sábado, 20 de fevereiro de 2016

A continuidade de tudo o que há


Toques da mão esquerda do piano chamam pela mão direita que responde, em seguida, com dois breves sons semelhantes a um amém entoado em igrejas, após o pastor instigar os fieis. A chamada sonora volta, desta vez de um saxofone tenor e, como antes, o piano com as duas notas vem mais uma vez em auxílio. Após a repetição, a frase em que, juntos, trompete, sax e piano, ritmados pela bateria, bailam no ar. O movimento continua até que inicia o solo de Lee Morgan: bochechas plenas de ar que se esvaziam para se transformar em agudos melódicos de blues e bebop. Eis o início de “Moanin’” de Art Blakey and The Jazz Messengers.

A combinação entre trompete, saxofone, baixo, piano e bateria em um grupo como o de Blakey, com todas as exigências de tempo, melodia e improvisação, típicas do Jazz, pode levar a uma quase natural integração não só corporal, mas de alma -- qual é a materialidade da música afinal? Não seria absurdo imaginar tais músicos, em uma conversa íntima de camarim, dizendo algo como “Nós sabemos o que o resto do mundo não sabe”. Eles podem amar uns aos outros e odiar uns aos outros, quando tocam juntos. Podem, inclusive, xingar uns aos outros. Musicalmente, sem que ninguém perceba. Um grupo musical proporciona aos seus membros uma família afetiva que pode ser mais forte que a família biológica.

Esse senso de comunidade em torno de uma área especializada é tão conhecido como o senso de isolamento em torno de pessoas que não partilham do mesmo saber. “Eu só me entendo com quem sabe a mesma coisa que eu; com o resto, só mesmo à base de educação” é o pensamento não expresso de muita gente que enuncia frases do tipo “É difícil encontrar pessoas inteligentes para conversar”. Na superfície, o que elas estão dizendo é isto: pessoas inteligentes, para ser inteligentes, tem que pensar como eu e se expressar melhor que eu, só assim eu as admiro e tenho vontade de conversar com elas.

É esse tipo de padrão comportamental que nos leva a amar mais nossos amigos que nossos pais em determinada época de nossa vida. Claro, enquanto nossos pais estão dizendo o que não podemos fazer, nossos amigos nos dizem o que podemos e o que não podemos, enchendo-nos de coragem para realizar o impossível e transgredir o proibido.

Todo jovem, para ser um jovem que se preza, precisa reunir em torno de si três elementos: a certeza de ser mais inteligente que a média dos adultos; a incontrolável pertença a um grupo que seja exatamente igual a milhares de outros no mundo, mas que o faça sentir diferente; o comprometimento de mudar o mundo.

Os adultos não sabem de nada, porque não conversam as mesmas coisas que os professores e porque não sabem como se comportar socialmente -- pensam.

Já o grupo juvenil se caracteriza por incluir a partir da exclusão. Se é um grupo que escuta um gênero musical específico (rock e derivados, por exemplo), é preciso que fale mal de todos os outros. Se é um grupo que cultua uma personalidade, igualmente: todos os outros cantores, atores ou apresentadores são de um status inferior ao ídolo, e isso faz com que aquele que o cultua pertença a um grupo especial, único, escolhido.

A vontade de mudar o mundo se traduz na negação das crenças dos adultos. Adolescentes assumem posturas negativas em relação a seus pais e mestres com o intuito de fazer com que eles vejam o quanto o mundo está errado do jeito que está.

Depois dessa fase, crescemos e nos tornamos adultos. A realidade nos chama. Por realidade entenda-se pagar contas. Engolir sapos no trabalho. Cuidar de criaturas que estão chegando no mundo agora e que muitas vezes -- mas não sempre -- saem do ventre de nossas mulheres. Após uns anos de choro de madrugada. Brigas, humilhações e notas baixas no colégio. Espinhas na cara, óleo no cabelo, problema com o sexo oposto e com o mesmo sexo. Após esses anos, a criatura é chamada pela realidade. Ai chega a nossa vez. Ou melhor: volta a nossa vez. Uma vez com cinquenta e tantos, podemos voltar à adolescência. Passada esta, voltamos a ser crianças. As criaturas, já crescidas e de mal com a vida, exatamente como nós na mesma idade, tem agora que limpar nossas sujas bundas. Quando já velhinhos e bem, voltamos ao ventre materno, o ventre da grande mãe e nos juntamos com a continuidade de tudo o que há.

Um comentário:

Augusto Lima disse...

Porra de círculo virtuoso (ou vicioso) e, segundo muitos, necessário! Salvo pequenas variações, parece que é isso mesmo.