domingo, 14 de fevereiro de 2016

Alva



Todos os dias passava pela frente da casa de Júlia e Alva um homem num carro muito luxuoso. Júlia demorou para notar a frequência com que passavam, Artur e seu carro, em frente a sua casa. É importante frisar que eram dois, Artur e seu carro, porque sem o último o primeiro teria muito de seu atrativo reduzido. E atrativos eram o que buscava Alva, mãe de Júlia – filha é feita para casar com marido rico para poder cuidar da mãe na velhice.

Certo dia, como me contaram, o pneu do luxuoso carro de Artur achou de furar justo perto da casa de ambas, fato iniciador das dardejadas de olhar de Alva em direção a eles, carro e Artur. Ao ver tão bonitos moço e máquina, Alva ofereceu copo d'água, sofá, bom papo e um tijolo inicial num prédio rico e ornamentado em que pretendia desfrutar na velhice: esta é minha filha Júlia.

Artur saiu dali naquele dia com esperanças concretas de que, sempre que precisasse, encontraria lugar onde matar a sede.

Voltou, ora trazendo um agrado de comer, ora um agrado de adornar. Naquela casa onde só habitavam Júlia e Alva, o lugar de Artur se consolidava a cada dia. Após algum tempo, Alva resolveu dar o próximo passo.

No dia costumeiro, soou a campainha e, antes que Júlia abrisse a porta, veio Alva da cozinha puxando um carrinho de feira, em direção à porta de saída.

A senhora vai onde, mãe?

Na feira.

Alva, abrindo a porta e encontrando Artur:

Oi, meu filho, vou à feira, mas você pode ficar à vontade. Você já é de casa. Júlia faz sala pra você.

Alva foi-se deixando os dois a sós. Artur, com a sede habitual, pediu um copo d'água. Júlia, mesmo ciente do ditado, recusou-lhe o pedido. Disse que precisavam se despedir porque copo d'água só quando Alva ali estivesse. E Artur, entendendo, foi-se.

Ao retornar, Alva soube do acontecido, mas não desistiu. Na próxima visita de Artur, quando a campainha tocou, antes que Júlia abrisse a porta, veio de seu quarto e, antecipando-se, abriu-a. Encontrando Artur, disse-lhe:

Oi, meu filho! Vou à casa de uma amiga. É urgente, ela está muito mal, tadinha. Mas não se preocupe, você já é de casa. Júlia faz sala pra você.

Com a saída de Alva, os dois ficaram a sós. Artur apressou-se em pedir um copo d’água à Julia, uma vez que estava sedento. Ela, como antes, recusou-lhe o pedido. Disse que haviam que se despedir porque copo d’água só quando Alva ali estivesse. E Artur, compreensivo, foi-se.

Horas mais tarde, quando Alva retornou, Julia contou-lhe o que se passara. Decidida a não falhar em seu intento, apostaria tudo que pudesse numa derradeira tentativa.

A campainha tocou, antes que Júlia abrisse a porta, vindo do banheiro, Alva adiantou-se, girou a maçaneta e, encontrando Artur, disse-lhe:

Oi, meu filho, vou apostar na loteria. Tive um pressentimento de que, desta vez, vai. Já acumulou duas vezes e, na terceira, há de sair. Você já sabe. Júlia, faça sala pra Artur.

Os dois a sós, sem Alva, entreolharam-se, e Artur pediu com uma ênfase e uma devoção de nunca antes, uma vez que estava sedento:

Júlia, pode me dar um copo d’água?

Ela foi até a cozinha, encheu um cálice de água e ofereceu a Artur.

*
No dia do casamento, sempre tão apressado quanto sedento, Artur preparou cerimônia simples, rápida e barata. A capela seria a do bairro; os convidados, seus pais e amigos íntimos. Alva sequer houvera sido lembrada.

Júlia, muito magoada, mas não dada a escândalos, nada falara a respeito. No dia da cerimônia, vestindo-se para entrar na capela, chorou silenciosamente. Enquanto as lágrimas escorriam, Artur bateu na porta do quarto onde estava sozinha a se arrumar.

Vamos, Júlia, já estão todos aqui a sua espera.

Tendo o silêncio como resposta, Artur resolveu voltar depois. Júlia, a cada gota derramada, tinha mais dificuldade de retocar a maquiagem. Alguns minutos depois, retornou Artur:

Vamos, Júlia, já estão todos aqui a sua espera.

Ouvindo um já vou, Artur, prestes a não mais aguentar o peso da espera, resolveu dar-lhe mais cinco minutos. No fim do tempo estipulado, sem nem bater na porta, Artur abriu-a bruscamente fazendo com que um copo d’água, estrategicamente posicionado atrás da porta, virasse e derramasse seu líquido no chão.

A água derramada foi abrindo caminho pelo vão entre os azulejos do piso até encontrar, também no chão, um papel lilás. Quando já quase completamente empapada a folha, lia-se em letras góticas escritas à mão:

ALVA







Um comentário:

Augusto Lima disse...

Como um tiro certeiro no alvo errado. Kkk