genuíno termina em fingimento.

Se a reação contra a emoção falsa leva à arte fingida, como descobrimos a coisa real? Essa é a questão que explorarei em meus próximos textos. “Para ti mesmo sê verdadeiro”, diz o Polônio de Shakespeare, “e que tu possas ser falso a nenhum homem”. Viva em verdade, insistiu Václav Havel. “Deixe a mentira vir ao mundo”, escreveu Solzhenitsyn, “Mas não através de mim”. Quão seriamente devemos levar esses pronunciamentos, e como os obedecemos?



Roger Scruton é escritor e filósofo britânico.


Texto original:
How modern art became trapped by its urge to shock. BBC Magazine. Disponivel em http://www.bbc.com/news/magazine-30343083. Acesso em 27/02/2016.