quarta-feira, 16 de março de 2016

Cacos



Do quarto, ouço um estampido de película rompida. Ando até a cozinha e tento montar mentalmente o que aconteceu. Chapinho o piso molhado e escuro, escorrego e, antes de cair, consigo me agarrar ao armário, que me corta a palma da mão auxiliado por um caco de silício.

É de vidro e madeira a porta do armário da cozinha, ao lado do qual encaixa-se a geladeira, que é velha e se locomove com dificuldade. Já não tem suporte em sua base e precisa arrastar-se ou andar pé ante pé – primeiro a parte esquerda traseira, depois a parte direita traseira, assim, com cuidado, devagar, sem pressa. É tão antiga que não tem mais ânimo para os passeios de outrora e, mesmo quando dispara a tremer, em picos de eletricidade, o ronco resultante é tal o latido do cão fiel já desdentado e com costelas salientes que mal abana o rabo enquanto lhe saliva a bochecha no retorno à casa, ao pôr do sol. Numa de suas andanças insones, o corpo fatigado tombou em direção ao armário, trincando-o. Consulesa sentiu-se o pior dos utensílios e desandou a vazar água, não por culpa, mas por incontinência fisiológica, típica do passar dos anos.

Consulesa está no canto do cômodo, curvada e envergonhada por ter causado todo este estrago. Dirijo-me a ela e sei que é hora de acalmá-la. Faz tempo que situações assim vem acontecendo e, para ser sincero, só pioram.

Consulesa me acompanha desde que meus pais ainda portavam a metade correspondente do par de alianças douradas mutuamente trocadas. Na separação, fez parte do espólio de minha mãe. Quando saí de casa para morar ao redor da Universidade, foram ordens expressas que cuidasse de mim da mesma maneira que tínhamos dela tratado todos esses anos, com asseio e lealdade. Foi por seus melindres que raramente comida estragava e dificilmente conseguia beber cerveja gelada na quitinete. Muitos foram os momentos em que me prostrei diante dela, abri-lhe a porta e me pus a desabafar todas as desgraças que podem acometer um universitário de vinte e tantos anos. Aquele hálito frio exalante não era o que chamamos de reconfortante, mas era tudo que precisava para atinar o quanto o mundo podia ser maior e mais seco que os reclames de quem insiste em não entrar na vida adulta. Sempre chorávamos, após essas sessões. Minha face saia úmida e com gotículas a zero grau, e sua base saia encharcada de líquido descongelado.

E era exatamente para honrar todas essas ocasiões que não podia deixá-la naquele estado, sentindo-se uma inútil que só atrapalha. O sangue de minha mão escorria com mais abundância e já havia enrubescido sua carcaça em vários pontos quando notei que tinha que estancar aquele vazamento arterial, antes de ajudá-la a se recompor. Acomodei-a como pude, e fui ate a porta do armário sobre a pia, não o que estava quebrado, outro mais antigo e também testemunha da decadência de minha companheira. Pergunto a ele se restou algum pano intacto que eu não tenha usado para limpar alguma sujeira supérflua de louça suja, e ele me indica um pedaço de tecido de algodão velho no fundo, que eu comprara há alguns meses e não usara. O naco é grande o bastante para dar duas voltas, entre o espaço em pinça formado pelo dedão e o indicador, e se deixar amarrar com um nó apertado, entre o mindinho e o anelar. Isso vai resolver, por agora.

Enquanto fazia com que parasse de jorrar o sangue, de tanto se chacoalhar em espasmos de infelicidade, Consulesa fez com que seu fio de corrente elétrica se desplugasse, o que naturalmente fez com que toda sua euforia se abrandasse. Considerei que, dado o estado de minutos atrás, não seria absurdo deixá-la assim, indolor, até que, pela manhã bem cedo, saísse à procura do primeiro vidraceiro que encontrasse e resolvesse o problema. No melhor dos mundos, quando recobrasse o ânimo, nem se lembraria do que houvera acontecido, afinal nada na cozinha estaria mudado e, caso algo lhe viesse à memória, insistiria: foi só um sonho, é bobagem esse negócio de dar trabalho, pfff, justo você, dar trabalho, onde é que já se viu?

Talvez seja a influência do espírito burocrático da Federal, mas os comerciantes desta cidade são especialistas em jogá-lo de um canto a outro a fim de testar-lhe a paciência. Corre por ai que todos daqui tem um emprego na Rural, e mesmo os que não tem, alguma relação guardam: pais, filhos, tios, primos trabalham ou trabalharam lá. Dai já ser consolidada prática tratar um cliente como um funcionário público dispõe de um cidadão que lhe peticiona um documento. A regra é dizer “não é aqui que você vai encontrar isso” ou “não trabalhamos com isso aqui” e então “você deve ir em outra loja” e em seguida “é fácil, é só você ir direto, quando chegar no seu Zé do Canindé, que todo mundo conhece, dobrar à esquerda e andar até a terceira goiabeira e, então, você só estará a mais quinhentos metros, três esquinas e dois pontos de referência de chegar onde quer” e arrematar com “não tem erro, não”.

Depois de toda essa detalhada geografia, você se aventura a desbravar terras e mares feitos de asfalto e poeira, aqui em Serohell. A planta básica do itinerário é esta: faça de conta que a BR 116, a famosa Rio-São Paulo, a grande avenida/estrada que corta este rincão, é uma artéria de onde saem inúmeras veias que alimentam partes mais interioranas. Os comerciantes principais localizam-se na artéria, os menos importantes, em alguma veia escondida. Tudo o que é preciso fazer é ser seringa e agulha.

Após perguntar a um taxista se conhecia um vidraceiro de confiança, com uma gentileza que eu, para ser sincero, não esperava, o anjo da guarda instantâneo me colocou na linha telefônica de seu celular com uma voz distante e apressada que dizia trabalhar com vidros e que me encontraria às duas da tarde do mesmo dia, em frente ao seu estabelecimento. Agradeci a ajuda gratuita de meu fortuito amigo e, horas depois, estávamos eu e a porta trincada do armário, abraçados, em frente ao lugar designado, fechado, como se tivesse sido isolado a meses e o dono tivesse fugido de uma ameaça de morte para nunca mais voltar. Quedei-me ali uns quinze minutos mais, com boa fé de que ele apareceria, conforme combinado. Dois homens comuns papeavam por ali. Aproximei-me e perguntei se de fato tinha lido certo no letreiro, no que um deles respondeu que não, mas que o fulano de tal – que já não me recordo o nome – só abria quando queria mesmo. Para não perder a viagem, perguntei se sabiam de outro profissional. Indicaram-me um que distava uma virada à esquerda, outra à direita e tudo reto toda vida, até chegar perto do mercadinho que era fácil, fácil de ver à distância. Agradeci-lhe e parti em busca do vidro perdido.

Chegando ao local, uma garagem cumprida, estreita e uma mesa grande de madeira ao final, cheia de papéis e cacos de vidro para mostruário, sou atendido por uma pele castigada, enrugada e com poucos dentes na boca. Digo boa tarde, explico toda a situação, e ouço que né co'ela, nã, qu'a pessoa que resolve tá na rua, resolvendo outra coisa e qu'o vidr'é do tipo que n'é feit'ali, , e que, mes'que mandasse fazê em Nova Iguaçu, ia demorá e nã'ia sair baratin, , sem falá qu'o vidr'era pintado e nem lá tinha vidr'assim e que seria difíci', porque tinha nem medida, nem nada, só'o vidro quebrado, mas que nã'er'ela que resolvia, nã, qu'eu voltasse amanhã que'les abriam àsoito e que's'eu chegasse àsoito talvezeu pegass'a pessoa que resolvess'antes dela sair pra rua pra resolvê outrosassunto. Eu disse muito obrigado, senhora, pela atenção, ela respondeu qu'eu voltass'amanhã, que nã'er'ela que resolvia, . Pensei um xingamento bem mal educado. Só pensei mesmo.

Voltei à avenida principal e dessa vez fui até um ponto de mototaxistas. Expliquei toda a história a um cara de pele achocolatada e olhos verdes quase transparentes, que perguntou a um Neymar pré Barça onde tinha uma vidraçaria por ali. O Neymar perguntou a outro que dormia sobre a própria barriga que parecia gestar a nove meses uma quentinha recém-preparada e ingerida horas antes. Este, como não admitia em sua vida não saber de um endereço, perguntou em voz alta se alguém ali não se lembrava daquele vidraceiro que ele tinha transportado dias antes, que era gente muito boa, pagou até mais pela corrida, deu até um cartãozinho com número e tudinho e que tava no seu bolso até inda'gora e que devia ter caído e se por acaso alguém não tinha visto, não. Os mototaxistas se entreolharam durante uma fração não maior que dois segundos e meio e voltaram a falar alto, rir arreganhado e assobiar para qualquer mulher. Os olhos transparentes se desculparam, e eu agradeci assim mesmo.

Segui em frente e, decidido ser aquela a última tentativa, perguntei a uma mercearia de esquina que vendia qualquer coisa. O homem atrás do balcão, no fundo da loja, nada falou e encarregou sua mão de se comunicar comigo. Ela apontou para a direita – a sua direita, e a minha esquerda –, balançou duas vezes e, em seguida, fez uma curva para dentro, em direção ao peito do homem. Acho que entendi. Sigo em frente aqui e dobro a segunda à direita, a minha direita. O seu polegar esquerdo levantou-se em minha direção para logo voltar-se junto ao corpo principal. Agradeci com meu polegar direito e segui o caminho.

O lugar era uma casa minúscula e ostentava um banner grande que indicava ser ali uma vidraçaria. O problema é que o banner era maior que a sala de recepção. Era uma casa humilde e com a porta destrancada. Bati as palmas das mãos e deixei um ar sair por minha boca a perguntar tem alguém em casa, por mais ou menos cinco minutos. Só me respondeu um cachorro, que já não tinha mais paciência nenhuma e só não calou minhas mãos e voz, porque o portão o segurava, apesar de seus incessantes protestos de deixa eu ir lá pegar esse cabeçudo fodido que fica gritando em plena sesta!

Como, nesse ponto, mais uma vez, houvera-me distanciado da avenida principal, o único caminho possível era volver. A poucos metros de chegar a meu objetivo, vejo uma placa, não muito distante, para ser mais exato, a apenas cinco metros de onde se localiza o ponto de mototáxi de onde eu pedira informação momentos antes. A placa indica uma vidraçaria na rua tal, número tal. Perguntando aqui e ali, chego até o local, o estabelecimento mais bem-apresentado de todos, com ar-condicionado e ideia genial de – advinha – colocar uma porta de vidro bem na entrada, para fazer a boa impressão do cliente. Entrei com um boa tarde e fui recebido com outro. Expliquei a situação, crente de que minha jornada se encerraria ali. O homem, sem camisa e de cabelo grande desgrenhado, respondeu-me que não fazia o serviço do jeito que tava, não, que era muito perigoso, porque do jeito que tava tinha pedaço de vidro quebrado na madeira ainda e, igual ele tinha visto acontecer com um colega seu de profissão que foi tentar tirar esses cacos, podia acontecer de quebrar a madeira junto e lá vai ter que pagar o serviço, em vez de ser pago por ele. Disse que até podia fazer o serviço por dez reais, mas que eu teria que tirar os cacos de vidro por minha conta. Disse também que o vidro que ele colocaria seria transparente, não seria escuro como o original, não, porque escuro assim é difícil, parece pintado e pra pintar é mais caro e não fazia ali, não. Tudo na sala do local era de vidro, mesa de vidro, estantes de vidro, cadeiras de vidro, até o olho do fulano era de vidro, um só, o outro era natural. Veio-me a imagem de uma placa tectônica se movimentando sob a Baixada Fluminense, a chacoalhar tudo, prédios, casebres, móveis e próteses de vidro.

A única escolha viável, no entanto, era acatar a condição ou voltar para casa com o vidro quebrado e com o suco gástrico a invadir-me o esôfago e respingar-me a língua. Sai a perguntar por que o filho de uma vidraceira simplesmente não tinha cobrado mais caro para fazer o serviço, era só ter explicado, como de fato fez, que era um serviço delicado, arriscado e que exigia um trabalho diferenciado, que eu teria pago mais, sem chiar. Mas não, ele, com um raciocínio peculiar conclui que o que tinha acontecido com um colega seu, profissional, e também poderia acontecer com ele, profissional, não aconteceria comigo, que entendo tanto de caco de vidro grudado em porta de madeira quanto ele entende a diferença entre sentença, enunciado e proposição. Mas estava decidido a não voltar para casa até resolver o problema. Eu tinha que fazer isso por Consulesa.

Terminar comigo só voltando para casa depois de dias, com a barba e o cabelo crescidos, com a porta do armário para montar. A geladeira me recebe com ânimo e pergunta por onde eu andei. Seu congelador está cheio, o que faz com que ela se urine toda no chão e se sinta envergonhada. Tento restabelecê-la, quando ela me diz que minha mulher voltou de viagem e está dormindo. Lembro-me que tinha prometido que a porta do armário estaria no lugar antes que ela voltasse. Para reparar o erro, tento colocar a porta antes de acordá-la. Monto, mas o a porta não fecha. Tento fechá-la à força, fazendo com que ela acorde e pergunte por onde eu andei que não fui buscá-la na rodoviária como havia prometido. Inicia uma discussão. Olho para trás, e a geladeira velha voltou a ser só uma geladeira velha. Não há nenhum ser mágico para me auxiliar com a realidade.

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