domingo, 20 de março de 2016

A história se repete como paráfrase



Relativista! Conformista! Cético! Essas palavras viraram sinônimas, no inflamado debate público nacional. Um pouco de conhecimento filosófico, no entanto, ajuda a compreender que não remetem ao mesmo sentido. A última designação, ao contrário de uma condição quase anti-patriótica, como pode pensar alguém mais engajado, pode se referir a uma atitude mais racional que expelir interjeições mal justificadas. Ceticismo, antes de tudo, relaciona-se à investigação (sképsis) e, para refinar seu entendimento, algumas distinções são necessárias.

Primeira distinção: ser cético não quer dizer ficar em cima do muro. Quer dizer investigar, antes de saber que lugar tomar em relação ao muro, deste, daquele ou em cima. Portanto, não é dizer "Tanto este, quanto aquele lado são iguais do ponto de vista deste muro, em que me localizo", nem quer dizer que "Nada farei, em relação aos lados, porque, de cima do muro, nada me afeta". O cético suspende o juízo, logo não toma lado (seja esquerda, direita, acima ou abaixo). O cético age, porque investiga, logo não se conforma. Retomarei essa diferenciação no final.

Uma segunda distinção é ainda necessária. Isso porque, do ponto de vista histórico e conceitual, há, ao menos, dois céticos possíveis. Refiro-me aos acadêmicos e aos pirrônicos.

Os primeiros derivam seu nome da Academia de Platão. Há quem considere este pensador um defensor ingênuo do acesso privilegiado do filósofo ao "Mundo das Ideias", lugar da Verdade, em contraposição ao "mundo sensível", espaço onde transitamos eu e você, atados ao ilusório senso comum. No entanto, essa caricatura logo ganha inconsistência histórica ao se notar que seu centro de estudos, de uma lado, era frequentado pelos mais díspares pensadores e, de outro, transformou-se em cético, após sua morte. A tese principal passou a ser: não é possível que possamos ter acesso à Verdade.

Posição diferente sustentava outro tipo de cético, aquele que considerava Pirro de Elis seu principal líder intelectual. O pirrônico não defende tese alguma. Como assim? Assim: dizer que não é possível que tenhamos acesso à Verdade ainda é dizer algo que se pretende verdadeiro. O cético acadêmico tem dificuldades com a seguinte refutação: "Caso ninguém tenha acesso à Verdade, como você pode afirmar "ninguém tem acesso à Verdade" e, ao mesmo tempo, pretender que sua afirmação seja verdadeira? De fato, o cético acadêmico não tem. Sua tese é auto-contraditória. E é para evitar isso que o pirrônico se comporta de modo diferente. Comportamento é a palavra-chave aqui.

O pirrônico é marcado por sua atitude em relação às teses que consideram a si mesmas verdadeiras, chamadas por ele de dogmáticas. A atitude é a seguinte: a cada afirmação dogmática, o pirrônico mostra que há outra, oposta e igualmente bem justificada, de modo a também poder ser considerada verdadeira. O resultado é que não há como decidir entre ambas. Sempre que o dogmático disser "x", o pirrônico pode encontrar alguém que diga "não x". E como decidir? Não há como decidir. Ou melhor: não há como decidir dogmaticamente. Explicando ainda mais: não há como decidir e pretender que essa decisão seja verdadeira. Resta ser cético, isto é, investigar e continuar investigando.

A atitude anterior, não é paralisadora. A marca do pirrônico é a suspensão do juízo, isto é, a denúncia de afirmações dogmáticas. Isso não é o mesmo que suspender a ação. Parece estranho. Mas não é. Só é difícil compreender, caso você vincule sua ação à conformidade à Verdade; caso contrário, é simples. Ilustro com duas questões. Você deixa de seguir as leis de nosso País porque não sabe se elas obedecem ou não às leis da "Natureza Humana"? Você deixa de acreditar na Teoria da Gravitação Universal porque não sabe se ela corresponde ou não à "Realidade"? Caso responda "não", então você me entende. Caso responda "sim", então procure o órgão de imprensa mais próximo e anuncie ao mundo que encontramos o novo messias, aquele que tem acesso à Verdade e que está pronto para nos guiar rumo ao esclarecimento total.

Brincadeiras à parte, você poderia contra-argumentar que mesmo que vincule suas ações à conformidade à Verdade, você a toma como objetivo a ser alcançado, não como algo que já tenha de antemão. Você poderia acrescentar algo como "A verdade é um horizonte necessário, porém não digo que já a tenhamos alcançado ou que a alcançaremos". Sua preservação da Verdade, então, se funda na necessidade de um critério de orientação da investigação atual. Um critério que deve ser perseguido, ainda que nunca seja alcançado. Caso seja esse seu argumento, saiba que você se aproxima da atitude do pirrônico. Ele não duvida da Verdade, só duvida que haja alguma crença que esteja justificada a ponto de que possamos seguramente considerá-la verdadeira. Dai sua constante investigação. Dai seu ceticismo.

Partindo dessa distinção, é possível esclarecer que a posição mais acertada em um contexto de dúvida é a do pirrônico, não a do acadêmico. Este nega que se possa sair do impasse, aquele continua investigando. O segundo sabe (ou acredita que sabe), o primeiro não, por isso, vai em busca de saber. O segundo é dogmático (acredita que, ao menos em relação a uma afirmação, encontrou a Verdade), o primeiro insiste em continuar investigando.

O cético (de agora em diante, sinônimo de pirrônico) não é relativista. O relativista adota todas as afirmações como estando no mesmo patamar e, portanto, valendo igualmente. O cético não as iguala na prática, apesar de as igualar quanto à possibilidade de considerá-las verdadeiras ou não. O motivo é que distingue entre afirmações verdadeiras e afirmações bem justificadas. O cético diria “Estou bem justificado em seguir as leis brasileiras e a acreditar nas leis de Newton, mesmo sem saber se são verdadeiras ou não; ao contrário, não estou justificado em rasgar a Constituição e fazer um vídeo na internet dizendo que Newton é um charlatão”. O cético estaria bem justificado, porque seguir as leis o permite desfrutar uma vida tranquila, sem ser perseguido por crimes cometidos. Ademais, acreditar nas leis de Newton, o faz não se jogar de um prédio de dez andares e acreditar que poderia voar. São consequências práticas e, ao menos do ponto de vista de decisões cotidianas, suficientes para tornar desiguais essa e aquela afirmações.

Além disso, o cético não é um conformista. Além disso, o cético não é um conformista. Como poderia sê-lo se o que defende enquanto atitude é justamente a não estagnação da crença dogmática? É possível que dogmáticos possam “agir” com muito mais frequência, já que acreditam estar “do lado correto” da questão. Porém, é igualmente possível ser um cético “ativo”, no mesmo sentido. Basta que, para cada dogmático que esteja certo de sua posição, haja um cético que mostre seus pés de barro. Para cada afirmação categórica do tipo “A presidente deve ser destituída do cargo!”, o cético pode responder “‘A presidente deve continuar no cargo’ é uma afirmação tão justificada quanto essa, já que não há motivos jurídicos suficientes, embora haja motivos econômicos, para tal”. Ou, de outro lado, para cada “‘Lula está sendo alvo de uma armação tendenciosa da mídia golpista’” um “‘Lula não está sendo alvo de uma armação...’ é tão justificado quanto, já que há fatos tão convincentes que existiriam mesmo se não houvesse a tal ‘mídia golpista’”. E, por último, para cada “É preciso assumir um lado, mesmo que este lado não esteja totalmente correto, porque o outro lado é muito pior” um “‘Não é preciso assumir um lado’ é tão bem justificado quanto, exatamente pela premissa considerada: se um lado não é correto, não é possível afirmar que ele é mais correto que outro; ou existe honestidade pela metade?”.

Ser cético não é a atitude mais fácil de se assumir. Por vezes, quem se diz pirrônico é um acadêmico disfarçado, ou melhor, um pseudo-acadêmico que, de fato, só tem preguiça de continuar investigando. São esses que podem macular essa posição como um todo e fazer com que os engajados acusem a todo aquele que não “toma posição” de relativista e conformista. Porém, distinções precisam ser feitas. Em uma situação em que as interjeições passaram a ser a regra, estamos sob a égide de uma paráfrase do famoso panfleto da Ditadura Militar: “Brasil: posicione-se ou deixe-o!”.


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