terça-feira, 29 de julho de 2014

Seis personagens à procura de um autor

Viviane Mosé

Em comentário, na rádio CBN, intitulado “Diante das manifestações, adote seu filho antes que um professor de história ou filosofia o adote”, Viviane Mosé diz que estamos em uma guerra. A guerra que, de um lado, estão os professores de filosofia, corruptores da juventude (é isso mesmo: após 2.500 anos, voltamos à mesma acusação dirigida à Sócrates), e, de outro, os pais dos alunos desses professores, que não querem ver seus filhos em violentas e não democráticas manifestações de rua. O título do podcast é retirado de um depoimento de um pai de aluno, citado por Mosé.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Agarrados agarrados a noite toda

Elizabeth Bishop


Agarrados agarrados a noite toda
os amantes permanecem.
Eles revolvem-se juntos
durante o sono,

agarrados como duas páginas
em um livro
que se leem mutuamente
no escuro.

Cada qual sabe tudo
o que o outro sabe,
aprendido de cor
da cabeça aos pés.

_______________________
De Elizabeth Bishop
Traduzido por Vitor Lima
Para Evelyn

quarta-feira, 23 de julho de 2014

A epopeia de Elizabeth Bishop no Brasil

Bishop (Miranda Otto) e Lota (Glória Pires)

Há outras maneiras de interpretar um filme de amor que não como simplesmente um filme de amor. Entretanto, entendo que seja difícil, ainda mais quando o amor em jogo é um amor gay com alguma sugestão de triângulo amoroso. O filme Flores Raras (Bruno Barreto, 2013) que gira em torno do romance entre a poeta estadunidense Elizabeth Bishop (Miranda Otto) e a arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares (Glória Pires) é um exemplo. Ambientado no Rio de Janeiro, especialmente na região de Samambaia, em Petrópolis, dos anos 1950-60, a película faz referência às duas grandes mulheres que, tal qual o título sugere, são duas flores raras. Lê-las assim, porém, é o manifesto. Ao sair da sala do Teatro R. Magalhães Jr., na Acadêmia Brasileira de Letras, hoje mais cedo1, pensei que talvez a estória pudesse ser encarada por outro ponto de vista.

domingo, 20 de julho de 2014

Estaria Leonardo Boff sofrendo de uma séria doença?

Leonardo Boff


Há uma doença no meio intelectual que o torna motivo de zombaria. O efeito principal dessa moléstia é fazer com que um autor cite outro a fim de parecer mais erudito, sem se importar se o excerto utilizado se ajusta ao todo argumentativo de seu próprio texto ou se o fragmento referido não contraria o pensamento macro do pensador referenciado. Dentre os citados, Nietzsche consta com certa frequência, talvez devido ao caráter aforismático de sua obra, aberta à polissemia. Afetado pela doença e, por isso mesmo, querendo parecer inteligente, um autor cita Nietzsche. E é desse ato que surge o nome para a enfermidade inflamatória das faculdades mentais: a citanietzsche.

sábado, 10 de maio de 2014

Palmas das mãos



Fortaleza, Ceará, Centro Cultural Dragão do Mar, idos de 2008 – Estávamos eu e meu pai num concerto de música – primeira fila, canto esquerdo – acompanhando o espetáculo de um dos talentos da geração dele, meu pai, que não teve como também não me fisgar.

Francis Hime, com sua banda e com seu piano, preenchia o espaço com a habilidade de um bailarino. Já velho, gordo, cabelos brancos, meio corcunda e com um inconfundível olhar de avô maroto, aquele artista/arteiro nos conduziu a todos como um maestro o faz com sua orquestra. Corrijo-me: a quase todos.

À nossa direita, minha e de meu pai, estavam um senhor adiposo e sua esposa ossuda. Montavam um casal de gordo e magro que nos garantiu a diversão da noite que não queríamos. Sentados, permaneceram ocupados em uma conversa que nunca cessava, exceto para dedilhar vez ou outra seus respectivos celulares e sair para comprar comida e bebida. E riam e proseavam alto e comiam e entornavam seus copos de líquido que pouco importa. Em frente, um dos maiores músicos vivos de nosso tempo; ao lado, dois glutões imbecilizados. A anedota da pérola aos porcos nunca fez tanto sentido para mim e meu pai.

Não é que estivessem mal vestidos, não é que houvesse-lhes uma cárie nos dentes, não é que faltasse perfume naqueles couros úmidos. Mas não tinha como não olhar para aquilo e ver ali algo de mendigo maltrapilho, cariado e enlodado.

Em certo momento, Hime tocou Pau-brasil (Francis Hime/Geraldo Carneiro), narrando a história da menina que achou no mato uma maçã e foi surpreendida pelo deus Tupã, que lhe explicou o segredo daquela fruta: uma maçã é nada mais que uma maçã – sim, às vezes uma maçã é só uma maçã. Na simplicidade rítmica da música e na fluidez da letra, aqueles porcos não conseguiam prestar atenção na simplicidade da pérola. Não entendiam que uma maçã é uma maçã e nem sequer poderiam, não prestavam atenção em nada que se passava no palco. Incrivelmente, porém, depois de cada música eles levantavam entusiasticamente gritando BRAVO! BRAVO! para logo em seguida tirarem uma foto do que se passava. Após esse átimo, voltavam para o filisteísmo de seus sórdidos assentos.

Toda vez que vejo alguém postando uma foto de felicidade hiperativa em redes sociais me vem à mente esse caso. Digo isso porque tenho amigos e, apesar de detestar eventos de massa, sou hipócrita o bastante para frequentá-los vez ou outra e vejo neles o comportamento dos porcos descritos acima. Na minha frente, agem como se o que se lhes estivesse diante dos olhos fosse um filme sul-coreano, tedioso como o programa do Faustão, porém nas fotos e no intervalo das músicas aplaudem como se estivessem prestando atenção no que está se passando: BRAVO! BRAVO!

Não somos mais capazes de viver experiências. O que nos redime são nossas imagens expostas. Só podemos ser vivos durante algumas curtidas e compartilhamentos. Não aplaudimos mais quem merece ser aplaudido. Talvez não queiramos nem mais aplaudir; nem a nós mesmos. As palmas são somente para que sintamos algo. Dormentes, ainda nos restam as palmas de nossas mãos. Elas ainda não estão de todo destituídas de sentido. Espero que demoremos um pouco para descobrir que até elas criam calos e, com o tempo, também ficam resistentes ao toque. PQP. Contei o segredo. Nem as palmas das mãos temos mais agora.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Nelson Rodrigues, o gênio do clichê; por que não?

Nelson Rodrigues com a atriz Lea Garcia, encenando "Perdoa-me por me traíres" (1957)


As estórias de Nelson Rodrigues fizeram sucesso primeiro enquanto literatura veiculada em jornal – seja como folhetim, seja como crônica ficcional. Só depois, elas ganharam um apelo geral na teledramaturgia e na pornochanchada. Os títulos de Engraçadinha (1995) e A vida como ela é... (1996) – minisséries da Globo – são retirados, respectivamente, de seu romance-folhetim Asfalto Selvagem (1965) e de suas crônicas homônimas publicadas na década de 1950, no jornal Última Hora. O argumento da película A Dama da lotação (1978) também foi retirado de uma de suas crônicas de A vida como ela é...

Sabemos que é por essa via indireta que conhecemos Nelson Rodrigues. Temos alguma noção difusa de que ele é um autor importante. Alguns artistas, para parecerem inteligentes, até bradam: “Nelson Rodrigues é o Shakespeare brasileiro!”. Mas não sabem o porquê. Sabem que gente inteligente gosta dele, apesar de terem ouvido falar que ele é pornográfico e que toca em assuntos polêmicos como traição, estupro, incesto e assassinato. Alguns de nós que crescemos na década de 1990 talvez tenhamos visto alguma minissérie baseada em sua obra e nos deliciado com Cláudia Raia interpretando uma de suas heroínas. Talvez. O que está no imaginário de nós brasileiros é mesmo este Nelson: o indireto da TV e do cinema e o popular do jornal.

Alguns se utilizam desse imaginário para atacá-lo pela via moralista. Jugam-no da mesma forma que o julgaram os conservadores das décadas de 1940 e 1950, como um “tarado”. Outros o atacam da mesma forma que o atacaram os progressistas das décadas de 1960 e 1970, como um “reacionário” (Nelson apoiou a Ditadura Militar; até seu filho ser preso por ela...). Mas há quem hoje lhe apresente reservas por nenhuma das duas vias anteriores. Fazem-no, sim, por outras duas: indiretamente, pela interpretação que dele possam ter os conservadores atuais e diretamente, por ele ter sido alguém que não foi original. Meu amigo, o filósofo Paulo Ghiraldelli, é um exemplo. Em pelo menos três de seus textos aparecem objeções a Nelson. Tratarei deles aqui: Que fique claro que mulher não gosta de apanhar, Por que mulher precisa ser encoxada? e Nietzsche adorava sexo!

Agora, independentemente de Nelson, sei bem que em tempos conservadores um engraçadinho qualquer pode muito bem colocar essa frase “mulher gosta de apanhar” em um seu ensaio, para vender para velhotes reacionários, analfabetos funcionais e senhoras que acham culto tomar chá falando mal do governo porque fez leis trabalhistas para suas domésticas. Esses conservadores são de um tipo especial. São aqueles que as feministas, às vezes de maneira tão tola quanto eles, vão chamar de “machistas”. Pronto, está armado o circo.

Sabemos bem o quanto o que está descrito por Ghiraldelli pode acontecer e de fato acontece. O seu diagnóstico mais à frente é certeiro:
Mulher não gosta de apanhar. É o que é preciso falar para essa direita e essa esquerda que ficam disputando entre os “politicamente corretos” e os “politicamente incorretos”.  Pois antes dizer isso de uma vez que tentar explicar Nelson Rodrigues para cabeças de bagre. 

Existe algo pior que uma estória mal contada, que é exatamente explicar uma estória que não precisa de elucidação alguma. Quem leu a crônica A esbofeteada de Nelson Rodrigues sabe do que se trata. Aliás, nem é preciso se dar ao trabalho de ler – porque, ao final de contas, ler é um trabalho! –, basta que se assista à pequena esquete baseada no texto feita para a TV, parte de um dos capítulos de A vida como ela é... da Globo. Está disponível no Youtube. Nesse ponto, concordo com Paulo. É melhor dizer logo que mulher não gosta de apanhar que explicar o que Nelson queria dizer quando escreveu o seu texto e blá, blá, blá...

Porém, em outro texto, intitulado Por que mulher precisa ser encoxada?, Paulo escreve:
“Encoxar e ser encoxada ou encoxado na multidão ou nos confins de um quarto sujo de uma construção é cena de Nelson Rodrigues, e por isso eu não o vejo como escritor genial. Antes dele isso já era cliché (1).”

Na nota de rodapé anunciada acima, está escrito:
“Nelson é genial no sentido de provocador psicológico de quem o lê, aí sim. Ele mostra que qualquer um de nós pode querer violentar uma garota ou fazer coisa pior. O êxito das suas peças mostram exatamente isso: quem vê ou lê se trai ao ver duas vezes e se excitar.”

Paulo diz que Nelson é e não é um escritor genial – em diferentes acepções, claro. Ele não é um escritor genial quando é clichê e é um escritor genial quando é um provocador psicológico. Nesse ponto, concordaria inteiramente com Paulo, se eu não pensasse exatamente o contrário. Nelson é genial exatamente no clichê e não é genial exatamente na provocação psicológica.

Sua provocação psicológica é da mesma profundidade de uma notícia de jornal sensacionalista. Aparentemente, pratico aqui uma heresia, tenho plena convicção. Porém, não me acuse o leitor de não ter lido dramaturgias como Doroteia (1950), Anjo Negro (1946) ou Senhora dos Afogados (1947), por exemplo, que apresentam estruturas internas e símbolos que remetem às mais bem elaboradas tragédias de todos os tempos – de Ésquilo a O'Neill. O que quero dizer de sua provocação psicológica é que ela é tão corriqueira no que traz de conteúdo quanto o jornal de grande circulação ou as tragédias gregas que, ainda que clássicas, já estão mais que entranhadas no imaginário popular. Os jornais mais baratos sempre trouxeram o que Nelson traz – ele próprio sendo fruto desses jornais. Não preciso ler uma obra sua para me sentir provocado psicologicamente quanto ao conteúdo que leio. É só ligar a TV ou ler o jornal e, claro, não estar adormecido pela crueldade do dia a dia. É isto que quero dizer: não é ai que está a sua genialidade.

Porém, Nelson Rodrigues nunca teve outra pretensão que não a de ser um clichê. Isso não é segredo para ninguém. Corrigindo: para ninguém que o lê e sabe razoavelmente como se deu sua malfadada vida. Sua genialidade não consiste em apresentar conteúdo novo. Sua formação é de jornalista sensacionalista, seja na área policial, seja na área de esportes, enveredando, por vezes, até na área de conselhos amorosos – sob pseudônimo feminino até: Suzana Flag (hoje, Nelson não teria o menor pudor de fazer uso de um perfil fake no Facebook). Sua obra inteira reflete essa formação. Esperar dele algo diferente do popular no que ele tem de mais repetitivo é não entendê-lo. O que é genial é a forma como é apresentado, e não o conteúdo de todo esse fluxo de banalidade.

Duas, no mínimo, foram as inovações estilísticas introduzidas por ele na dramaturgia da época: o diálogo entrecortado, truncado, ligeiro e de vocabulário popular e a quebra do fluxo temporal e do espacial tradicionais das narrativa até então. Nelson ensinou a todo brasileiro que queria escrever dramaturgia como se escreve um bom diálogo. É notável sua influência nos textos que lhe sucederam até os dias de hoje. Sua primeira peça de sucesso, Vestido de Noiva (1941), é um exemplo típico do que estou falando.

O leitor já imaginou escrever uma história com o seguinte argumento: uma irmã rouba o marido da outra, que morre atropelada? Sim, é só isso. Quer coisa mais banal que isso, da profundidade de uma manchete de jornal sensacionalista, como eu já houvera dito? Pois, é. Mas foi essa peça que inventou o teatro brasileiro. E não foi o que ela trouxe de provocação psicológica ou de novidade de conteúdo, mas o que ela trouxe de banal sendo contado de um modo em que só um autor genial o faria. A história se passa em três planos: realidade, memória e alucinação. São 32 personagens, muitas vezes um ator tendo que encenar mais de um papel que, em questão de segundos, tem que se transformar em outro. Os três planos se sobrepõem, se cruzam e se confundem. Mesmo hoje esse estilo de narrativa não apresentando mais novidade nenhuma, Nelson, na estreia, teve que ler um texto, momentos antes do início do espetáculo, indicando o que iria acontecer. Após essa noite, nós brasileiros já tínhamos como dizer: “Tal qual outras nações tem os seus dramaturgos, nós também temos o nosso.”

Nelson imortalizou-se ali – ali conquistou seu lugar no panteão dos gênios brasileiros. Poderia não fazer mais nada, mas sabemos todos que ele não parou em Vestido de Noiva e produziu outras tantas obras primas – particularmente, a minha preferida é Boca de Ouro (1959), que não só contém as duas características por mim mencionadas, como tem compromisso somente com aquilo que só um escritor genuíno deve se preocupar: com a estória bem contada.

Nenhum bom escritor é bom escritor porque traz conteúdo novo. Pode ser, mas isso não é determinante. Nem o triunvirato dos tragediógrafos gregos, nem o próprio Homero, nossos arquétipos de escritores, inventaram o conteúdo de suas estórias. Elas já se constituíam em enredos conhecidos pela plateia no momento de sua representação, teatral ou rapsódica. Sempre foi a forma que uma estória é contada que fez a diferença. A genialidade de Nelson não poderia estar em outro lugar, portanto.

Mas será que Nelson nem contar uma estória sabe? Ghiraldelli, em Nietzsche adorava sexo!, faz uma comparação, dizendo que
Nelson Rodrigues nunca revelou algo interessante sobre o comportamento humano. Nadinha. Não se é um escritor da “natureza humana” por ser escroto, ainda que se possa ser genial sendo um escritor escroto.

Enquanto que
Rubem Fonseca é diferente. Aí sim há alguém capaz de falar do drama humano. Aliás, Rubem Fonseca é tão bom que ao falar dele como quem é um escritor da “natureza humana”, tenho vontade de utilizar essa expressão sem o uso das aspas, como se faria ou se fez no século XVIII ou mesmo XIX. Ele é genial para além do que um escritor é aceito como genial. É um escritor nota dez porque diz que vai terminar um conto de uma tal maneira e, cumprindo o prometido, ainda assim consegue surpreender.

Ghiraldelli acredita que a “capacidade de Rubem Fonseca de escrever de modo a não poder ser aproveitado por nós, filósofos, é o que o põe uma esquina a mais em relação a Nelson Rodrigues.” Em outras palavras, Fonseca não dá aquele ar forçadamente “filosófico” aos seus escritos, como sabemos que vários escritores dão, só para figurarem como escritores cult. Mas, espera... Nelson faz isso? Não estaria Ghiraldelli antes atacando um pastiche de Nelson Rodrigues que de fato a obra que lhe faz jus? Ao meu ver, parece ser exatamente esse o caso.

Em seus três textos que agora comento, o tema central que faz Nelson ser invocado é a mulher. A frase: “mulher gosta de apanhar”. Mas acontece que Nelson nunca disse isso em sua obra literária querendo atestar a “natureza” da mulher. Mesmo quando ele completou com a pérola “Só as normais” (o que aconteceu, inclusive, em um programa de TV, não em um de seus livros), mesmo ai o que ele estava fazendo era nada mais que uma anedota, no máximo um comentário provocador, não filosofia moral. Nelson nunca se erigiu como um escritor da alma humana. Nelson retratava obsessões, não o sexo ou o amor. Dentre as obsessões, estavam o sexo e o amor, mas ele nunca foi um escritor erótico ou romântico. Diziam-lhe freudiano. O que Nelson conhecia de Freud é o mesmo que Valesca Popozuda conhece quando diz a palavra recalque. Pediam-lhe para explicar suas peças, para clarificar se de fato tal e qual referência que lhe haviam imputado fazia sentido. Nelson retorquia que isso era trabalho de críticos, não dele. Nelson nunca leu Marx, mas isso não lhe impedia de dizer, de birra, que “Marx é uma besta”. Nelson era um ficcionista, não um escritor de metanarrativas. Se um filósofo ou outro dizem que ele fazia isso, pior para esse filósofo e para esse outro. Penso que não o entendeu.

Talvez, e isso é uma hipótese, meu amigo Paulo Ghiraldelli esteja atacando Nelson Rodrigues antes pela ótica que dele apresenta o filósofo Luiz Felipe Pondé que pela sua literatura própria. Pondé lançou seu último livro, A filosofia da adúltera (LeYa, 2013), inspirado em Nelson, mas antes disso já houvera confeccionado artigos sobre o dramaturgo. Só um filósofo leria Nelson dizendo que este fala da condição humana. Só um filósofo enxerga, em um autêntico ficcionista, um escritor da “natureza humana” – Não teria caído neste mesmo erro o próprio Ghiraldelli ao falar sobre Rubem Fonseca acima? Talvez, caso Nelson estivesse vivo, vaidoso que era, seria-lhe do agrado toda essa disputa de filósofos com livre trânsito pela imprensa falando sobre sua obra. Mas duvido que sobre isso ele tivesse algo mais a declarar do que repetir Fernando Pessoa, através de seu heterônimo Alberto Caeiro:
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas. 
Há só cada um de nós, como uma cave. 
 só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora; 
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse, 
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.  

quinta-feira, 20 de março de 2014

Discurso truncado e antijurídico

A.S. O texto a seguir não aborda o caso sob um ponto de vista filosófico. Antes da filosofia poder se constituir, há outras questões que merecem ser resolvidas. Lembrando de meus tempos de Jaqueira (apelido carinhoso da Faculdade de Direito da UFAM), faço antes um comentário estilístico e jurídico que filosófico, por entender que o erro no raciocínio por mim analisado, antes de ser ético, é de argumentação.


Fotograma do vídeo divulgado

O que dizer de um discurso jurídico que peca tanto no encadeamento de um simples raciocínio, quanto na aplicação de um instituto jurídico? Se o que está na reportagem do Jornal da Cultura Online é fidedigno à sentença judicial, o argumento usado na decisão da juíza é tanto truncado, quanto antijurídico.

A magistrada desconsidera o evidente dolo eventual, que se caracteriza quando, mesmo sem intenção declarada, assume-se o risco de produção de determinado resultado. No computo final, dolo eventual equivale a dolo comum, ou seja, ambos querem dizer que houve intenção efetiva de cometer o ato. Diferente do caso em que há culpa, quando não há intenção alguma (havendo ou imperícia, ou negligência ou imprudência).

Segundo a reportagem, são palavras da juíza:

"Assim sendo, por mais fortes, chocantes e, até mesmo revoltantes que sejam as imagens da senhora Cláudia Ferreira da Silva, já baleada, sendo arrastada no asfalto presa ao reboque da viatura, dos termos dos autos do APF [auto de prisão em flagrante] não é possível inferir que os policiais militares presentes na viatura conheciam tal circunstância e a ignoraram. Ao contrário, o que mostram as imagens é que a viatura parou e dois policiais desceram para a colocarem de volta no interior da viatura" 

Como não é possível inferir que eles conheciam a circunstância e a ignoraram? 

Se alguém - seja uma autoridade pública, seja um cidadão comum - transporta uma pessoa baleada até o hospital, é mais que razoável inferir que isso seja feito com o máximo de diligência possível. E enfatizo o possível, porque não quero dizer ideal, abstrato, mas à luz das circunstâncias. Agora, prestar atenção, no sentido mais simples de manter os olhos na pessoa transportada durante o caminho até o hospital é o mínimo - repito em caixa alta, MÍNIMO - de diligência que se espera. Por isso que os policiais, se não tinham intenção declarada, assumiram todos os riscos de acontecer o que aconteceu. A magistrada, quando nos quer fazer acreditar o contrário, parece agir por motivos não muito claros.

A reportagem também menciona que "os PMs decidiram transportar a mulher no porta-malas por terem sido hostilizados por moradores da comunidade". Não importa. Como já mencionado, espera-se somente o mínimo de diligência: por os olhos na pessoa transportada durante o caminho até o hospital. Esse mínimo, mesmo em vista a hostilização, não poderia ter sido descartado.

Além disso, há um raciocínio truncado difícil de aceitar. Repito o trecho do discurso da magistrada:

"não é possível inferir que os policiais militares presentes na viatura conheciam tal circunstância e a ignoraram. Ao contrário, o que mostram as imagens é que a viatura parou e dois policiais desceram para a colocarem de volta no interior da viatura"

Segundo a juíza, não é possível inferir que os policiais sabiam da circunstância; "ao contrário" (?), eles desceram da viatura e colocaram a mulher de volta. Ora, o que a juíza, no seu próprio discurso, mostra é que eles sabiam, tanto é que saíram da viatura e puseram a mulher de volta. Como assim "ao contrário"?

O discurso da magistrada é tão deficiente que erra tanto juridicamente quanto argumentativamente. Isso é estranho. Para não dizer outra palavra mais dura ao discurso de uma magistrada legitimamente constituída.

sábado, 8 de março de 2014

O corpo é todo da mulher! Não, pera...


A.S. Hoje é dia da mulher. E, de cara, peço uma coisa à leitora: sem essa de dizer que só hoje que é dia da mulher, e que os demais dias pertencem aos homens. Reclamar que a mulher só tem um dia, assim de forma banal, é coisa de gente que não sabe a função de um dia comemorativo. Deixemos isso de lado, hoje é dia da mulher. E o que pode fazer um texto dedicado ao dia da mulher? Poderíamos falar da essência da mulher, talvez, e dizer o quanto ela é especial em nossas vidas, dizer que sem ela não viveríamos, dizer que ela é o que de mais perfeito há. Yes, we can. Isso, porém, todo aquele que consegue olhar nos olhos de uma mulher e que consegue emitir alguma coisa além de grunhidos tem por dever falar frequentemente, não só no dia da mulher. Defender a essência da mulher nesses moldes é coisa que todo micróbio sabe fazer. O que quase todo mundo não sabe fazer e se atrapalha todo quando tenta é defender não a essência, mas o corpo da mulher.
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Sabemos que uma das pautas mais pertinentes do movimento feminista é a reivindicação de que o corpo da mulher a ela pertence e a mais ninguém. Ela faz o que quiser com ele. Concordo com essa tese geral. Mas encontro um problema com alguns daqueles que, iguais a mim, também concordam. É que eles, no caminho da defesa dessa tese, acabam por desdizê-la e por cair em algo que eles próprios, assim como eu, combatem: o moralismo barato. Tentarei explorar isso aqui. Seguirei o seguinte procedimento: montarei um personagem fictício que explicará, através de cartazes levantados em protestos feministas, como esse movimento luta em prol do esclarecimento e da conscientização da mulher sobre o seu próprio corpo. Vamos a ele.

We Can Do It! de J. Howard Miller, 1943

Eis uma imagem emblemática do movimento feminista. De propaganda de guerra criada na década de 40, ela virou símbolo de luta do feminismo nos anos 80 e serviu até de campanha política. Certamente é uma imagem encorajadora e que indica que, em termos de força física, a mulher pode ser tão capaz quanto o homem. É uma primeira indicação que ela tem condições de proteger o próprio corpo porque ela própria é forte. Nada de sexo frágil.

Manifestante de rua em protestos no Brasil (imagem da internet)

O cartaz acima já é bem mais recente e mostra uma mulher reclamando o direito de poder usar roupa provocante (a saia, no caso) e ainda assim não querer diretamente atingir ninguém, seja via sedução, seja via protesto contra os "bons costumes". É a reivindicação de usar uma saia curta, assim como um homem usa um calção curto - naturalmente, sem conotação sexual ou política necessárias. O que está em jogo é a exposição do próprio corpo da maneira que ela própria bem entenda. Convenhamos, é preciso ser muito ressentido ou muito conservador para não endossar esse tipo de reivindicação.

Cartaz de rua em protestos no Brasil (imagem da internet)

Se a mulher pode usar a peça de roupa que ela bem quiser, onde ela bem quiser, ela igualmente pode deixar de usar a peça de roupa que ela bem quiser, na ocasião que ela preferir. O corpo da mulher é completamente dela, e só interfere nele quem ela deixar - eis uma tese mais do que justa! Estamos, agora, preparados para algo além de cartazes que defendam o corpo da mulher; agora, o próprio corpo é o cartaz:


Manifestante de rua em protestos no Brasil - 2 (imagem da internet)

Sim, o próprio corpo é o cartaz. Como não poderia sê-lo? O corpo passa a ser valorizado: "EU NÃO SOU COISA!", "MEU CORPO ME PERTENCE", "RESPEITE". A imagem é emblemática porque não é uma boca que fala, não é um rosto que aparece, não é um objeto que contém palavras, mas sim as costas, uma parte do corpo que não se dá muita importância. E ainda assim, tal qual uma tatuagem, as letras estão lá para mostrar que cada parte do corpo merece destaque e pode ser exibida como bem convier a mulher que o mostra. Depois desse estágio, a mulher está pronta para dizer: "MEU CORPO MINHAS REGRAS" e se orgulhar disso, não é mesmo?!


Encarte do CD do grupo Gaiola das Popozudas


Valesca Popozuda (imagem da internet)









Desde que essa mulher não seja uma... uma... uma funkeira (cuspe no chão). Sim, porque uma funkeira não esta legitimada a fazer parte da luta conscientizadora das mulheres esclarecidas contra o machismo e o patriarcalismo opressores. Tudo o que uma funkeira faz é denegrir a imagem da mulher. A funkeira mostra a mulher como mais um pedaço de carne, como sendo nada além de um objeto. Não importa que Valesca Popozuda (cuspe no chão) tenha posado para foto com dizeres típicos de uma feminista esclarecida em protesto. Ela é uma funkeira, e uma funkeira jamais pode ser esclarecida. Uma funkeira é alienada e tudo o que ela representa é o resultado da decadência em que pode se encontrar alguém vítima do capitalismo selvagem, da sociedade de consumo e de espetáculo. Como alguém que canta músicas (músicas?), cujos nomes são Agora virei puta, A foda tá liberada, Quero te dar, Fiel é o caralho e Tô com o c* pegando fogo, como pode alguém assim ser não alienada? Pouca importa que ela tenha uma música (música?) chamada "Minha buceta é poder" - outra mensagem feminista típica -; no máximo ela copiou de algum cartaz e fez uma música (música?) sobre porque achou bonitinho.

Aqui, encontramos uma primeira ressalva à regra: o corpo é todo da mulher, desde que ela não seja funkeira, que funkeira é alienada.

Espera, há outra ressalva que eu acabei de pensar aqui. Vê se eu não tenho razão. O que você me diria das misses, aquelas mulheres que se vendem às aparências e vivem de mostrar o corpo? Tá certo que o corpo é da mulher, mas elas não sabem o que estão fazendo. Não é possível que saibam. OK, a Miss Brasil eu posso até deixar passar, porque ela tem conteúdo, é inteligente, lê livros (nem que seja só O Pequeno Príncipe, mas lê). Mas o que eu não suporto são aquelas mulheres que vendem o corpo (parecendo mais umas... putas), como é o exemplo da Miss Bumbum. Ano passado, quatro delas fizeram um protesto contra o grupo Fêmen, querendo fazer com que a gente acredite que elas são algo além do corpo. É claro que elas são só corpo. Olha a foto delas:


Aqui, aproveito para colocar outra ressalva na regra geral: o corpo é todo da mulher, desde que ela não seja funkeira, que funkeira é alienada, e nem Miss Bumbum, que também é tão alienada ou até pior. Aliás, quem foi que começou com esse papo mais sem pé, nem cabeça que o corpo tem que ser só de responsabilidade da mulher, mesmo? Isso não faz o menor sentido!
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P.S. Esperemos que este texto não precise de explicações. De resto, neste dia, desejo às mulheres que eu amo, que eu as continue amando, porque elas continuarão sendo muito sortudas por me terem em suas vidas.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Salamanca




Já imaginou que você pode estar agora em um álbum de família de alguém que não conhece, em um país que você não sabe sequer pronunciar o nome em sua língua nativa? Pois é o que acontece quando você está caminhando pela rua e, de repente, flash! – sua imagem é capturada sem querer pela câmera de um turista como parte do pano de fundo de uma foto.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Sheherazade tal qual



Há uma aparência de que a jornalista Rachel Sheherazade aprendeu com maestria a prática de incitação ao crime (art. 285, Código Penal Brasileiro). O seu último discurso polêmico na TV pode levar a crer que, de alegada vítima, ela passou a agente do tipo penal que tanto condenou tempos atrás. Mas não é isso que quero discutir. É outra coisa.

Sheherazade defendeu os justiceiros que amarraram o suposto bandido ao poste pelo pescoço, ao mesmo tempo que o desnudaram e o deixaram exposto nessa situação por tempo considerável – sem falar no pedaço cortado de sua orelha. Ataque compreensível e até misericordioso a um marginalzinho que já vinha aterrorizando a vizinhança há algum tempo, sem que a polícia tomasse providências – alguns diriam sem pestanejar. Muitos de nós, brasileiros, já presenciamos algo assim em nossas vizinhanças. Eu, quando morava em Manaus, já. A vizinhança onde fica a casa de minha mãe vira e meche sofre desse mau. Já pegaram um desses assaltantes, lá no Norte. Já o quase lincharam. Eu vibrei, óbvio. Alguém exatamente como ele já apontara uma arma para a cabeça de minha irmã, xingado-a de vagabunda e roubando-lhe o notebook, enquanto ela ia trabalhar de manhã cedo. Se fosse eu que tivesse encontrado o sujeito, não faria diferente do que fez minha vizinhança.

Sim, estou confessando um pecado, mesmo não sendo você, leitor, um padre. Para mim é uma questão de honestidade intelectual. E diria mais: eu desconfio enormemente de quem, passando pela situação que passei, com um ente querido, não houvesse pensado como eu. Alguém que não tivesse pensado como eu, provavelmente, seria uma pessoa que pouco ou nada tem de leal com os que lhe são queridos. Defender, do ponto de vista pessoal, o direito do “bandido”, em detrimento do da vítima, ainda mais quando esta é sua irmã, é uma aberração moral. Isso faz de mim alguém que é contra os direitos humanos?

Não.

Os únicos lugares em que eu irei escrever “direitos humanos” são aqui e no parágrafo anterior. Esse termo, de tão dito por gente que não faz ideia do que seja, já se desgastou ao extremo. Usarei, então, simplesmente a palavra Direito – no sentido mesmo de ordenamento jurídico, somado ao conjunto de instituições que o executam, criam e julgam. Por que esse termo é importante? Porque é ele que vai dizer o que eu devo fazer com o meu pensamento pessoal: levá-lo a cabo ou refreá-lo.

Vivo em algo que se chama sociedade e sob o jugo de algo que se chama Estado. Uma das explicações filosóficas do porquê eu me encontrar nesta situação é explicada pelo contratualismo. Há várias versões de contratualismo, mas é comum se dizer que, para quem defende essa narrativa, a sociedade surge da seguinte maneira. Em uma situação onde não há Estado, cada homem tem para si sua liberdade inteira. Acontece, porém, que é comum que haja toda sorte de conflito e de desentendimento entre eles, de modo que, na prática, nunca é possível usufruir sequer a ínfima parte dessa liberdade. Então, cansados de só viver no meio de temores e de encontrar inimigos por toda a parte; fatigados de uma liberdade cuja incerteza de conservação a torna inútil; os homens sacrificam parte de sua liberdade para gozar-lhe do restante que lhes sobra com mais segurança. Assim forma-se a soberania de uma nação, que consiste na soma das porções de liberdade sacrificadas ao bem geral. Surge, então, a figura do Estado, aquele que é encarregado pelas leis do depósito das liberdades e dos cuidados da administração. Uma vez criado, só ele pode tirar liberdades; os homens, uma vez sem parte de suas liberdades, esperam que os demais respeitem-lhes as posses do que eles ainda guardam de liberdade.

Nessa linha, o Estado é limitador em sua origem, portanto. Ele limita para poder garantir a liberdade, ainda que não inteira. Mas o que Sheherazade sugere é que tal Estado não existe e que o que reina é um estado de violência sem limite, tal qual o estado de natureza, condição pré-estatal do homem. Tendo isso como premissa é considerado legítimo o contra-ataque aos que ela chama de "bandidos”, não sendo o que os justiceiros fizeram nada mais que uma “legítima defesa coletiva”. Sheherazade acerta? Quase. Se não fosse por uma coisa...

O Brasil possui um Estado!

É o Estado Brasileiro, a quem também denominamos de um Estado Democrático de Direito, que me diz o que devo fazer com a posição pessoal que confessei acima. É de acordo com ele que, não mais pessoalmente, mas publicamente, não defendo qualquer linchamento a quem quer que seja, inocente ou culpado. É porque vivo em um Estado, ainda que em grande parte omisso, que sei que minha lógica pessoal, uma vez aplicada de forma geral, só irá se voltar contra mim. É esse mesmo Estado que me faz distinguir entre justiça e vingança. Será que Sheherazade, então, estaria defendendo uma espécie de volta da Lei de Talião?

De novo: não.

Na letra da Bíblia, a lex talionis seria o seguinte:
Mas, se houver dano grave, então darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe (Êx. 21.23-25)
É o famoso olho por olho, dente por dente. Porém, o que não atentamos quando falamos desse preceito normativo é que ele já carrega em si um tanto de civilização. O conceito jurídico primitivo expresso é o da justa reciprocidade do crime e da pena. Etimologicamente falando, lex é lei, e talis é tal, de tal tipo; de onde se tira a seguinte ideia: tal crime, tal qual pena. Não nos esqueçamos também que a primeira notícia escrita que temos desse preceito é o Código de Hamurabi, lei escrita mais antiga (ou uma das mais antigas) de que se tem notícia. Nela, já havia um poder centralizado, portanto é possível pensar que não houve uma simples transposição do que era oral, consuetudinário para algo escrito. Talião guarda uma certa ideia de equilíbrio baseado na ideia de retribuição equitativa do dano sofrido, coisa completamente diferente do que conhecemos por vingança pessoal. Quando há vingança pessoal, não há retribuição equitativa, o que há é justamente o exagero na retribuição. Se alguém nos tira um bem, tiramos-lhe dois bens; se nos insultam, quebramos-lhe a perna; se matam alguém querido nosso, assassinamos-lhe toda a família – eis a lógica da vingança pessoal. Ela nunca é contida, sabemos.

É pelo que expus no parágrafo acima que não posso dizer que Sheherazade esteja defendendo a Lei de Talião. O que ela parece defender é algo mais primitivo, algo mais afeito à vingança pessoal mesmo. Não podemos dizer que o que os justiceiros fizeram com o suposto bandido foi uma “legítima defesa social”, nas palavras da jornalista. Legítima defesa pressupõe moderação. O que fizeram foi tortura e humilhação pública – noções que não casam com moderação. O bandido suposto já estava detido, não havia porque – exceto pelo desejo de vingança pessoal – mantê-lo do modo como ele foi mantido. Defender isso é defender um estado de coisas em que não existe Estado; é não defender a volta da segurança pública. Sheherazade fica, então, como já sabemos: tal qual sempre foi. E não faltarão aqueles que a queiram seguir. Tal qual.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Três versões de Judas

Jorge Luis Borges

There seemed a certainty in degradation
(T. E. Lawrence. Seven Pillars of Wisdom. CIII.)

Na Ásia Menor ou em Alexandria, no século II de nossa fé, quando Basílides publicava que o cosmos era uma temerária ou malvada improvisação de anjos deficientes, Nils Runeberg haveria dirigido, com singular paixão intelectual, um dos conventículos gnósticos. Dante lhe haveria destinado, talvez, um sepulcro de fogo; seu nome teria aumentado os catálogos de heresiarcas menores, entre Satornilo e Carpócrates; algum fragmento de suas prédicas, exornado de injúrias, perduraria no apócrifo Liber adversus omnes haereses ou haveria aparecido quando o incêndio de uma biblioteca monástica devorou o último exemplar do Syntagma. Ao invés disso, Deus o deparou com o século XX e com a cidade universitária de Lund. Ai, em 1904, publicou a primeira edição de Kristus och Judas; ai, em 1909, seu livro capital Den hemlige Frälsaren. (Do último, há versão alemã, executada em 1912 por Emil Schering; chama-se Der heimliche Heiland).

Antes de ensaiar um exame dos precipitados trabalhos, urge repetir que Nils Runeberg, membro da União Evangélica Nacional, era profundamente religioso. Em um cenáculo de Paris, ou ainda de Buenos Aires, um literato poderia muito bem redescobrir as teses de Runeberg; essas teses, propostas em um cenáculo, seriam ligeiros exercícios inúteis da negligência ou da blasfêmia. Para Runeberg, foram a chave que decifra um mistério central da teologia; foram matéria de meditação e de análise, de controvérsia histórica e filológica, de soberba, de júbilo e de terror. Justificaram e desbarataram sua vida. Aqueles que passeiam por este artigo devem, mesmo assim, considerar que aqui não há senão registros das conclusões de Runeberg, não sua dialética e suas “provas”. Quem se resigna a buscar provas de algo crido por ele ou cuja pregação não lhe importa?

A primeira edição de Kristus och Judas leva esta categórica epígrafe, cujo sentido, anos depois, dilataria o próprio Nils Runeberg: Não uma coisa, todas as coisas que a tradição atribui a Judas Iscariotes são falsas (De Quincey, 1857). Precedido por algum alemão, De Quincey especulou que Judas entregou Jesus Cristo para forçar-lo a declarar sua divindade e a acender uma vasta rebelião contra o jugo de Roma; Runeberg sugere uma vindicação de índole metafísica. Habilmente, começa por destacar a superabundância do ato de Judas. Observa (como Robertson) que para identificar um professor que diariamente pregava na sinagoga e que obrava milagres diante do concurso de milhares de homens não se requer a traição de um apóstolo. Isso, no entanto, aconteceu. Supor um erro na escritura é intolerável; não menos intolerável é admitir um fato casual no mais precioso acontecimento da história do mundo. Ergo, a traição de Judas não foi casual; foi um fato prefixado que tem seu lugar misterioso na economia da redenção. Runeberg prossegue: O Verbo, quando foi feito carne, passou da ubiquidade ao espaço, da eternidade à história, da bem-aventurança sem limites à mutação e à morte; para corresponder a tal sacrifício, era necessário um homem, em representação de todos os homens, que fizesse um sacrifício condigno. Judas Iscariotes foi esse homem. Judas, único entre os apóstolos, intuiu a divindade secreta e o terrível propósito de Jesus. O Verbo se havia rebaixado a mortal; Judas, discípulo do Verbo, podia rebaixar-se a delator (o pior delito que a infâmia suporta) e a ser hóspede do fogo que não se apaga. A ordem inferior é um espelho da ordem superior; as formas da terra correspondem às formas do céu; as manchas da pele são um mapa da incorruptíveis constelações; Judas espelha de algum modo Jesus. Dai as trinta moedas e o beijo; dai a morte voluntária para merecer ainda mais a Reprovação. Assim dilucidou Nils Runeberg o enigma de Judas.

Os teólogos de todas as confissões o refutaram. Lars Peter Engström o acusou de ignorar, ou de preterir, a união hipostática; Axel Borelius, de renovar a heresia dos docetas, que negaram a humanidade de Jesus; o férreo bispo de Lund, de contradizer o terceiro versículo, do capítulo 22, do Evangelho de São Lucas.

Estes variados anátemas influíram em Runeberg, que parcialmente reescreveu o reprovado livro e modificou sua doutrina. Abandonou a seus adversários o terreno teológico e propôs oblíquas razões de ordem moral. Admitiu que Jesus, “que dispunha de consideráveis recursos que a Onipotência pode oferecer”, não necessitava de um homem para redimir todos os homens. Rebateu, logo, àqueles que afirmam que nada sabemos do inexplicável traidor; sabemos, disse, que foi um dos apóstolos, um dos eleitos para anunciar o reino dos céus, para curar enfermos, para limpar leprosos, para ressuscitar mortos e para exorcizar demônios (Mateus, 10:7-8; Lucas 9:1). Um varão a quem o Redentor distinguiu dessa maneira merece de nós a melhor interpretação de seus atos. Imputar seu crime à ganância (como tem fito alguns, alegando João, 12:6) é se resignar ao motivo mais torpe. Nils Runeberg propõe o motivo contrário: um hiperbólico e até ilimitado ascetismo. O asceta, para maior gloria de Deus, degrada e mortifica a carne; Judas fez o mesmo com o espírito. Renunciou à honra, ao bem, à paz do reino dos céus, como outros, menos heroicamente, ao prazer2. Premeditou com lucidez terrível suas culpas. No adultério geralmente participa a ternura e a abnegação; no homicídio, a coragem; nas profanações e na blasfêmia, certo fulgor satânico. Judas escolheu aquelas culpas não visitadas por nenhuma virtude: o abuso de confiança (João, 12:6) e a delação. Obrou com gigantesca humildade, acreditou-se indigno de ser bom. Paulo escreveu: “Aquele que se glorifica que se glorifique no Senhor” (I, Coríntios 1:31); Judas busco o Inferno, porque a bem-aventurança do Senhor lhe bastava. Pensou que a felicidade, como o bem, é um atributo divino e que não devem usurpar-la os homens3.

Muitos descobriram, post factum, que nos justificáveis começos de Runeberg está seu extravagante fim, e que Den hemlige Frälsaren é uma mera perversão ou exasperação de Kristus och Judas. No final de 1907, Runeberg terminou e revisou o texto manuscrito; quase dois anos transcorreram sem que o houvesse entregue à imprensa. Em outubro de 1909, o livro apareceu com um prólogo (enigmaticamente morno) do hebraísta dinamarquês Erik Erfjord e com esta pérfida epígrafe: “No mundo estava, e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu” (João, 1:10). O argumento geral não é complexo, ainda que a conclusão seja monstruosa. Deus, argumenta Nils Runeberg, rebaixou-se a ser homem para a redenção do gênero humano; cabe conjecturar que foi perfeito o sacrifício obrado por ele, não invalidado ou atenuado por omissões. Limitar o que padeceu à agonia de uma tarde na cruz é blasfematório4. Afirmar que foi homem e que foi incapaz de pecado encerra contradição; os atributos de impecabilitas de humanitas não são compatíveis. Kemnitz admite que o Redentor pode sentir fatiga, frio, turbação, fome e sede; também cabe admitir que pode pecar e se perder. O famoso texto “Brotará como raiz da terra sedenta; não há bom parecer nele, nem beleza; depreciado e o último dos homens; varão de dores, experiente em perdas” (Isaías, 53:2-3), é para muitos uma previsão do crucificado, na hora de sua morte; para alguns (verbigracia, Hans Lassen Martensen), uma refutação da beleza que o consenso vulgar atribui a Cristo; para Runeberg, a pontual profecia não de um momento, mas de todo o atroz porvir, no tempo e na eternidade, do Verbo feito carne. Deus totalmente se fez homem, mas homem até à infâmia, homem até à reprovação e ao abismo. Para nos salvar, pode eleger qualquer dos destinos que tramam a perplexa rede da história, pode ser Alexandre ou Pitágoras ou Rurik ou Jesus; elegeu um ínfimo destino: foi Judas.

Em vão propuseram essa revelação las livrarias de Estocolmo e de Lund. Os incrédulos a consideraram, a priori, um insípido e laborioso jogo teológico; os teólogos a desdenharam. Runeberg intuiu nessa indiferença ecumênica uma quase milagrosa confirmação. Deus ordenava essa indiferença; Deus não queria que se propalasse na terra Seu terrível segredo. Runeberg compreendeu que não era chegada a hora. Sentiu que estavam convergindo para ele as antigas maldições divinas; recordou de Elias e de Moisés que, na montanha, tamparam os olhos para não ver a Deus; de Isaías, que se aterrorizou quando seus olhos viram a Aquele cuja glória preenche a terra; de Saul, cujos olhos se cegaram no caminho de Damasco; do rabino Simeón bem Azaí, que viu o paraíso e morreu; do famoso feiticeiro Juan de Viterbo, que enlouqueceu quando pode ver à Trindade; dos Midrashim, que abominam os ímpios que pronunciam o Shem Hamephorash, o Nome Secreto de Deus. Não era acaso ele culpável desse crime obscuro? Não seria essa a blasfêmia contra o Espírito, a que não será perdoada? (Mateus, 12:31). Valerio Sorano morreu por haver divulgado o oculto nome de Roma; que infinito castigo seria o seu por haver descoberto e divulgado o horrível nome de Deus?

Bêbado de insônia e de uma dialética vertiginosa, Nils Runeberg errou pelas ruas de Malmö, rogando alto que lhe houvera sido concedida a graça de compartilhar com o Redentor o Inferno.

Morreu do rompimento de um aneurisma, em 1º de março de 1912. Os heresiólogos talvez o recordarão; ele agregou ao conceito do Filho, que parecia esgotado, as complexidades do mal e do infortúnio.

1944


Tradução de Vitor Lima

Autoria de Jorge Luis Borges 

Texto retirado de BORGES, J. L. Ficciones. España: Emecé Editores, 2006.

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2Borelius interroga com escárnio: “Por que não renunciou a renunciar? Por que não renunciar a renunciar?”

3Euclides da Cunha, em um livro ignorado por Runeberg, anota que para o heresiarca de Canudos, Antônio Conselheiro, a virtude “era uma quase impiedade”. O leitor argentino recordará passagens análogas na obra de Almafuerte. Runeberg publicou, na folha simbólica Sju insegel, um assíduo poema descritivo, A água secreta; as primeiras estrofes narram os feitos de um tumultuoso dia; as últimas, a descoberta de uma lagoa glacial; o poeta sugere que a persistência dessa água silenciosa corrige nossa inútil violência e de algum modo a permite e a absolve. O poema conclui assim: “A água da selva é feliz; podemos ser malvados e dolorosos.”


4Maurice Abramowics observa: “Jesus, d'apres ce scandinave, a toujours le beau rôle; ses déboires, grâce à la science des typographes, joussent d'une réputation polyglotte; sa residence de trente-trois ans parmi les humains ne fut, em somme, qu'une villégiature”. Erfjord, no terceiro apêndice da Christelige Dogmatik, refuta essa passagem. Anota que a crucificação de Deus não terminou, porque o acontecido uma só vez no tempo se repete sem trégua na eternidade. Judas, agora, continua cobrando as moedas de prata no templo; continua beijando Jesus Cristo; continua arremessando as moedas de prata no templo; continua atando o laço na corda no campo de sangue. (Erfjord, para justificar essa afirmação, invoca o último capítulo do primeiro tomo da Vindicação da eternidade de Jaromir Hladik.)

“Empunhar o gládio e punir os impostores”



Não dá pra tolerar gente que dá no saco. O fanático é o típico cara que dá no saco. Como tolerá-lo?

Consigo identificar uns três graus de fanático. O primeiro – no qual nos incluímos – é o chato e é bem caracterizado naquela canção de Clarice Falcão, Monomania. O segundo é o que só conhece um discurso moralmente certo e tenta implantá-lo, nos limites democráticos, ao máximo de pessoas possível. O terceiro é o mais mortal e, dentro do jogo que ele quer instituir, a democracia não é concebida.

Todos, em alguma medida, somos fanáticos. No sentido mesmo de ser muito fan de alguma coisa. Times de futebol, bandas musicais, autores de livros, correntes de pensamento, doutrinas religiosas. E por ai vai. Condenar que o cara pregue o velho testamento no pé do ouvido é fácil. Quero ver parar de postar memes no Facebook proclamando o ateísmo. O ateu é o novo crente. O crente, sabemos, já não acredita em deus há tempos.

Mas o chato a gente tolera. Há toda uma etiqueta que nos impele a isso. Estamos numa roda de amigos conversando, rindo, ai vem o chato. A roda está fechada, mas ele vem de mansinho e se posiciona atrás de alguém. Ninguém dá bola. Ele espera mais alguns segundos, acotovela um e força a entrada – pronto ele já está na roda, mas todos fazem aquele último esforço para não notá-lo. Outros segundos mais e ele se mete na conversa para complementar o que está sendo dito. Quando ele começa a complementar, você já viu. Eis o chato: ele não vai ouvir você; conversa para ele se resume a esperar você terminar de falar para ele continuar falando.

Somos amigos de chatos. Afinal, as pessoas são nossas amigas, não são? Mas há outro tipo de fanático que é preocupante um degrau a mais. É um tipo mais perigoso porque ele dá a entender que quer conversar, mas tudo o que ele quer é arrebanhar mais alguém para sua doutrina. Ele, por definição, é intolerante, o que o leva a só ter amizades que se encaixem na sua visão de mundo. Não é o objetivo dele aceitar a diferença. Tudo o que ele quer é igualar. Só há um modo como as coisas são. Quem se desvia disso está errado. Para ele, até mais: moralmente errado.

Nesse caso, há não uma etiqueta, mas uma ética que nos diz para tolerar também esse ai. A democracia até os institui. Quem são eles? O tipo partidário político é um exemplo. Se ele se assume de direita, a esquerda é moralmente errada a priori. Se ele se assume de esquerda, o contrário se dá. Mas quem duvidaria que eles são necessários à democracia? E eis que somos obrigados a conviver.

Porém há o fanático – e este não é só perigoso, mas mortífero – que é anti-democrático e que, por isso, põe o próprio chão do que conhecemos como tolerância em risco. Dá pra tolerar um Hitler, um Franco, um Mussolini, um Geisel? Há quem diga que a Segunda Grande Guerra só aconteceu porque Hitler foi tolerado tempo demais. Tendo a concordar – exemplos como esses ai nos fazem ter uma leitura não banal do afamado dito de Voltaire (que é mais ou menos assim):
Posso não concordar com uma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o direito de dizê-las.
O problema é que a frase só prevê o tempo de vida (“até a morte”), e o fanático quer justamente é nos ver mortos. E mortos não temos como defender o direito dele. Sendo democrata, então, fica difícil tolerar alguém não democrata. A intolerância nestes casos é necessária para resguardar a própria tolerância. Talvez tenha sido por isso que Rousseau, certa vez disse:
O fanatismo não é um erro, mas um furor cego e estúpido, que a razão nunca contém. [...] Podeis demonstrar a loucos, do melhor modo possível, que seus chefes os enganam, e não serão menos ardorosos em segui-los. Desde que o fanatismo exista, só conheço um único meio de impedir seu progresso - contra ele empregar suas próprias armas. Não se trata de raciocinar ou de convencer; impõe-se no caso deixar a filosofia, fechar os livros, empunhar o gládio e punir os impostores. (Carta a D'Alembert sobre a construção de um teatro de comédia em Genebra")

domingo, 26 de janeiro de 2014

Razão mortífera

Theodor Adorno



Se você gosta de se conceber como um simples e comum racionalista então talvez você não queira esquentar a cabeça com Theodor Adorno, o filósofo alemão que colocou o holocausto na conta da hiper-valorização da razão. Porém, Adorno não foi um defensor da irracionalidade, misticismo ou superstição. Ele é um intencional semeador de paradoxos, mas, assim como você, ele está do lado do progresso, da ciência e do secularismo. A diferença é que ele também estava profundamente alerta ao modo como o bom senso obstinado pode levar à complacência intelectual e, em seguida à incompreensão, ao preconceito e à catástrofe.
Adorno nasceu em uma rica família de Frankfurt, em 1903, e foi educado para ser um aristocrata cultural com um forte senso de responsabilidade histórica – um dever para acalentar e preservar as altas tradições das artes e literatura europeias que ele herdara. Mas, enquanto ela era apenas um colegial durante a Grande Guerra, ele aprendeu a odiar o nacionalismo alemão e começou a sentir atração pelo marxismo revolucionário. Ele não precisava ganhar a vida e gastou a década de 1920 se preparando para ser um auto-consciente e elegante escritor, um especialista em filosofia e música e um crítico mordaz de tudo aquilo que fosse considerado falso, bombástico, liso, simplificado, nostálgico ou sentimental. Ele desprezava o otimismo vazio dos positivistas científicos, assim como ele detestava o pessimismo, tal qual ele concebeu, de Kierkegaard e Heidegger e ele foi repelido pela cultura popular de todos os tipos. Em 1934 ele se auto-exilou na Inglaterra e depois nos EUA e observou a resistível ascensão da violência nazista com um terrível espanto. Em seu livro Dialética do Esclarecimento, em coautoria com o teórico social marxista Max Horkheimer em 1944, ele tentou demonstrar que as calamidades políticas do séc. XX não foram desvios de algum plano pré-ordenado do progresso, mas sintomas de uma doença congênita da modernidade: uma enfermidade que permite benevolência transformar-se em terror, conhecimento em mito, razão em dogma e civilização em barbárie. Crescimento econômico, ele diz, “fornece as condições para um mundo mais justo”, mas ao mesmo tempo “permite que o aparato técnico e os grupos sociais que o administram tenham uma superioridade desproporcional em relação ao resto da população.”
Isso pode parecer a doutrina clássica do marxismo, mas, para melhor ou pior, representou algo profundamente revisionista. Para Adorno, as origens da injustiça contemporânea não repousam tanto nas inequalidades e misérias causadas pelo modo capitalista de produção, mas na estupidez gerada pela cultura da modernidade. Ele pensava que a sociedade como um todo tinha sido vítima de uma forma de razão tecnológica que apagou o poder da crítica ao obliterar a subjetividade e destruir a cultura autêntica, e ele não tinha expectativa que a classe trabalhadora fosse se levantar um dia e expropriar os expropriadores e liderar a humanidade em direção a um reino dourado de liberdade e igualdade. A razão iluminista criou uma forma de falsa consciência que – emprestada do teórico húngaro Georg Lukács – ele chamou de “reificação”, significando algo que trata relações sociais mutáveis como se elas fossem fatos da razão que não se transformam. Esse processo foi trazido para uma grotesca perfeição pela “indústria cultural”, em que cinema, rádio, teatro e jornais derramam um miasma venenoso de pornografia, lascívia e auto-congratulação mútua, ao mesmo tempo em que o sucesso e o reconhecimento popular se confundem com mérito artístico. A verdadeira inteligência e a arte genuína tinham se transformado, portanto, em passatempo idiossincrático de um pequeno e exclusivo avant-garde.
Alguns leitores se empertigaram diante da aparente implicação de que Adorno era o único qualificado a falar pelo pequeno enclave cultural que tinha escapado da devastação geral. Ele parecia ter descoberto um modo de se tornar um marxista sem que tivesse que renunciar aos hábitos de um excêntrico e refinado esteta, ou, por assim dizer, de um rico elitista e esnobe, e sua companheira de exílio Erika Mann o descrevia como um “vaidoso patológico” e um “grande blefe”. Quando ele retornou a Frankfurt em 1949 ele foi recepcionado com alegria por estudantes traumatizados e por intelectuais da Alemanha Ocidental como um emblema de retitude incorruptível e ele aproveitou uma curiosa forma de fama popular até sua morte que se deu 20 anos depois, aos seus 65 anos.
Sua reputação se encontra principalmente em Minima moralia, um livro de aforismos e observações escrito em 1951. A premissa geral é a de que nós vivemos em uma “falsa sociedade”, onde tudo é “totalmente organizado” e as pessoas são tratadas como coisas, e coisas como pessoas. Não há qualquer valor, exceto o valor de troca, e isso se infiltrou em nossas vidas tão completamente que nós esquecemos como amar alguém pelo seu valor próprio. Nós até perdemos a habilidade de dar presentes inteligentes: o ato de fabricar um presente se degenerou em um estratagema tático, uma troca de má vontade de objetos feitos com “adesão cuidadosa ao orçamento prescrito, avaliação cética do outro e o mínimo de esforço possível.” Enquanto isso, cada encontro com a cultura popular nos fez mais grossos e estúpidos, sendo que estamos sempre muito ocupados para gastar algum tempo com arte, quando muito com “biografias inúteis” que “humanizam” os feitos de grandes artistas, trazendo-os para o nosso próprio nível. A vigorosidade do pensamento original foi substituída pela “profundidade assalariada” de professores universitários, que treinam seus alunos para harmonizar seus julgamentos com os de seus colegas, de modo a ganhar a vida como “porta-vozes da média”. O único remédio possível é combater os “filisteus da cultura”, renunciar ao velho ideal de “coesão teórica” e se esforçar para alcançar a verdade na única forma que ainda tem algum significado: não a trivialidade pré-mastigada do bom senso da racionalidade, mas fragmentos irregulares de visão cujo valor não reside na sua plausibilidade, mas na sua “distância da continuidade do familiar”.
Por provocações apimentadas como essa, Minima moralia merece um lugar em toda estante de livros de um racionalista. Mas há momentos em que Adorno exagera e se torna inteligente pela metade. “Só a mentira absoluta agora tem qualquer liberdade para dizer a verdade”, diz ele, e “a demanda por honestidade intelectual é ela mesma desonesta” – observação que, ao menos para mim, soa nada mais que desculpas chorosas para os seus próprios vícios. Seus livros mais respeitáveis – notavelmente,Dialética negativa e o póstumo Teoria estética – são irritantes de diferentes modos: eles são escritos num estilo de alguém que engoliu uma biblioteca e que perdeu toda a capacidade de percepção clara e de declaração franca, e é difícil imaginar alguém os lendo a não ser por algum imperativo profissional. Por outro lado, ele às vezes mudava a mão para formas de expressão menos rebarbativas – incluindo seminários, muitos deles publicados, e discursos populares de rádio – nos quais a ideia de irracionalidade da razão surge enfim docemente razoável.
Em novo livro, Adorno and the Ends of Philosophy, Andrew Bowie de Royal Holloway, University of London, baseia-se nessas fontes familiares, apresentando seus leitores a um pensador que, uma vez despojado de seus “exageros indefensáveis”, pode ser capaz de trazer paz e prosperidade para o território devastado pela guerra da filosofia contemporânea. Se Bowie está certo, então as facções que tem lutado por décadas, arte e ciência, natureza e cultura, corpo e mente, determinismo e liberdade precisam ler os trabalhos de Adorno e por um fim a suas obsessões destrutivas. Uma vez que eles entendam que a humanidade tem relações com o mundo objetivo que “não são apenas cognitivas” – em particular aquelas obras de arte musicais e outras formas de manifestação artística e de experiência de beleza natural –, eles vão depor as armas, abrir negociações sem condições e se preparar para restabelecer a paz. Bowie combina uma enorme gama de leitura com um poder extraordinário de exposição lúcida, e é difícil ver como a tarefa de transformar Adorno em um pacificador intelectual poderia ser melhor alcançada. Mesmo assim, talvez não estejamos persuadidos: Adorno estava no seu momento mais interessante quando ele estava mais extravagante, e talvez uma das melhores coisas dele foi justamente o exagero.
Traduzido por Vitor Lima
Autoria de Jonathan Rée, filósofo e historiador freelancer. Escreve para várias revistas, dentre elas:  The London Review of BooksProspect,The Independent e The Times Literary Supplement
Texto original de RÉE, Jonathan. Deadly reason. Rationalist Association. Publicado em 13/01/14. Disponível em http://rationalist.org.uk/articles/4531/deadly-reason. Acesso em 26/01/14.