sábado, 28 de maio de 2016

Como usamos o termo cultura do estupro?



No Brasil, meninas são educadas para "se dar ao respeito", e meninos são educados para "não perdoar vagabunda". Muitos são os tipos sociais decorrentes dessa educação, os mais conhecidos são "a mulher para casar" e "a mulher para ter na rua". No lar, a civilização. Na rua, a barbárie. A violência nunca foi problema para nós humanos. Desde que -- é claro -- cometida fora de casa, fora do âmbito familiar, com aqueles que não partilham dos nossos valores. "Menina que não se valoriza não merece respeito", sentenciamos muitos de nós.

Revoltados com essa situação, criamos, em um movimento internacional -- baseados em histórias semelhantes acontecidas no Oriente Médio e na Índia --, o termo cultura do estupro. Com ele, pretendíamos circunscrever, ao menos em nosso país, o conjunto de práticas que ilustrei no parágrafo precedente. Acreditamos que, ao fazê-lo, teríamos em mãos um retrato falado de quem quer que fosse conivente com a prática nefasta que confirma a todo instante "Ela foi estuprada, mas ela também provocou". Queríamos extirpar de nosso corpo social esse câncer que, à medida que crescia, assassinava metade de nossos órgãos: as mulheres que "provocavam" os homens.

Tudo começou com um mote: a vítima não provoca coisa nenhuma. Não é culpa minha se sou roubado na praia, só porque portava a aliança de ouro de meu casamento. Não é culpa minha se sou roubado no ônibus, só porque atendi o celular para avisar meu namorado que iria me atrasar para o encontro. Não é culpa minha se sou roubado em meu carro, só porque esqueci de suspender o vidro da janela, no semáforo vermelho. Se em todos esses casos, a culpa não é minha, por que a culpa do estupro é da mulher que "provoca" o homem?

Havia alguma coisa de errado aí. Notávamos que as mesmas pessoas que se comiseravam das vítimas nos primeiros casos não se comportavam da mesma forma com a vítima do último caso. "Só pode ser tudo parte de uma grande cultura de naturalização da violência contra a mulher", concluímos.

De porte de um rótulo explicativo, passamos a identificar cúmplices dos criminosos. Passamos também a identificar aqueles que, ainda que não cometessem o ato, eram com ele coniventes por omissão. Progredimos no sentido de alertar a sociedade para a importância de coibir o crime. Mas não paramos ai.

Fizemos o termo virar bandeira política e não só. Fizemos o termo virar bandeira eleitoreira. Passamos a apoiar o partido x e o candidato y, por que tinham em seus programas de governo ou de intervenção parlamentar pontos que cobriam a questão. Além disso, passamos a hostilizar partidos e candidatos que não colocavam em seus programas essa pauta. O inimigo transformou-se da educação social difusa em uma figura institucionalmente bem definida. Daí para oportunistas se aproveitarem da situação foi um pulo. Há outros, mas Seu Jair, o Bolsonaro, é o espantalho que ganhou vida com toda essa situação. Tomou para si a representação do papel que não pensávamos que alguém pudesse defender: o de alguém que publicamente sustenta a prática do estupro "para alguns casos; só para quem merece". Depois dele, vimos pequenas aberrações, e não só do meio popular difuso, ganharem asas através das redes sociais e também desejarem que fosse estuprado o seu desafeto: "que fulano seja estuprado, só ele, porque merece". Nossa reação provocou uma re-reação. Se para a física toda ação tem uma reação, para a sociologia todo sentimento tem um ressentimento.

Um monstro maior foi criado. Um monstro midiático. Um monstro que passou a angariar tantos votos quantas fossem suas declarações criminosas cobertas pela imunidade (ou seria impunidade?) parlamentar. O monstro midiático eleitoreiro alimentou o monstro midiático humorístico. Com um atraso de vinte anos em relação aos Estados Unidos, passamos a discutir o politicamente correto como se fosse a novidade mais novidadeira do Ocidente. Humoristas, sob a defesa da liberdade de expressão, passaram a ressentir-se de não poderem mais fazer piadas com quem não podia se defender. "Pelo direito de zoar seja quem for, mesmo quem é zoado dia e noite, desde que nasceu!" tornou-se um grito legítimo e não só aceito tacitamente.

Para combater essas novas aberrações, insistimos no rótulo que havíamos criado. Era impossível negá-lo. Aumentamos a repressão. "Machistas não passarão", bradávamos a cada pessoa que insinuava o comportamento descrito acima. Passamos a utilizar tanto o termo machista que descobrimos que todos somos machistas. Todos tínhamos que nos policiar. Escrevemos para nós mesmos uma espécie de "O Alienista" em que os doentes eram de tal monta que ou tinham que estar todos internados ou tínhamos nós que considerar doentes justamente aqueles que fugiam ao regular por serem minoria, os sãos. E não nos demos conta que uma explicação que explica todo e qualquer caso, na verdade, não explica nada. Apontar o dedo na cara de alguém e dizer "machista" já não mais significava absolutamente nada. Não servia para diferenciar ninguém de ninguém. Mas continuávamos a utilizar o termo.

Situação análoga aconteceu com a "cultura do estupro". Não nos demos conta que, de tanto usá-la, a imagem que estávamos passando era justamente a oposta: em vez de identificar, estávamos eximindo os indivíduos criminosos da culpa. A sociedade passou a interpretar da seguinte forma o termo: "já que é cultural, então está justificado". "Afinal de contas", diziam, "os mesmos que se posicionam contra a cultura do estupro defendem outras culturas tão nefastas quanto, sob a justificativa do relativismo cultural". E, assim, fomos todos desacreditados. O rótulo que foi fabricado para ser remédio passou a ser vendido no balcão da farmácia social como veneno.

Alguns de nós chegamos mesmo ao cúmulo de desdizer tudo o que defendíamos antes. Se o rótulo iniciou como uma tentativa de desnaturalizar a prática, findou justamente por naturalizá-la. Uma caça às bruxas a prováveis "estupradores" iniciou, porque passou-se a considerar que, naturalmente, todo e qualquer homem é considerado um estuprador em potencial.

E chegamos ao impasse de agora. Concordaríamos, para nos livrar dessas práticas nefastas associadas ao termo, em abandoná-lo? Poderíamos responder que sim. Isso, porém, desde que continuemos a igualmente alimentar um projeto social de mudança de mentalidade quanto à naturalização da violência contra a mulher -- projeto já esquecido por muitos de nós, na faina de naturalizar tantas outras práticas. Um combate contra a mentalidade que, ao menos no Brasil, educa as mulheres para "não se comportar como vagabundas, porque homem não perdoa". E, por outro lado, que educa homens para "não perdoar vagabundas, já que elas estão pedindo para serem comidas". Esse tipo de educação -- não consciente, não concentrada, mas automática e difusa -- contribui, sim, para a naturalização da prática do estupro. E ela continua tendo que ser combatida, findemos ou não o uso do termo "cultura do estupro".

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