quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Deixa de ser viadinho!


Este, apesar de ser menina, é o típico "viadinho"


Há situações de nossa infância que formam a base necessária para um bom convívio social que só vamos perceber depois de algum tempo. Se não aprendemos com elas quando pequenos, o relação em grupo depois de adulto se torna uma tarefa difícil. É claro que nem sempre isso se dá de uma maneira soft. Quando crianças, quase não lhe atribuímos valor. Achamos péssimo até, dada a rispidez com que frequentemente acontecem. Porém, uma vez crescidos e aptos a revisitar a situação, percebemos que foram momentos essenciais e que não poderiam se dar de forma diferente. É o caso de eventos em que frases do tipo "Deixa de ser viadinho!" acontecem.

Lembro de pelo menos dois casos que ilustram o modo peculiar e ao mesmo tempo universal em que aprendi regras éticas básicas que construiram minha personalidade. O primeiro caso trata de não deixar os amigos na mão e de cuidar dos seus próprios problemas; o segundo, de não reclamar por coisa pequena. Todos eles tem em comum a lição de aprender com o que fez de errado e nunca mais voltar a fazer. A frase mágica que me fez lembrar dessa reprimenda é o "Deixa de ser viadinho!"

O primeiro se deu numa das memoráveis tardes em que jogava bola na rua. Reunia-se aquela matilha de meninos - e meninas às vezes - para jogar futebol. Qualquer coisa servia de trave, até pedaço de tijolo quebrado. Usavamos tanto para demarcar o gol quanto para riscar o chão e desenhar as linhas de meio-de-campo e de escanteio. Ao final da brincadeira, quando não tinhamos dinheiro, revesavamos quem de nós iria em casa e pegaria água para os restantes; quando tinhamos alguma grana, faziamos uma cota e compravamos bolacha recheada Parmalate com Coca-Cola. Repartir era comum, mas sempre havia aquela disputa para pegar mais bolachas ou a maior quantidade de refrigerante. Nessa hora, exercitavamos sem saber a lealdade para com o grupo ao mesmo tempo que aprendiamos a não medir força com quem era mais forte - ser leal e prudente, ao final de contas. Porém, havia casos, fora do contexto do final da pelada, quando voltavamos da escola ou coisa do tipo, em que iamos até a mercearia mais próxima e compravamos individualmente nossa própria bolacha e nossa própria Coca-Cola. Quando conseguiamos não encontrar nenhum colega do caminho da taberna até a casa, tudo bem. Mas quando encontravamos, era certeiro: tinhamos que dividir o lanche. Sempre alguém pedia, poderia até não estar com fome na hora, mas pedia. E tinhamos que dar, porque do contrário, quando chegasse na hora da partilha, seriamos vistos como egoístas. Uma vez, porém, antes de saber disso, eu cai na besteira de negar bolacha para um colega.

Estava eu e mais outro saindo da mercearia quando a uns poucos metros avistamos o Danilo, garoto mais velho que morava a umas casas de distância rua abaixo. Trocamos olhares os três, quando o Danilo pediu:

- E ai, Cabeça, me dá uma bolacha?

Eu, fominha e com fome, disse:

- Eu não, cara. Vai comprar uma pra ti. Eu to com fome e nem merendei ainda.

Ele me olhou com uns olhos de "Pode deixar que eu te pego depois..." e me deixou ir. Eu, meu amigo e meu pacote de bolacha juntos com a Coca-cola seguimos. No outro dia, a lição se deu. Era a hora da bola. Brincamos e no final ninguém tinha dinheiro, exceto o Danilo. "E agora?", pensei, "Como é que eu vou participar?" Segui com minha cara de pau. Até que chegou a hora de comermos, e o Danilo falou:

- Todo mundo vai comer, menos o Cabeça.

Eu fiz menção de protestar, no que ele prontamente me interrompeu:

- Cala a boca se não tu vai levar o teu já, já.

No que eu provoquei, teimosamente:

- Vem, se tu é macho!

Ele, mas rápido e forte, levantou antes que eu, mais pesado e fraco, pudesse reagir e me deu um sonoro tapa na cabeça. E logo após começou aquela sinfonia de vaias e provocações dos meninos ao redor - pressentindo cheiro de briga, menino é pior que cachorro quando está em bando.

Eu, já com lágrimas nos olhos, disse que iria contar para minha mãe.

Para que eu fiz aquilo?

Começou a zoação, e dentre as frases mais ouvidas estava:

- Deixa de ser viadinho! Vai contar pra tua mãe, vai, seu viadinho!

O segundo caso é mais rápido e também aconteceu no contexto do futebol.

Faltas são comuns em um jogo - essenciais eu diria, dado que sem elas a disputa seria muito menos emocionante. Porém, sempre há aquelas que machucam mais que outras. Os menos habituados ou os novatos sempre pedem arrego quando se veem diante de uma dessas. Comigo não foi diferente.

Numa das disputas, eu sofri reiteradas faltas e, à medida que o tempo ia passando, meu sangue ia chegando perto do ponto de ebulição. Até que na última falta, explodi e empurrei o colega. Ele, como o Danilo, mais forte que eu, deu-me uma rasteira que me fez cair de bunda. Aquilo doeu em dobro, porque, além da dor física, deixou-me numa posição jocosa que provocou riso geral. Com isso, a dor no corpo passou e veio a dor da vergonha. Enevitável: chorei.

Para que eu fiz, novamente, aquilo?

Veio a já habitual sinfonia:

- Olha o filhinho da mamãe.

- Deixa ele, que ele não sabe brincar, não.

- Além de esquentadinho é chorão.

Até que o mais implacável de todos, inflexivelmente, veio:

- Deixa de ser viadinho! Vai embora que ninguém quer brincar com chorão aqui, não!

À primeira vista, as duas situações acima descritas podem parecer, no vocabulário corrente, bulling. E podem até ter sido! Todavia, ao invés de causar traumas, fizeram-me entrar num círculo ético e vivenciar valores que dificilmente os meus pais ou qualquer escola lograriam êxito em ensinar. Lealdade, solidariedade, não-egoismo, cuidar dos próprios prblemas, não reclamar de coisas pequenas, agir conforme o contexto são coisas essenciais para qualquer ser humano. Os que nunca ouviram o "Deixa de ser viadinho!" ou coisa parecida dos seus pares quando criança, uma vez adultos tornam-se pessoas que, no limite, não sabem se comportar em grupo. Isso são coisas que se adquirem na primeira infância, e a maneira peculiar de aprender não pode ser diferente.

Enfim, quando alguém, hoje, confunde o "Deixa de ser viadinho!" com uma ofensa homofóbica (como se houvesse alguém saudável que ainda se ofendesse em ser chamado de viado [!]), isso me deixa triste e irritado. Triste porque eu sinto o fato da pessoa não ter vivenciado experiências que lhe teriam permitido ser alguém com um trato social mais sofisticado. Irritado, posto que sei que estou diante de um chato que pode ser melhor descrito como "o ofendidinho". Pessoas assim não percebem que sofrer alguma admoestação de vez em quando é saudável, mesmo quando já se é adulto. Afinal de contas, sempre é hora de deixar ser viadinho.

4 comentários:

Augusto Lima disse...

No entendimento comum, o que não mata enobrece; na verdade, mais uma questão de falta de opção: ou enobrece ou morre.
Na infância, também sofri constrangimento sendo tachado de "mulherzinha" na frente de todos os colegas e, o que é pior, observação proveniente da minha professora dentro da sala de aula.
Esse, entre outros percalços, contribuíram para uma emergente personalidade permeada pelo medo das mulheres, incapacidade para as atividades físicas e excessiva introversão.
Amadureci e superei muito dos problemas adquiridos na infância, o que espero aconteça com todos.

Vitor Lima disse...

Pai, tenho algumas observações a fazer. Sei que não foi o teu intuito igualá-los, mas é bom diferenciá-los de algum modo. Bom, o "viadinho" que eu expliquei é um pouco diferente do "mulherzinha". A minha situação é uma admoestação entre pares, dentro de um mesmo grupo moral pequeno, com mais ou menos a mesma faixa etária, com a intenção de fazer o admoestado se adequar ao ethos do grupo. Nesse caso, como é um controle por parte de alguém que não está hierarquicamente acima de você - mas, de todo um grupo - o trauma não se dá. No caso do "mulherzinha" foi sua professora quem o pronunciou, alguém que tinha poder de comando, sendo, diante da situação pedagógica e institucional estabelecida, mais crueldade que controle ético. Enfim, acho que não fiquei mais nobre, ao invés de mais fraco - não descreveria dessa forma. Acho, antes, que fiquei mais sofisticado no meu trato social. Mais adaptado, falando em um jargão evolucionisnta. E mais flexível, usando os termos da dona Lili.

Pig Knee disse...

Encontrei algumas pessoas na minha memória que ainda hoje não sabem lidar com o "deixa de ser viadinho" e, em algum tipo de "egocentrismo", transportam a acusação àqueles que os ofendem e não conseguem, assim, abandonar o "jeitinho de viadinho" pois não assumem a culpa, não enxergam o erro, pois "eu sou melhor que isso" e faz-se cara de desdém.

Se ainda fôssemos crianças, um tapa na orelha tiraria essa carinha amarga e boas maneiras seriam prontamente ensinadas, mas agora, depois de adulto, é como tentar moldar barro seco.

Comigo o mesmo que você postou. Amigos são assim, honestos: Folgou leva tapa.
Quem gosta de gente folgada?

Vitor Lima disse...

folgado merece levar mais que tapa. Agora, o "viadinho" é o chorão, o coitandinho, não o folgado. O folgado agente dá um tapa, não de correção, mas de castigo somente.